CPLP: à mesa dos canibais
MADALENA HOMEM
CARDOSO 15/12/2014 - PÚBLICO
O fim da corrupção do
Português-padrão costumeiro incumbe a cada um de nós.
A CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) já tem uma "Miss",
eleita no Fórum Municipal de Lisboa em Setembro findo. Dois meses antes,
tinham-se sentado à mesa figuras de topo dos Países da CPLP. Tinha entrado
Obiang pela mão de Xanana Gusmão, ex-preso político, "Kay Rala" o
nome de guerra, poeta, pintor, rendido hoje à realpolitik como nunca o
guerrilheiro se rendeu nas montanhas.
Tantas vezes
citei o seu lema, “Resistir é vencer”, em particular nos últimos anos, a
propósito do imperativo de resistência cívica de pais e professores à
ditatorial imposição do absurdo e insustentável "acordo ortográfico"
(mal parido pela CPLP)...! A mediocridade consentida pela passividade crê-se
instalada. Essa é a mesma que aplaude Obiang, e se vende, e nos vende. Portugal,
iguaria a partilhar pelos convivas, com gotas de petróleo sorvidas do fundo das
taças deixadas por quem brindou à prosperidade. A alma de um Estado-Nação, mero
aperitivo na degustação de restos de anéis e de dedos deixados ao cuidado dos
capatazes dos donos do dinheiro.
“Resistir é
vencer” não deixou de ser verdade, nunca deixará, mas agora suscita-me náusea
ao associar-lhe este gesto de Xanana, o desrespeito por Portugal no acto de
conduzir "El Jefe" Obiang a um lugar onde não poderia sentar-se antes
de ser formalmente aprovada esta adesão à ora denominada "lusofonia
econômica" (novo conceito introduzido oralmente in loco por Passos Coelho,
que opto por grafar assim, com o acento circunflexo brasileiro).
Xanana abreviou
formalidades e, cumprindo-se a vontade expressa dos Presidentes de Angola e do
Brasil (ambos ausentes), Obiang recebeu aplausos de altos dignitários e
ilustres convidados. À distância, congratulou-se Luís Amado, o ministro dos
Negócios Estrangeiros de José Sócrates que "abriu a porta" da CPLP ao
multimilionário "Presidente-deus" da Guiné Equatorial, um dos países
mais pobres do mundo. Luís Amado, que agora administra o Banif, aplaude nele o
"salvador" do seu-nosso banco-lavandaria, tendo estendido a
retaguarda de todo um Pais a uma choruda injecção de capitais.
Governantes de
hoje, governantes de ontem, e os mesmos petrodólares por que se movem. Contentam-se
com restos dos grandes saques e com uma ideia de prestígio social. Tratam-se
bem, envaidecem, e só se sentam ali à mesa dos canibais pois a eles incumbe o
controlo dos concidadãos com fotogenia, declarações solenes proferidas com
olhos húmidos e voz colocada, pose de "estadistas" para o engate
eleitoral ou, pelo menos, falácias, esquemas, manobras de bastidores,
entendimentos cordiais... Associação criminosa, marketing. Realpolitik. Não se
lhes conhece lealdades nem rumos, antes uma arte de reconhecer e reagir a
mudanças de ventos e marés e, acima de tudo o resto, a sua veneração pela soberana
cor do dinheiro.
Voltando a
Xanana, agora engravatado à mesa dos canibais, reitero que é com acrescida
náusea que, por causa do seu gesto, venho denunciar, acusar, repudiar. Resistente,
faço-o sentindo a mesma revolta com que, perante as notícias dos massacres
post-referendo, em Setembro de 1999, fiz ouvir a minha mais posh pronúncia
britânica, emitida repetidamente na rubrica "Viewers Comments" dos
intervalos da estação televisiva CNN, frisando que a opinião pública portuguesa
não iria consentir aos Estados Unidos qualquer uso militar futuro dos Açores
(Base das Lajes), se não promovessem de imediato o respeito pelo Direito
Internacional no território ocupado de Timor, cuja população acabara de
pronunciar-se ? com risco de vida ? pela auto-determinação, tanto mais que tinha
havido, em 1975, um óbvio consentimento prévio de Kissinger à invasão
indonésia.
Quinze anos
volvidos, Obiang pela mão de Xanana. Mãos dadas, ambas sujas de petróleo e
sangue. Sei da mortalidade infantil na Guiné Equatorial e lembro as crianças
que vi em Timor Lorosae. Crianças são crianças, e o interesse da Indonésia e da
Austrália no petróleo de Timor foi devastador, tal como tem sido devastadora a
usurpação feita por Obiang dos recursos naturais de um País onde mal se
sobrevive. Portugal não tem representação diplomática por lá, apenas
construtores civis erigindo obras bizarras no meio do mato, em nenhures, onde
não passa uma estrada, nem há saneamento básico, muito menos escolas. Lá onde
adoecem e morrem as mesmas crianças, e onde se cometem graves violações dos
Direitos Humanos. Em particular, assassínios-de-Estado.
