ENTREVISTA
“Os portugueses são um povo
completamente mal-educado”
ANA CRISTINA MARQUES -10/12/2014, OBSERVADOR
O que é que os portugueses têm na cabeça? Quem faz a pergunta é a
jornalista e escritora Marisa Moura. As respostas são, no mínimo, intrigantes e
vão desde "inveja" e "fatalidade" a chico-espertismo".
Inveja. Brandura.
Chico-espertismo. País de doutores e engenheiros e de pessoas mal-educadas. O
retrato do povo português é feito pela jornalista e escritora Marisa Moura na
sua obra mais recente, “O que é que os portugueses têm na cabeça” (Esfera dos
Livros). Ao longo de quase 400 páginas, a autora analisa estatísticas,
comportamentos, textos de pensadores e fala com especialistas para perceber
como se vive em Portugal. O prognóstico não é o mais otimista, mas a intenção é
boa. “Escrevi isto com espírito de missão. Fi-lo para servir as pessoas”, conta
ao Observador.
Marisa Moura, que
acumulou experiência profissional em publicações como Diário de Notícias, The
New York Times, Meios & Publicidade e Exame, levou três anos num projeto
que ambiciona perceber por que razão somos “mal-educados em todos os sentidos
do que é a educação”, tanto académica como moral, porque parecemos “doidinhos”,
não sabemos reclamar, e — tendencialmente falando — somos brandos.
“Procurei
respostas para perceber o que realmente temos nestas nossas cabeças. Por que
entrou em decadência o grandioso Portugal das Descobertas? Por que somos hoje
dos povos mais infelizes e pobres da Europa? “. A culpa, diz em entrevista, é
dos romanos e da Igreja Católica, que tanto infantiliza-nos como
desresponsabiliza-nos. “O simples facto de os crentes acharem que há um “pai”
que cria tudo e que já está tudo decidido… Se há alguém que decida por nós,
porque é que havemos de fazer seja o que for?”.
O que é que tinha
na cabeça para escrever este livro?
Um sentido de
urgência enorme. Desde que me lembro de existir que acho inacreditável as
coisas que vejo no dia a dia, os narcisismos. Antes de saber que a palavra
“narcisista” existia já a sentia na pele. Exemplos flagrantes são os
atendimentos nos serviços públicos. As pessoas têm mesmo de pensar no que andam
cá a fazer — esse é o grande objetivo do livro, que as pessoas percebam que são
uma pequena gota no oceano.
Considero a expressão
“o exemplo tem de vir de cima” uma expressão assassina. Se és um ser humano, o
que está acima? Porque é que nos havemos colocar automaticamente abaixo dos
outros? Há uma cultura de desigualdade social tão enraizada que não nos
apercebemos o quanto somos influenciados por ela no nosso dia a dia. A cultura
do “sr. engenheiro” é, também, uma expressão dessa desigualdade e o que a
perpetua é, sobretudo, o conforto que lhe está inerente: se tu não és superior,
então não tens responsabilidades.
O livro tanto
corre o risco de ser ofensivo como de despertar as pessoas para algumas ideias.
Qual o feedback que está à espera de receber?
Eu não tenho
grandes expetativas. O que estou a fazer neste livro faço-o no dia a dia, há 38
anos. Quem sabe mais ou menos o que anda cá a fazer pode não encontrar no livro
grandes insights; quem realmente deveria retirar alguma coisa daqui são, por
norma, pessoas que não são muito recetivas a olharem-se ao espelho e que até
respondem com alguma agressividade, em vez de pensarem “se calhar também sou
assim”. Eu falo de nós, também sou portuguesa.
Como é que
descreve o povo português?
O povo português
tem tantas características díspares que não podem ser descritas numa frase. A
única coisa que posso dizer e que vejo — é um facto — é que é um povo
completamente mal-educado em todos os sentidos do que é a educação, tanto
académica como moral. Nem todos os países foram resgatados três vezes em
quarenta anitos. Na geração dos meus pais (pessoas com 65 anos) éramos os
últimos — atrás da Turquia e do México — na lista dos países desenvolvidos da
OCDE, em termos de pessoas com o ensino secundário completo. Não é normal. Não
o podemos aceitar. Devíamos estar completamente em pânico, chocados.
