domingo, 6 de abril de 2014

Vistos nem tudo o que reluz é ouro. Um embaraço europeu que quase todos sacodem para o lado.

EDITORIAL / Domingo PÚBLICO / 6-4-2014.
Vistos nem tudo o que reluz é ouro
Os vistos dourados têm vantagens para a economia. Mas levantam problemas, alguns de princípio

Na página de Internet do SEF nunca se fala em vistos gold. O conceito aparece com o pomposo nome técnico de ARI – Autorização de Residência para Actividade de Investimento. Já no nome se encontra um primeiro equívoco; nem tudo o que dá direito ao visto dourado se encaixa no conceito tradicional de investimento. Comprar casas que valem mais de 500 mil euros ou abrir um negócio que crie emprego são investimentos. Já uma simples transferência bancária de um milhão de euros é questionável; até porque não existe nenhuma obrigação de o dinheiro depositado vir a ser efectivamente gasto (e não apenas parqueado) no país.
Os vistos gold também podem ser vistos a partir de um prisma social, e esta abordagem foi sintetizada de uma forma bastante lúcida por Rui Pena Pires. Numa entrevista à Lusa, o sociólogo defende que o visto dourado “viola o princípio da universalidade, dos critérios abstractos, gerais, impessoais, de acesso aos direitos”. O estrangeiro tem em Portugal “um estatuto de exclusão parcial de direitos”, diz o professor universitário. “O que estamos a dizer é que só damos esse estatuto a quem o comprar”.
E quem o compra, já se percebeu, nem sempre tem a melhor das intenções. O visto também é uma forma simpática de tirar o dinheiro (e a própria pessoa) do escrutínio das autoridades judiciais do país de origem. Serão uma minoria com certeza, mas o facto de a PGR estar a investigar dois investidores estrangeiros, por suspeitas de branqueamento de capitais, é a prova de que o fenómeno existe.
Naturalmente que o visto gold tem vantagens. Para o mercado imobiliário é uma lufada de ar fresco. E quem vem para o país criar postos de trabalho é com certeza bem-vindo. O único senão é que dos 787 vistos gold já atribuídos, apenas se conhece um caso isolado de um investidor que pediu a autorização de residência para investir e criar postos de trabalho.
Um dos argumentos dos defensores do visto gold é que se os outros países da Europa o fazem, nós também o devemos fazer. Considerando este argumento válido, poderíamos ter ido mais longe, como por exemplo o Reino Unido, que abre as suas fronteiras a quem investir dinheiro na dívida pública.
Há países, como Malta, que foram mais longe e já não “vendem” autorizações de residência, mas a própria nacionalidade. Na Comissão Europeia olha-se para o fenómeno (que permite aos portadores de vistos deslocar-se livremente por todos os países de Schengen) com algum embaraço. E o mínimo que se poderia exigir era uma uniformização de regras. Aliás, é o próprio Tratado de Lisboa que prevê uma competência partilhada na matéria. Caso contrário, os vários países que querem atrair dinheiro vindo de fora do espaço comunitário tenderão a concorrer entre si através do afrouxamento dos controles e dos critérios de concessão de vistos. E nesse caso o embaraço poderá vir a ser ainda maior.



PERGUNTAS & RESPOSTAS
PÚBLICO / 6-4-2014

É uma autorização de residência para actividade de investimento (ARI) que permite a cidadãos de Estados fora da UE dispensarem o visto para entrarem em território nacional, poderem residir noutro país, circular pelo espaço Schengen sem necessidade de visto e beneficiar de reagrupamento familiar. Ao fim de cinco anos, e respeitando os requisitos da lei, poderá aceder à residência permanente em Portugal; ao fim de seis anos e também cumprindo as premissas legais, pode aceder à nacionalidade portuguesa.

Quais os requisitos para a candidatura?

Fazer um dos investimentos mínimos obrigatórios durante cinco anos (o cumprimento do prazo é atestado por declaração de compromisso de honra), ter um registo criminal limpo (não ter sido condenado por crime que em Portugal seja punível com pena privativa de liberdade de duração superior a um ano; não estar no período de interdição de entrada em território nacional por ter sido expulso; não estar referenciado no sistema de informação Schengen; não estar referenciado no sistema integrado de informações do SEF para efeitos de não admissão).

Quais os investimentos mínimos?

Têm que estar concretizados no momento da entrega da candidatura pelo menos um de três investimentos: transferência para um banco português de capitais no montante igual ou superior a um milhão de euros, ou criação de pelo menos 10 postos de trabalho, ou a aquisição de bens imóveis de valor igual ou superior a 500 mil euros.

Como se comprovam os investimentos?

No caso da transferência de capitais (incluindo investimento em acções ou quotas de sociedades) é necessária a declaração de uma instituição financeira autorizada para a actividade em território nacional, que prove a transferência. No caso dos dez postos de trabalho é preciso provar que foram criados e que os trabalhadores foram inscritos na Segurança Social. No caso da aquisição de imóveis é necessária a prova da propriedade dos bens através do contrato de compra ou do contrato promessa de compra e venda dos imóveis, incluindo a declaração de uma instituição financeira autorizada a actuar em Portugal que ateste a transferência efectiva para a aquisição ou concretização do sinal de promessa de compra no valor igual ou superior a 500 mil euros.

Que outros documentos são exigidos?

Passaporte ou outro documento válido, comprovativo da entrada e permanência legal em território nacional, um comprovativo de seguro de saúde, requerimento para consulta do registo criminal português pelo SEF, um certificado de registo criminal e a prova da situação contributiva regularizada.

A que outras obrigações estão vinculados?