Faço, portanto,
esta denúncia com a mesma energia que me levou a Díli em Novembro de 1999, para
prestar assistência médica de emergência, assim que foi possível a entrada de
portugueses, ainda pululavam milícias naquele terreno sob controlo provisório
das Nações Unidas (chefiadas lá pelo grande Sérgio Vieira de Mello, assassinado
pouco tempo depois, não fosse suceder a Kofi Annan...), e por onde ainda
transitavam a pé famílias inteiras, desde os campos de refugiados de Timor
Ocidental até às suas terras de origem, não sabendo ainda quem e o quê
encontrariam quando chegassem, se chegassem.
Recapitulo. Em
finais de Julho transacto sentaram-se, à mesa dos canibais, observando
encenações protocolares, os servidores da "lusofonia econômica". Cada
um ostentava a designação de um cargo e o nome de um País da CPLP. Trinchou-se
a suculenta peça de carne. Qual seria? Estaria ali o povo mártir de
Timor-Leste? Ou o povo mártir da Guiné Equatorial? Tanto faz. É gente. Muitos
mortos. Tanto faz.
Não esqueço o
lema "Resistir é vencer", mas faço-o meu sem pejo. Passarei a omitir
o nome do autor, numa apropriação movida pelo pudor. Eu resisto e, resistindo,
venço, nem que seja apenas afirmando-me não representada pelos
não-representantes do meu não-País à mesa dos canibais, nesse repasto bem
regado a petróleo que assinalou o fim da CPLP enquanto organização
internacional, extinguindo qualquer possível aparência de credibilidade que
ainda lhe restasse sob o escrutínio de alguma observação desinformada e
superficial.
As Organizações
Não-Governamentais portuguesas, perante isto, suspenderam a sua participação na
CPLP, informando estar a ponderar uma eventual saída desta organização.
Diz-se que Obiang
terá ameaçado o seu principal opositor político, no exílio, aquando do pedido
de extradição deste dirigido a Espanha (antiga potência colonial), de
devorar-lhe os testículos à chegada... Não creio que, só por este motivo, os
nossos políticos tenham temor de contrariar Obiang. Caso haja alguma
"reinversão de marcha", por parte de Portugal, quanto à aceitação
deste novo membro da CPLP, tal ocorrerá por imposição da União Europeia, ou
seja, tal será determinado a outra mesa de canibais, para que não se junte mais
dinheiro sujo àquele que já entra, vindo de Angola, por esta porta das
traseiras do Espaço Schengen.
Entretanto,
Portugal, isto nos tornámos. Cada vez menos dados objectivos separam esta
pseudo-democracia de um regime corrupto ao estilo sul-americano, cimentado no
analfabetismo e na apatia de uma população indigente, como é o caso do Brasil,
e cada vez menos factos substantivos nos distinguem até de uma qualquer
cleptocracia africana instalada no terror... Na cumplicidade de não-ser, por
interpostos mandatários, cada vez mais colectivamente nos aproximamos desse
não-conceito repugnante, eloquente de tão néscio, da "lusofonia
econômica", improviso para a já impossível fachada de uma agência de
negócios, de um entreposto para o branqueamento de capitais. Mas só enquanto
deixarmos que assim seja.
Enquanto
deixamos, as candidatas a "Miss CPLP" desfilaram, pintou-se uma
borboleta para um banco putrefacto, fez-se cirurgia plástica trazendo um novo
rosto à velha "dança de cadeiras" dos pactos de regime, e iniciou-se
o puro caos de mais um ano "letivo". Seguindo o experimentalismo de
Galileu, o ministro que tanto prometia no "Plano Inclinado" (da SIC)
continua a projectar-se em queda livre do alto da sua torre, com a imortalidade
das inexistências, e no entanto sorri-se. Tanto faz.
Há uns dias,
esteve o País em peso sintonizado nos principais canais televisivos. Em todos
eles, questões sobre "medidas de coação" passando em rodapé, e nisso
a prova indesmentível de sermos... todos corruptos. Independentemente de quem
estivesse a ser "coado". Nos actos de corrupção, tem de haver
corrompidos, não basta haver corruptores. Perante esta Língua Portuguesa
corrompida, passeando-se assim ridícula e reles à vista de todos, deveríamos
envergonhar-nos. O fim da corrupção do Português-padrão costumeiro incumbe a
cada um de nós, a responsabilidade é colectiva, e resistir é vencer.
Médica, escritora e activista cívica
1 comentário:
Só hoje (e por acaso) descobri esta transcrição do meu artigo... Ainda bem que gostou, muito obrigada! :)
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