“É verdade que Salazar pôs em prática uma série de
técnicas para nos amansar, mas essas técnicas têm sementes seculares, já dos
tempos dos romanos, antes de Cristo. Foram séculos e séculos de operações em
várias frentes, todas a culminar na matança do espírito crítico. (…) Consta
que, do cruzamento dos celtas com os nativos, nasceram os nobres e fortes
lusitanos. Entretanto chegam os romanos (…) com estradas, técnicas agrícolas,
língua e numeração próprias, leis e uma amoralidade revelada logo à chegada.”
Excerto do livro “O que é que os portugueses têm
na cabeça”
Qual a raiz do
problema? De quem é a culpa?
É dos romanos.
Nunca há certezas de nada, mas eu acho que foi na altura dos romanos que nos
começámos a estragar. A maior parte das nossas palavras são romanas, a nossa
numeração é romana. Ainda usamos expressões como “agradar a gregos e a
troianos”, que vêm desses tempos. As leis foram os romanos que as trouxeram,
bem como a [mania] das grandezas. O que fizemos nas descobertas? Uma versão
upgrade dos romanos quando colonizaram isto tudo. Foi a mesma atitude.
A igreja Católica
[também] deu cabo de nós — não estou a dizer nada que já não se diga há 200
anos. A igreja infantiliza-nos, desresponsabiliza-nos. Só a questão da
confissão… há ali um interlocutor com Deus, que está acima de ti. Porque não
meditar diretamente com Deus se acredito nele? O simples facto de os crentes
acharem que há um “pai” que cria tudo e que já está tudo decidido… Se há alguém
que decida por nós, porque é que havemos de fazer seja o que for? Aliás, a
Igreja penaliza esse sentimento da ação; tu não és ninguém para desdizer Deus. E
nós não tememos Deus, nós tememos perder [o amor de] Deus.
Abre o livro a
dizer que parecemos uns “doidinhos”. Porquê?
Quando pedes um
café cheio e trazem-te um curto ou quando pedes um prego bem passado e
trazem-no em sangue… só nesse tipo de coisas já parecemos “doidinhos”. Falemos
do caso dos PEC (Programa de Estabilidade e Crescimento). O então ministro das
Finanças apresentou o PEC I, depois o II. Mas quando o Teixeira dos Santos
apresentou o III [o VI caiu], fiquei perplexa com a reação dos jornalistas… as
palavras que se usaram, é como se [o Governo] não tivesse feito o primeiro. Parecemos
uns peixinhos de aquário. Lê-se notícias nos jornais sem contextualização. Vivemos
de insights avulsos sem qualquer ligação. A sério, parecemos “doidinhos”. Um
bom espelho dessa expressão é a imprensa portuguesa. Como agora está na moda
sermos curiosos, agora a manada explica.
Isto também está
relacionado com o sono, algo que em 2004 foi declarado um problema de saúde
pública pela Deco. Deitamo-nos tarde e maltratamos o sono. Está comprovadíssimo
que dormir mal diminui a questão do bem e do mal, isto é, a ética. Uma pessoa
mal dormida é uma pessoa com menos ética. Ficamos mais intolerantes. Mas quando
eu falo disso, as pessoas acham mais ou menos normal.
“‘Ó cão! O que é que estás a ladrar, meu ‘ganda’
cão? Enfio-te dois borrachos nesse focinho…’ (…) Explosões como estas acontecem
todos os dias por estas estradas fora, mas são das poucas situações em que um
tuga ousa afirmar-se. No refúgio do popó sabe bem praguejar e fugir. Não somos
pessoas de preparar grandes cocktails molotov como os gregos, mas ao volante
gostamos de misturar uma certa dose de testosterona e intolerância e atropelar
o mais elementar bom senso cívico”.
Excerto do livro “O que é que os portugueses têm
na cabeça”
“Reclamar não é
connosco”, lê-se. Porquê?