Para as renovações no final do primeiro, terceiro e quinto ano, os detentores do visto gold poderão ter que demonstrar, respectivamente, que estiveram em Portugal pelo menos sete dias seguidos ou interpolados no primeiro ano, e 14 dias seguidos ou interpolados nos seguintes períodos de dois anos. Também têm que comprovar o pagamento dos impostos sobre os imóveis.

Quais os custos processuais?

O SEF cobra 513,75 euros pela abertura do processo e mais 80,08 euros por cada membro da família. O visto inicial para o candidato e para a família custa, por pessoa, 5137,5 euros. A renovação custa 2568,75 euros.
M.L.



Um embaraço europeu que quase todos sacodem para o lado
Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas / PÚBLICO / 6-4-2014

A tendência crescente de grande parte dos países da União Europeia (UE) de “vender” autorizações de residência em troca de investimento no território nacional — mais conhecidas em Portugal por “vistos gold” — está a causar algum embaraço em Bruxelas, sobretudo porque ninguém parece saber o que fazer. Oficialmente, várias fontes europeias contactadas pelo PÚBLICO sacodem a água do capote, lembrando que a concessão de autorizações de residência a cidadãos de países exteriores à UE constitui uma competência nacional. Juridicamente, não é totalmente assim: desde o Tratado de Lisboa de 2009 que esta passou a ser uma competência partilhada entre a UE e os seus Estados-membros. Só que, como a Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, ainda não regulamentou esta competência, a questão permanece efectivamente nas mãos dos Estados.
Quase todos os membros da UE têm esquemas de concessão acelerada e facilitada de residência a cidadãos “endinheirados” de países terceiros. A tendência acentuou-se nos últimos anos, sobretudo nos países com maiores dificuldades financeiras. Nestes casos, a concessão destas autorizações está sobretudo ligada à compra de imobiliário, no valor mínimo de 500 mil euros no caso de Portugal e Espanha, 300 mil em Chipre e 250 mil na Grécia.
Nos outros países europeus, a regra tem mais a ver com investimentos em empresas ou em títulos do tesouro. A Holanda tem um esquema de concessão de residência para quem invista 1,250 milhões em empresas nacionais. A Alemanha é menos exigente: 250 mil euros para o arranque e operação de empresas.
No Reino Unido, a condição é a compra de títulos do Tesouro no valor mínimo de 1,5 milhões de libras. Outros esquemas comparáveis existem em países da UE como Bélgica, França, Irlanda, Áustria ou Chipre, e em vários países terceiros, como EUA, Canadá ou Singapura.
No caso da UE, a grande questão que estes vistos especiais levantam é que permitem aos seus detentores deslocarem-se pela totalidade da zona Schengen sem controlos nas fronteiras. Os peritos europeus consideram que todos estes esquemas, sem serem exactamente ilegais, desvirtuam as regras europeias porque permitem aos “imigrantes ricos” contornar a política comum de vistos, “comprando” o seu direito de residência. Tanto mais, alegam, que o direito de residência resulta por definição de uma ligação efectiva do imigrado ao país em causa, sobretudo em termos de residência efectiva e de trabalho, o que não é o caso da maior parte dos “vistos gold”.
Em Portugal, por exemplo, a lei determina que os detentores de “vistos gold” só precisam de estar fisicamente presentes no país durante 7 dias no primeiro ano, e 14 nos anos seguintes. O que significa que as condições para os imigrantes ricos são muito menos exigentes do que para os imigrantes que entram pela via “normal” e que, apesar de viverem, trabalharem e pagarem impostos no país de destino, perdem o direito de residência se se ausentarem por alguns meses. Por todas estas razões, os “vistos gold” contrariam, para estes peritos europeus, um princípio básico do tratado da UE, que é o da “cooperação leal” entre Estados, porque representa, no mínimo, uma entorse, à política comum de vistos e ao espírito de Schengen.
A Comissão reconhece nas entrelinhas precisamente a mesma coisa mas insiste em lavar as mãos da questão insistindo em que se trata de uma competência dos Estados. Só que, mesmo nas áreas de competência nacional, o princípio da “cooperação leal” implica, segundo o que está estipulado logo no artigo 4.º do Tratado da UE, que “os Estadosmembros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União”. Por que é que a Comissão nunca se deu ao trabalho de regulamentar as autorizações de residência é uma questão para a qual ninguém parece ter resposta.
Por enquanto, Bruxelas só se insurgiu verdadeiramente no caso de Malta, que foi bem mais longe do que todos os outros países ao “vender” já não tanto autorizações de residência, mas a própria nacionalidade, ou cidadania.
Na minúscula ilha do Mediterrâneo, a lei permitia inicialmente a concessão imediata da nacionalidade a todos os cidadãos dispostos a transferir 1,1 milhões de euros para o país em investimentos e depósitos. Depois dos protestos vigorosos da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, o Governo alterou a lei para acrescentar uma obrigação de residência de um ano prévia à concessão da nacionalidade. Com este esquema, o Estado maltês espera arrecadar uma receita anual de mil milhões de euros para investimentos em infra-estruturas.

Os defensores dos vistos dourados consideram os dois casos muito diferentes, alegando que a concessão de residência é um direito temporário, enquanto a cidadania é permanente e permite aos visados não só deslocarem-se, mas instalarem-se efectivamente em qualquer país de Schengen. Os opositores dos “vistos dourados” lembram, no entanto, que, na maior parte dos países europeus, o direito de residência de cidadãos de países terceiros abre a porta à obtenção da nacionalidade ao fim de cinco ou seis anos, como é o caso em Portugal.

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