sábado, 6 de dezembro de 2014

Mais um prego...no caixão da Europa.

Mais um prego...no caixão da Europa.

Mais um prego...
TERESA DE SOUSA 07/12/2014 - PÚBLICO
A Europa está num impasse em múltiplos sentidos que ameaça o seu próprio projecto de integração.

. O resto da frase até me custa a escrever, não vá ser mau agoiro: “…no caixão da Europa”. Refiro-me às medidas que David Cameron anunciou para conter a imigração, incluindo os cidadãos da própria União Europeia.

É verdade que muita gente esperava pior e isso pode ser parte da justificação da forma “calma” com que o seu discurso foi recebido em Berlim ou em Bruxelas. O primeiro-ministro britânico começara por pôr em causa uma das quatro liberdades fundamentais da União Europeia, a livre circulação de pessoas. Angela Merkel fez-lhe um aviso solene: se fosse por aí, então o Reino Unido teria mesmo de sair da União. O aviso foi tomado a sério em Downing Street. Mas não creio que esta reacção de alívio signifique apenas isso. Significa também que outros países, incluindo a Alemanha, estão a estudar restrições semelhantes, enquanto outros aproveitam (como sempre aconteceu) a imagem da Grã-Bretanha como a má da fita para disfarçarem a sua própria vontade de seguir um caminho parecido sem pagar o respectivo preço político.

Politicamente, o que é mais grave é a discriminação entre cidadãos europeus que as suas propostas pressupõem. Aliás, Cameron teve tanta consciência disso que, antes de proferir o discurso, falou com a primeira-ministra polaca dizendo-lhe que o que ia dizer nada tinha a ver com os muitos polacos que trabalham no Reino Unido. Então têm a ver com quem? Os romenos, os búlgaros? Os portugueses e os gregos? Os pobres e os ricos? O arbítrio é bastante óbvio e a discriminação também. Quando propõe que os trabalhadores europeus precisem de quatro anos de trabalho até poderem aceder a alguns benefícios sociais, como os créditos fiscais ou o apoio às famílias, está a criar condições diferentes entre europeus que os tratados não permitem, ao incluir a igualdade de tratamento. Embora também digam que quem se desloca deve “estudar, trabalhar ou ter meios de subsistência”. Cameron agarra-se ao chamado “turismo social” que representa uma minoria entre os imigrantes europeus. Tem apenas um argumento válido, mas que poderia ser resolvido de outra maneira: o apoio social aos imigrantes europeus (e aos outros) é muito maior do que em países como a Alemanha ou a França. Mas isso não exigiria mudanças tão radicais, que podem incluir a alteração dos tratados. Perguntava Zoe Williams, colunista do The Guardian: “O Reino Unido quer realmente ser o país para o qual ninguém quer imigrar?” Já hoje, as universidades britânicas, que continuam a educar (com as americanas) as elites de todo o mundo, se ressentem com a queda da afluência de estudantes estrangeiros.

O tom de “chantagem” utilizado pelo primeiro-ministro britânico também tem muito que se lhe diga. Vários analistas britânicos dizem que a verdadeira razão do seu discurso chama-se UKIP. Cameron enveredou por uma deriva perigosa para tentar evitar que Nigel Farage lhe roube votos preciosos para conseguir ganhar as próximas eleições, em Maio. Com a economia a crescer a três por cento (o valor mais alto das grandes economias desenvolvidas) e o desemprego a cair, Cameron quer focar aí o debate na economia e cortar terreno a Farage. A sua estratégia está longe de ser eficaz, envolvendo um risco de não-retorno que ainda lhe pode sair das mãos. “No que toca à imigração, Cameron está a tentar alimentar a besta que não pode ficar satisfeita”, escreve Jonathan Freedland no The Guardian. A forma como o Labour reagiu também não deixa ninguém tranquilo. Miliband prometeu que a imigração será uma prioridade do seu Governo, e foi avisando que talvez sejam precisos apenas dois anos e não os quatro de Cameron.