Não sabemos
reclamar como deve de ser, não temos método para tal. Não nos preocupamos em
ser eficientes no geral, tanto que há aquela coisa “para inglês ver”. Isso
aplica-se a tudo, inclusivamente na reclamação. Uma pessoa para reclamar tem de
mostrar factos, o que está mal e qual a solução possível. Não é começar a dizer
mal nas costas.
É uma questão de
confronto? Isto é, não gostamos de confrontar as pessoas?
Exatamente. A
pescadinha de rabo na boca é tal que obviamente está tudo ligado. Lá vem a
Igreja Católica outra vez. Vais afrontar Deus? Vais afrontar o “dono disto
tudo”, o DDT? O José Gomes Ferreira, jornalista da SIC, escreveu agora um livro
fantástico — Carta a Um Bom Português – que é um manual de como reclamar. Nós
temos de reclamar, não é isto de ir para a rua dizer que está tudo mal. Isso
não é reclamar coisíssima nenhuma, temos de reclamar coisas concretas. Nós
fomos todos para a rua no 15 de setembro e a TSU caiu porque era uma coisa concreta
[grande manifestação de setembro de 2012, que acabou por fazer cair o anunciado
aumento da taxa social única (TSU)]. As pessoas percebiam que havia uma lei em
especial que as estava a indignar e queriam que aquilo não acontecesse. E não
aconteceu. Raramente se percebe a real causa das greves.
Se não
reclamamos, também não opinamos?
Lá vamos nós à
Igreja Católica… Temos medo do que as pessoas pensam de nós. Para o que nos dá
jeito somos inferiores, para o contrário é um ‘quem és tu para me dizer alguma
coisa?’. Ilustra muito bem os portugueses. Desde que não nos obriguem a olhar
muito para nós próprios…
“Em Portugal, os trabalhadores são brandos, os
consumidores são brandos, a esquerda radical é branda, os jornalistas são
brandos. É tudo brando. O país das branduras.”
Excerto do livro “O que é que os portugueses têm
na cabeça”
Somos brandos?
Não sei.
Citando-a, este
“é o país das branduras”.
É assim que é
conhecido. Tão depressa somos catalogados como os mais “resignados” do momento
[reportagem do The New York Times, a propósito da crise financeira nos países
afetados pela austeridade — Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal –, na qual
lê-se “Talvez em mais lugar nenhum, as pessoas estejam tão resignadas como em
Portugal”], como os espanhóis Los Indignados afirmam ter nascido do protesto
realizado a 12 de março pela [portuguesa] Geração à Rasca. A própria pessoa que
funda o movimento deu uma entrevista a dizer que olharam para Portugal e que
ficaram com vergonha por não estarem a fazer a mesma coisa. É por isso que não
consigo dizer se sim ou se não. Tendencialmente somos vistos (e vemo-nos) como
sendo pacíficos e brandos. Mas o conceito de brando é muita coisa — estamos a
falar das reclamações em entidades públicas, da intolerância face aos
imigrantes… É difícil de dar uma resposta. A brandura é, pelo menos neste
livro, um chapéu para várias coisas. Eu tento ver se somos brandos no sentido
de “pacíficos” e “acolhedores” ou se somos brandos por aquilo a que se chama de
“banana”.
Escreve também
que tendemos a negar a realidade…
Ninguém gosta de
não gostar de si próprio. Segundo psicólogos, o que nós fazemos na vida é
construir uma história que nos agrada. Como os portugueses são seres humanos,
passamos a vida a criar histórias que nos agradam. E como a realidade não tem
grandes razões para nos agradar — as bancarrotas, as desigualdades… — dá-nos
jeito negar que tenhamos, cada um de nós, responsabilidades sobre o estado do
país. Dá-nos jeito negar as nossas responsabilidades.
Parece que o
português quer muito ser aceite socialmente. Porquê?
Porque somos
muito mal-educados, nos dois sentidos. A inveja resulta disto também. Preferimos
não arriscar quando estamos com medo, então nunca chegamos a testar-nos muito
bem, a conhecer aquilo que somos capazes de fazer. Se tu tiveres uma autoestima
muito baixa — e a esmagadora maioria tem –, qualquer grão de areia nessa tua
insegurança derruba-te e tu tentas sobreviver.
Acha que o livro
espelha o que é ser-se português?
Sim, acho.
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