Mais um prego...no caixão da Europa. |
Mais um prego...
TERESA DE SOUSA
07/12/2014 - PÚBLICO
A Europa está num impasse em múltiplos sentidos que ameaça o seu próprio
projecto de integração.
. O resto da
frase até me custa a escrever, não vá ser mau agoiro: “…no caixão da Europa”.
Refiro-me às medidas que David Cameron anunciou para conter a imigração,
incluindo os cidadãos da própria União Europeia.
É verdade que
muita gente esperava pior e isso pode ser parte da justificação da forma
“calma” com que o seu discurso foi recebido em Berlim ou em Bruxelas. O
primeiro-ministro britânico começara por pôr em causa uma das quatro liberdades
fundamentais da União Europeia, a livre circulação de pessoas. Angela Merkel
fez-lhe um aviso solene: se fosse por aí, então o Reino Unido teria mesmo de
sair da União. O aviso foi tomado a sério em Downing Street. Mas não creio que
esta reacção de alívio signifique apenas isso. Significa também que outros
países, incluindo a Alemanha, estão a estudar restrições semelhantes, enquanto
outros aproveitam (como sempre aconteceu) a imagem da Grã-Bretanha como a má da
fita para disfarçarem a sua própria vontade de seguir um caminho parecido sem
pagar o respectivo preço político.
Politicamente, o
que é mais grave é a discriminação entre cidadãos europeus que as suas
propostas pressupõem. Aliás, Cameron teve tanta consciência disso que, antes de
proferir o discurso, falou com a primeira-ministra polaca dizendo-lhe que o que
ia dizer nada tinha a ver com os muitos polacos que trabalham no Reino Unido.
Então têm a ver com quem? Os romenos, os búlgaros? Os portugueses e os gregos?
Os pobres e os ricos? O arbítrio é bastante óbvio e a discriminação também. Quando
propõe que os trabalhadores europeus precisem de quatro anos de trabalho até
poderem aceder a alguns benefícios sociais, como os créditos fiscais ou o apoio
às famílias, está a criar condições diferentes entre europeus que os tratados
não permitem, ao incluir a igualdade de tratamento. Embora também digam que
quem se desloca deve “estudar, trabalhar ou ter meios de subsistência”. Cameron
agarra-se ao chamado “turismo social” que representa uma minoria entre os
imigrantes europeus. Tem apenas um argumento válido, mas que poderia ser
resolvido de outra maneira: o apoio social aos imigrantes europeus (e aos
outros) é muito maior do que em países como a Alemanha ou a França. Mas isso
não exigiria mudanças tão radicais, que podem incluir a alteração dos tratados.
Perguntava Zoe Williams, colunista do The Guardian: “O Reino Unido quer
realmente ser o país para o qual ninguém quer imigrar?” Já hoje, as
universidades britânicas, que continuam a educar (com as americanas) as elites
de todo o mundo, se ressentem com a queda da afluência de estudantes
estrangeiros.
O tom de
“chantagem” utilizado pelo primeiro-ministro britânico também tem muito que se
lhe diga. Vários analistas britânicos dizem que a verdadeira razão do seu
discurso chama-se UKIP. Cameron enveredou por uma deriva perigosa para tentar
evitar que Nigel Farage lhe roube votos preciosos para conseguir ganhar as
próximas eleições, em Maio. Com a economia a crescer a três por cento (o valor
mais alto das grandes economias desenvolvidas) e o desemprego a cair, Cameron
quer focar aí o debate na economia e cortar terreno a Farage. A sua estratégia
está longe de ser eficaz, envolvendo um risco de não-retorno que ainda lhe pode
sair das mãos. “No que toca à imigração, Cameron está a tentar alimentar a
besta que não pode ficar satisfeita”, escreve Jonathan Freedland no The
Guardian. A forma como o Labour reagiu também não deixa ninguém tranquilo.
Miliband prometeu que a imigração será uma prioridade do seu Governo, e foi
avisando que talvez sejam precisos apenas dois anos e não os quatro de Cameron.