2. Se o Reino Unido fosse caso único, ainda estávamos bem. O problema é que, do lado de cá da Mancha, o reforço dos partidos antieuropeus e populistas começa a interferir na vida democrática de vários países. Vimos o que aconteceu na Suécia, onde o partido de extrema-direita Democratas da Suécia tem força suficiente no Parlamento (49 lugares em 349) para levar à demissão do primeiro-ministro social-democrata, que viu o seu Orçamento chumbado e não teve outro remédio senão convocar novas eleições. Analistas suecos avisam para o risco de os resultados serem os mesmos, mantendo o sistema bloqueado. A Suécia, ao contrário do Reino Unido, mantém a sua política de abertura aos refugiados e aos imigrantes que chegam de fora da Europa e não sofreu muito com a crise económica. “Os Democratas da Suécia querem que as eleições sejam um referendo sobre a imigração”, disse o seu vice-presidente. Na França, Marine Le Pen continua à frente nas sondagens. E a tentação dos partidos centrais é ceder-lhe alguma coisa. Nicolas Sarkozy, que acaba de retomar as rédeas da UMP, propõe-se esvaziar a Frente Nacional com um discurso semelhante. Há outros casos. É este vírus que se expande pela Europa que corrói os fundamentos do projecto europeu e que o pode destruir.

Entretanto, quatro anos depois da queda da Grécia, os resultados da estratégia alemã para conter a crise do euro estão à vista. A economia europeia estagnou, o risco de deflação agrava-se, a instabilidade política instala-se em cada vez mais países.

3. Numa rápida visita a Lisboa para participar na reunião da Aliança Progressista, o líder do SPD e vice-chanceler alemão, Sigmar Gabriel, disse algumas coisas que merecem atenção e que foram úteis para António Costa, que não pode separar o seu programa de governo do quadro europeu. Gabriel disse que as políticas “monolíticas” de austeridade não tinham resolvido o problema, mergulhando a economia num clima de estagnação e alimentando a crise. Elogiou o “Pacote Juncker”, mas avisou que ele tem de encontrar a forma de ter impacto no curto prazo. Já tinha dito em Berlim que o achava demasiado vago e demasiado pequeno. Mesmo assim, a margem de manobra do SPD continua a ser escassa. Os alemães estão dispostos a criticar Merkel em matéria de política interna. Continuam absolutamente convencidos de que é ela que melhor defende os seus interesses na Europa. É uma barreira que o SPD tem dificuldade em transpor. O líder do SPD entende também que é errado isolar a França (como Berlim está a tentar fazer, com uma cegueira política lamentável). Tomou, com o seu homólogo Emmanuel Macron (ministro da Economia do Governo de Valls), uma iniciativa para tentar aproximar os dois países, pedindo a dois reconhecidos economistas, o francês Jean Pisani-Ferry e o alemão Henrik Enderlein, para reflectirem sobre a melhor forma de conjugar rigor financeiro com crescimento. Mas a sua boa vontade tem limites. Disse em Lisboa que a França precisa de fazer as reformas que os alemães (com o SPD no Governo) fizeram no início da década passada para melhorar a competitividade sem aumentar a dívida. As reformas são muito importantes, têm de ser feitas, mas, como disse António Costa, não pode haver um modelo único, que não tenha em conta os problemas específicos de cada país.


A Europa está num impasse em múltiplos sentidos que ameaça o seu próprio projecto de integração. O Reino Unido é necessário à Europa, não apenas porque a sua saída tiraria à economia europeia uma grande fatia, numa altura em que tem de enfrentar grandes economias, ou porque reduziria drasticamente a sua capacidade de defesa (embora ainda sobre a NATO). Mas também a sua presença é importante para equilibrar o peso alemão que, se for demasiado, terá consequências políticas muito negativas. Enfim, falar de caixão pode ser ainda excessivo. Mas desvalorizar o que se passa é uma boa ajuda para uma morte antecipada. Esperemos que não. Como diz um amigo meu, acreditar na Europa, como nós sempre acreditámos, passou a ser uma matéria de fé.

Sem comentários: