O meu mundo não é deste reino
David Dinis
9/12/2014, OBSERVADOR
Hoje, desta
audição, há uma coisa que já conseguimos perceber: que o mundo de Salgado não é
deste reino - e nunca poderia existir sem ele.
Ricardo Salgado
deu-nos conta de um mundo curioso, esse dos Espírito Santo. Um mundo que
funcionou lindamente durante 20 anos, como fez questão de dizer, mas que
subitamente alguém fez com que deixasse de funcionar. Salgado falou durante
horas deste mundo que ruiu por única e exclusiva responsabilidade do
contabilista, do supervisor, dos jornais e do Governo que não quiseram fazer
parte dele.
Proponho-lhe uma
viagem breve por esta audição, começando pelas origens do problema na área que
cumpre dizer-se que é a não financeira.
O presidente do
Grupo não fazia ideia, até novembro de 2013, do enorme buraco financeiro que
existia na ESI. Depois de o conhecer, participou as irregularidades às
autoridades do Luxemburgo, onde a ESI tinha sede, em… março de 2014.
O contabilista
foi o único responsável por esse buraco, mas não podia ser logo substituído
porque era a única pessoa que sabia como tudo se fazia.
A ESI não tinha
qualquer espécie de controlo interno – muito menos era responsabilidade direta
de Ricardo Salgado. Mas a ESI acabou por ser uma peça instrumental para o
financiamento do grupo, por causa da crise financeira (que começou em 2008).
Pressupõe-se que Salgado também não sabia disto.
Salgado reconhece
que, em janeiro deste ano, percebeu que já não conseguiria salvar o grupo pela
ESI. E montou um plano: era preciso salvar este mundo pela Rioforte. Tinha
também que tirar a ESFG da bolsa (que, assume, foi também instrumental para
financiar o banco durante a crise).
Dito isto, Ernâni
Lopes, já falecido, foi citado para apontar a estrutura “racional” do GES como
um exemplo. Funcionou bem, pelo menos durante vinte anos.
Chegados aqui,
percebemos que o BES já estava em risco na viragem do ano. Foi aí que o Banco
de Portugal exigiu a Salgado um plano de proteção do banco (ringfencing, na
irritante expressão financeira), para evitar que as contas do grupo levassem
para um buraco todo o sistema financeiro. Racional? Salgado diz que não:
O problema do GES
era de excesso de endividamento. Também não se podia resolver o problema do BES
sem resolver o problema do GES, alega.
O ring-fencing,
aliás, impediu a reestruturação do grupo – garante ele.
A conclusão é,
portanto, de que a prioridade era resolver os problemas do grupo, só depois o
banco ficaria a salvo. Mas o que fez então o Banco de Portugal?
Tudo começou a
correr mal, diz Salgado, quando o BdP obrigou o banco a fazer a uma provisão de
700 milhões. E com as notícias sobre o grupo, que afetaram a sua reputação…
O regulador deu
sete meses para resolver os problemas, mas isso era insuficiente. Mais: nada
podia ser feito à pressa, sob pena de “alto risco reputacional” e de
desvalorização dos ativos.
Pior ainda quando
o regulador quis afastar a família da gestão do banco. Salgado diz ter avisado
para os problemas que daí viriam (mas estranhamente acrescenta que nunca teve
“um sinal” de que a sua idoneidade tenha estado em causa).
Aqui chegados, o
que planeava Salgado fazer?
Um aumento de
capital do BES, que correu lindamente, segundo diz. Mas era preciso
financiamento, um apoio intercalar, ao grupo. Salgado queria um empréstimo de
cinco anos. Mas o Governo recusou.
Antes disso, “de
forma temporária”, a administração já tinha recorrido à Tranquilidade para
provisionar o Grupo, o que dava boa segurança para apoios estatais.
Mas Salgado
estava seguro: depois de reforçar os capitais do banco, era preciso reforçar os
da ESFG. E depois os da Rioforte. “Estava tudo encaminhado”.
Ao que diz o
banqueiro, havia já um fundo internacional interessado na RioForte. Mas o Banco
de Portugal não quis reunir com os interessados antes de vir a nova
administração, aquela que já não tinha a família. Foi isso que levou os
interessados a recuar (e essa foi a “sentença de morte”, decretou o banqueiro).