2. Se o Reino
Unido fosse caso único, ainda estávamos bem. O problema é que, do lado de cá da
Mancha, o reforço dos partidos antieuropeus e populistas começa a interferir na
vida democrática de vários países. Vimos o que aconteceu na Suécia, onde o
partido de extrema-direita Democratas da Suécia tem força suficiente no
Parlamento (49 lugares em 349) para levar à demissão do primeiro-ministro
social-democrata, que viu o seu Orçamento chumbado e não teve outro remédio senão
convocar novas eleições. Analistas suecos avisam para o risco de os resultados
serem os mesmos, mantendo o sistema bloqueado. A Suécia, ao contrário do Reino
Unido, mantém a sua política de abertura aos refugiados e aos imigrantes que
chegam de fora da Europa e não sofreu muito com a crise económica. “Os
Democratas da Suécia querem que as eleições sejam um referendo sobre a
imigração”, disse o seu vice-presidente. Na França, Marine Le Pen continua à
frente nas sondagens. E a tentação dos partidos centrais é ceder-lhe alguma
coisa. Nicolas Sarkozy, que acaba de retomar as rédeas da UMP, propõe-se
esvaziar a Frente Nacional com um discurso semelhante. Há outros casos. É este
vírus que se expande pela Europa que corrói os fundamentos do projecto europeu
e que o pode destruir.
Entretanto,
quatro anos depois da queda da Grécia, os resultados da estratégia alemã para
conter a crise do euro estão à vista. A economia europeia estagnou, o risco de
deflação agrava-se, a instabilidade política instala-se em cada vez mais
países.
3. Numa rápida
visita a Lisboa para participar na reunião da Aliança Progressista, o líder do
SPD e vice-chanceler alemão, Sigmar Gabriel, disse algumas coisas que merecem
atenção e que foram úteis para António Costa, que não pode separar o seu
programa de governo do quadro europeu. Gabriel disse que as políticas
“monolíticas” de austeridade não tinham resolvido o problema, mergulhando a
economia num clima de estagnação e alimentando a crise. Elogiou o “Pacote
Juncker”, mas avisou que ele tem de encontrar a forma de ter impacto no curto
prazo. Já tinha dito em Berlim que o achava demasiado vago e demasiado pequeno.
Mesmo assim, a margem de manobra do SPD continua a ser escassa. Os alemães
estão dispostos a criticar Merkel em matéria de política interna. Continuam
absolutamente convencidos de que é ela que melhor defende os seus interesses na
Europa. É uma barreira que o SPD tem dificuldade em transpor. O líder do SPD
entende também que é errado isolar a França (como Berlim está a tentar fazer,
com uma cegueira política lamentável). Tomou, com o seu homólogo Emmanuel
Macron (ministro da Economia do Governo de Valls), uma iniciativa para tentar
aproximar os dois países, pedindo a dois reconhecidos economistas, o francês
Jean Pisani-Ferry e o alemão Henrik Enderlein, para reflectirem sobre a melhor
forma de conjugar rigor financeiro com crescimento. Mas a sua boa vontade tem
limites. Disse em Lisboa que a França precisa de fazer as reformas que os
alemães (com o SPD no Governo) fizeram no início da década passada para
melhorar a competitividade sem aumentar a dívida. As reformas são muito
importantes, têm de ser feitas, mas, como disse António Costa, não pode haver
um modelo único, que não tenha em conta os problemas específicos de cada país.
A Europa está num
impasse em múltiplos sentidos que ameaça o seu próprio projecto de integração.
O Reino Unido é necessário à Europa, não apenas porque a sua saída tiraria à
economia europeia uma grande fatia, numa altura em que tem de enfrentar grandes
economias, ou porque reduziria drasticamente a sua capacidade de defesa (embora
ainda sobre a NATO). Mas também a sua presença é importante para equilibrar o
peso alemão que, se for demasiado, terá consequências políticas muito
negativas. Enfim, falar de caixão pode ser ainda excessivo. Mas desvalorizar o
que se passa é uma boa ajuda para uma morte antecipada. Esperemos que não. Como
diz um amigo meu, acreditar na Europa, como nós sempre acreditámos, passou a
ser uma matéria de fé.
Sem comentários:
Enviar um comentário