A moratória política de António
Costa
MANUEL CARVALHO 07/12/2014
- PÚBLICO
Costa percebeu que um pequeno
país periférico, pobre e acossado pela dívida e pelos escândalos de corrupção,
jamais terá força para mudar uma vírgula ao colete-de-forças que o aperta. O
país continuará a ter na próxima legislatura uma opção: ou cumpre as regras, ou
radicaliza a sua via política e entra em confronto com os parceiros externos.
1 – António
Costa, como defendia Juan Péron, prepara-se para pegar no poder como quem pega
num violino, pela esquerda. Mas não sabemos se o vai exercer como quem toca
violino, com a [mão] direita. Mais do que um mistério, o PS que saiu do último
Congresso é uma profissão de fé que expurgará pela virtude dos princípios
humanistas os vícios da crise e da austeridade.
Para Costa, o
futuro de todas as soluções terá de ser descoberto na Europa. Aliás, “a sua
retórica começa e acaba na Europa”, notou com cinismo Marques Mendes, na Visão.
Para ele, esse vai ser o "novo espaço de combate político". No final
desse combate, Costa espera mudar a União de forma tão indelével que o seu
putativo governo poderá ter, finalmente, “um novo equilíbrio entre recursos
alocados ao serviço da dívida” e os recursos com que espera “honrar
compromissos com os portugueses”.
Nesta fase
vibrante do seu novo cargo, ao líder do PS não ocorre que talvez a Europa não o
“compreenda”, como de resto não está a compreender o desvio de 0.2% das metas
do défice de 2015, o que aliás levou a ministra das Finanças a Bruxelas para
mostrar a sua desolação. Não lhe passa pela cabeça que pedir um “um novo
equilíbrio” entre o dinheiro que Portugal gasta em juros e o que aplica em programas
sociais é um pouco como aqueles desejos dos filhos que só se cumprem à custa do
dinheiro dos pais. Do ponto de vista dos princípios, Costa tem toda a razão
para dizer que esta Europa “não é a que os povos desejam” e só lhe fica bem
recusar a aceitação sistemática e resignada de Pedro Passos Coelho a tudo o que
vem de Bruxelas ou de Frankfurt. Mas, como muito bem se sabe, muitos bons
princípios não fazem uma boa política ou, se se quiser, uma política realista. Não
se deve basear uma promessa em algo que não se consegue controlar.
Costa percebeu
que um pequeno país periférico, pobre e acossado pela dívida e pelos escândalos
de corrupção, jamais terá força para mudar uma vírgula ao colete-de-forças que
o aperta. Sitiado pelo Tratado Orçamental, fiscalizado pela Comissão Europeia,
vigiado pelos credores, acossado pelo Banco Central Europeu, o país continuará
a ter na próxima legislatura uma opção: ou cumpre as regras, ou radicaliza a
sua via política e entra em confronto com os parceiros externos. Mesmo que haja
confiança na sua capacidade de governar, ainda que seja expectável uma maior
sensibilidade às questões da agenda social-democrata, se Costa for realista
sabe que só poderá fazer algo diferente se a Europa o deixar e nada indica que
a Europa esteja para aí virada. Se o Presidente francês teve de engolir em seco
e adoptar a austeridade, que trunfos terá Costa para vergar o diktat alemão?
Talvez este
discurso centrado nas “pessoas concretas”, na “qualificação”, na “língua”, da
“cultura” ou da “ciência”, no “reforço da coesão social” ou a “batalha sem
tréguas pela dignificação do trabalho” lhe permitam conter o crescimento dos
votos nos partidos à esquerda. Talvez “a viragem à esquerda” seja “ao contrário
do que pensa, por exemplo, Francisco Assis, uma necessidade para o partido”,
como defendeu o académico João Cardoso Rosas, no Diário Económico. Mas uma
coisa é um discurso, outra é um programa. Passar das palavras aos actos implica
a decisão de renegociar a dívida, de aumentar as despesas públicas ao ponto de
pôr em questão o défice ou de rasgar o Tratado Orçamental.
Sem mexer nessas
questões cruciais, Costa conseguirá até à convenção do partido, lá para a
Primavera, uma moratória política que lhe permite passar a mão pelo pêlo do
eleitorado do Bloco, do PCP e do Livre. Mas um dia terá de assumir que as
declarações dos social-democratas europeus são circunstanciais (veja-se o que
disse Sigmar Gabriel, do SPD alemão, na sexta-feira em Lisboa) ou que o plano
Juncker não passa de um hino à propaganda. Mal caia na real, Costa será
denunciado pelo PCP ou pelo Bloco como um lobo com pele de cordeiro. Caso não
tenha maioria em 2015, ficará condenado a aproximar-se do PSD, se não o de
Pedro, talvez o de Rui. Francisco Assis não precisou de descobrir a pólvora para
o afirmar.
Experiente, com
uma inequívoca capacidade de liderar o PS, capaz de pensar por si próprio, com
um discurso que o salva da suspeita do político de plástico, António Costa
deixará todas estas interrogações no limbo até ao último momento. Um dia,
quando tiver de assumir que os ganhos desse “novo combate político” para mudar
a Europa são incertos ou de longo prazo, terá de fazer escolhas difíceis. O seu
Secretariado poderá implodir e o investimento que faz à esquerda ruirá. Então,
quando tiver de abrir o jogo, a receita de Juan Péron pode tornar-se amarga. Aí
se verá se este abraço à esquerda funcionou ou se não se tratou de um erro a
ser pago nas vésperas das eleições.
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