Pelo meio,
apareceu ainda o “estranho” caso de Angola:
BES teve de dar
autonomia informática ao BESA em… 2009, porque o Estado angolano assim o
determinou – apesar de virem de lá “informações estranhas” desde meio da década
passada e de se perceber que os rácios de transformação estavam altos.
O departamento de
riscos angolano foi pervertido, diz Salgado. Álvaro Sobrinho não cumpriu com as
regras da supervisão e havia muitas queixas sobre a sua atuação.
Depois, veio
garantia, que resolveu tudo – mesmo sem se saber o que mais foi feito. Só a
resolução do BES acabou com a rede de segurança. E com ela, sem ele (Salgado)
tornou-se “inevitável” a revogação da garantia.
Talvez esta breve
cronologia peque por defeito, talvez por excesso de pessimismo.
Talvez seja mais
fácil de acreditar que o mundo de Ricardo Salgado foi destruído por gente que
não percebeu o óbvio. Talvez a família estivesse afinal unida (e toda ela tão
responsável quanto ele, Ricardo, como fez questão de dizer o banqueiro); talvez
o Banco de Portugal não tivesse de se preocupar com o BES quando percebeu que o
BES estava em risco; talvez o Governo tivesse de financiar não um banco, mas um
grupo, que era aliás suposto não financiar um banco que nunca antes pediu
ajuda.
Talvez todos devessem
ter dado uns milhões para manter aquele mundo de pé, confiando que o
contabilista, saindo, deixasse as contas direitas, confiando que a crise
desaparecesse para que aquele mundo ficasse igual.
Talvez
acreditando nisso tudo não tivéssemos de ouvir outra vez que “o BES não faliu,
foi forçado a desaparecer.”
Mas hoje, desta
audição, há uma coisa que já conseguimos: que o mundo de Salgado não é deste
reino – e nunca poderia existir sem ele.
Ricardo Salgado. Acabou-se o
respeitinho?
10/12/2014, OBSERVADOR
Fintou jornalistas à chegada,
levou segurança pessoal, teve direito a sala para almoço privado. Salgado foi
bombardeado com perguntas numa sala à pinha e vai ficar na história do
Parlamento.
Quando Ricardo
Salgado entrou na sala número seis destinada às comissões parlamentares o
espaço tornou-se rapidamente exíguo: a expectativa era tal que vários
fotojornalistas e operadores de imagem – portugueses e mesmo estrangeiros –
acotovelavam-se para registar a entrada do ex-presidente do Banco Espírito
Santo (BES), ouvido esta terça-feira no âmbito da comissão de inquérito à
gestão do Grupo Espírito Santo.
A confusão durou
largos minutos: entre equipas de assessores que se posicionavam
estrategicamente para prestarem apoio aos deputados da comissão, jornalistas
que ainda procuravam o melhor lugar para se sentarem – e o chão foi a única
solução para alguns – e repórteres de imagem, todos procuravam o melhor ângulo
para verem o homem que um dia foi considerado o “Dono Disto Tudo”.
Alguns deputados
estariam a lembrar-se da possibilidade que chegou a ser equacionada de fazer
aquela audição numa sala com maiores dimensões, como a sala do Senado, por
exemplo. A ideia, porém, foi liminarmente afastada pelos deputados que “não
queriam passar a mensagem de estarem a atribuir um tratamento diferenciado a
Ricardo Salgado”, como explicou ao Observador fonte da comissão de inquérito ao
BES.
Ainda assim, o
número elevado de pessoas que queriam ouvir as primeiras palavras de Ricardo
Salgado, depois de meses de silêncio sobre o processo que levou à divisão do
BES em ‘banco mau’ e ‘banco bom’, terá surpreendido os próprios deputados da
comissão. Rapidamente, houve quem estabelecesse o paralelismo com outra
situação já com muitos anos: quando a então jornalista do extinto O
Independente, Helena Sanches Osório, pôs o Parlamento a discutir uma “vírgula”
– um governante, cujo nome nunca foi revelado, terá recebido ‘120 mil contos’
para alterar uma vírgula numa lei.
Não se pode dizer
que Ricardo Salgado não tenha evitado a todo custo a exposição às objetivas que
desde as oito da manhã aguardavam a sua chegada: trocou as voltas ao batalhão
de jornalistas que o esperavam nas entradas usadas habitualmente para o efeito
e entrou diretamente para a sala número seis, frustrando todos os que ansiavam
por uma imagem do ex-presidente do BES a cruzar a porta da Assembleia ou a
passar no detetor de metais ali colocado logo à entrada.
Entrou pelas
traseiras, deixou o automóvel estacionado onde ficam os carros dos ministros e
passou diretamente para a sala das comissões por corredores reservados apenas
aos funcionários parlamentares.
“Um leopardo
quando morre deixa a sua pele. Um homem quando morre deixa a sua reputação”
O provérbio
chinês serviu de mote para Ricardo Salgado se dirigir aos deputados da comissão
de inquérito e foi esse o espírito de missão que o acompanhou nas cerca de dez
horas que durou a sua audição: defender a honra e dignidade do nome Espírito
Santo, depois de tanto ele como a família “terem sido julgados sumariamente na
opinião pública”.
“Durante semanas
e meses a fio, a minha família e eu próprio fomos julgados sumariamente na
opinião pública com acusações de ilegalidades, de fugas em escassas semanas de
centenas de biliões de euros destinados a enriquecer-nos em off-shores, de fortunas pessoais escondidas na Ásia, de
mansões em Miami e de castelos na
Escócia. Tudo histórias totalmente falsas mas que acabaram por ocultar a
verdade dos factos”, começava por dizer Ricardo Salgado.
Durante a sua
defesa disparou em todas as direções: culpou Álvaro Sobrinho e a sua gestão do
BES Angola (BESA) – um “ponto nevrálgico” para a contaminação do grupo; acusou
o contabilista Francisco Machado da Cruz de ter ocultado o passivo do Espírito
Santo International (ESI) da própria administração do banco; garantiu que o
governador do Banco de Portugal era um dos responsáveis pela destruição do
capital do BES, pela pressa na resolução dos problemas e por forçar provisões
excessivas; e ainda, o Governo por ter recusado de forma “inabalável” ajudar o
Grupo antes da derrocada. Ricardo Salgado só não se pronunciou sobre a sua
família: “Não contem comigo para atacar ninguém da minha família”, repetiu o
ex-presidente do BES por diversas vezes.
Calmo e em
permanente diálogo com os advogados que compunham a sua entourage, respondeu a
(quase) todas as perguntas dos deputados – noutras invocou o segredo de justiça
ou as leis angolanas que proíbem a divulgação de dados bancários de entidades
daquele país – e refutou sempre as acusações que o davam como principal
responsável pela crise que assolou o banco e o Grupo Espírito Santo (GES).
A estratégia de
distribuição de responsabilidades que, segundo o próprio, escapavam à sua
competência, valeu-lhe algumas provocações. Mariana Mortágua (BE), uma das
deputadas mais assertivas, apontou: “Não deixa de ser curioso que o ‘Dono Disto
Tudo’ apareça agora como ‘Vítima Disto Tudo’ (…) e que culpe tudo e todos“.
Ricardo Salgado
respondeu, então, que esse cognome era “irrisório” e que nunca tinha tido a
“presunção de se assumir como tal”. Aliás, tal designação terá sido atribuída
para “prejudicar a sua imagem”, acredita o ex-presidente do BES.
“O ‘Dono Disto Tudo’
é o povo português (…) e os senhores deputados são os representantes do povo
português”, sustentou Ricardo Salgado.
Carlos Abreu
Amorim, o primeiro a dirigir-se a Ricardo Salgado, afinou pelo mesmo diapasão:
“Embora fosse o primeiro responsável, [Ricardo Salgado] era sempre o último a
saber”, afirmava o social-democrata com ironia. Pelo meio, ainda houve tempo
para uma troca de sugestões literárias: o deputado aconselhou Ricardo Salgado a
ler a obra “Confissões” de Santo Agostinho, em virtude do seu relato algo
“questionável” sobre os acontecimentos que levaram ao fim do BES.
A resposta do
ex-presidente do BES, no entanto, não se fez esperar: depois de elogiar “a
forma brilhante” como o “ilustre jurista” Carlos Abreu Amorim fez a sua
apresentação, Salgado garantiu: “Sou católico praticante e sempre que posso
leio as meditações de Santo Agostinho”.
“Senhor doutor
não. Senhor deputado, por favor”
A terminologia
com que Ricardo Salgado se dirigia aos deputados presentes também causou algum
frisson na sala número seis da comissão parlamentar. O ex-presidente do BES
teimava, por lapso, em dirigir-se aos deputados como “senhores doutores”, algo
que desagradou particularmente ao socialista Pedro Nuno Santos. “Pedia-lhe só
que me tratasse por senhor deputado”, disse o socialista dirigindo-se a Ricardo
Salgado, num dos momentos mais tensos do dia.
Mas não foi só a
falta de acerto de Ricardo Salgado no momento em que se dirigia aos deputados
que motivou queixas da bancada socialista: um membro daquele partido queixou-se
ao Observador, que o tom “arrastado” e “lento” com que Ricardo Salgado
respondia às questões era uma “estratégia concertada” pela defesa do
ex-presidente do BES para “arrastar” aquela comissão de inquérito e “desgastar”
o auditório.
Na verdade, os
trabalhos prolongaram-se muito para lá da hora, o que, inclusivamente, obrigou
ao adiamento da audição de José Maria Ricciardi, originalmente marcada para as
16h. Pelo meio, apenas duas pausas: uma para almoço – com pouco mais de 30
minutos para deputados e jornalistas presentes recuperarem energias – e outra
de cinco minutos, já na fase final da sessão.
Foi precisamente
durante a primeira pausa que Ricardo Salgado e a sua equipa despertaram
atenções redobradas dos jornalistas que percorriam os corredores do Parlamento:
almoçaram na sala número quatro – uma sala igualmente destinada para as
comissões de inquérito e que, segundo apurou o Observador, foi reservada pela
equipa de Salgado para o efeito.
Do lado de fora,
um forte dispositivo de segurança guardava a porta, com membros da equipa de
Salgado lado a lado com um agente da Guarda Nacional Republicana (GNR)
destacado para o serviço. O Observador tentou apurar junto do responsável pela
segurança do Parlamento se aquele nível era habitual, mas foi apenas possível
perceber que esse reforço de vigilância era “pontual” e que se devia “ao
perfil” do inquirido, ainda que Ricardo Salgado “não tenha sido o primeiro a
merecer esta atenção particular”.
“Tudo que fiz foi
para proteger os clientes do BES”
De volta à
reunião, Miguel Tiago (PCP) foi particularmente duro com Ricardo Salgado e fez
questão de “registar a ironia de um banco que sempre defendeu o ‘Estado mínimo’
e que tão depressa quis recorrer ao Estado para salvar o Grupo”. O deputado
comunista foi mais longe e descreveu o BES como tendo “um vasto currículo de
promiscuidade com o poder político”. Face às declarações de Miguel Tiago,
Salgado reagiu com um desabafo:
“O Grupo
orgulha-se de ter contribuído para a criação de 25 a 30 mil postos de trabalho
em Portugal. Portanto, choca-me que se referiam ao Grupo como um esquema de
Ponzi”, sublinhou o ex-presidente do BES, que desmentiu, também, as alegadas
relações privilegiadas do banco com o anterior Governo socialista.
A frase inscrita
na sua longa intervenção inicial podia muito bem resumir a posição assumida por
Ricardo Salgado ao longo das dez horas de audição: “Um nome pode ser apagado da
fachada de um banco, mas não pode ser apagado da História e de uma família com
145 anos ao serviço de Portugal”. Só não cumpriu a sua promessa inicial: não
atacar abertamente a sua família.
“Dr. Ricciardi
teve um comportamento muito curioso. E se fez alguma denúncia terá tido alguma
contrapartida por isso. Não sei qual, mas acho muito curioso…”, ironizou
Ricardo Salgado.
E, ao fim de dez
horas, o ex-presidente do BES saiu como entrou: por uma porta discreta da sala
seis que de forma labiríntica dava acesso mais rápido à porta lateral da
Assembleia da República. Sempre com o mesmo tom de voz, despediu-se deixando a
promessa que, se tal fosse necessário, poderia voltar novamente para ser ouvido
naquela comissão.
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