ENTREVISTA
Sampaio da Nóvoa: “O meu ponto de
partida é o da crítica das políticas de austeridade”
ÁUREA SAMPAIO e
PAULO PENA 10/05/2015 - PÚBLICO
Considera “insuportável” a ideia
de “arco da governação” e garante que a coisa que sabe fazer melhor é promover
entendimentos. “Estabilidade, para mim, não é ficar tudo na mesma.”
Candidata-se para “construir um projecto de mudança em Portugal e dar um contributo
para a mudança na Europa”.
A entrevista
durou mais de duas horas. À saída da Sociedade Portuguesa de Geografia, no
centro de Lisboa, António Nóvoa, 60 anos, foi abordado por um desconhecido que
já o tratou por “senhor Presidente”. Ele, que se diz “muito tímido”, lá foi,
ouvir o que tinha para lhe dizer aquele português - porque diz que gosta de
ouvir. Antes, mostrara-se convicto de que “as pessoas estão cansadas dos
discursos de plástico, do politicamente correcto, do que não se pode dizer isto
porque se pode perder cinco votos”. Ainda sem o apoio oficial de nenhum
partido, e depois de ter renunciado ao salário de professor na Universidade, o
antigo reitor elege uma palavra que vai definir o resultado das eleições
presidenciais de 2016: “Confiança.”
Se lhe pedisse
para se apresentar aos portugueses como o faria?
[Pausa] Do ponto
de vista biográfico, como alguém que é do Norte, de Valença, que viveu sempre
no Minho até aos 10 anos de idade, muito marcado pela minha mãe, mas sobretudo
pela família do meu pai, com os seus antepassados, como Alberto Sampaio, e toda
essa Geração de 70. Uma família do Norte, muito religiosa, católica, unida.
Continuamos a encontrar-nos nas festas de Páscoa, Natal. Com uma marca muito
forte do meu pai, juiz, sobretudo pelo lado da independência, da
imparcialidade. E depois um percurso meu, sempre marcado por uma certa
diferença. Por raramente ou nunca ter optado pelo caminho mais previsível.
Gosto de pensar-me como alguém que promove mudanças. Desde os meus 16 anos, quando
cheguei a Coimbra, até hoje, já lá vão 44 anos…, tive uma preocupação muito
grande com as questões políticas, com as causas sociais, da igualdade, que
marcam o que é hoje a minha maneira de pensar.
Estudou
Matemática, Teatro no Conservatório, Ciências da Educação e História. Foi
inquietação ou inconstância?
Foi sempre
inquietação. Ontem [quinta-feira] o professor José Barata Moura, que teve a
generosidade de proferir o elogio do meu doutoramento honoris causa na
Universidade do Algarve, numa passagem da sua intervenção brilhante, dizia que
eu era um transportador de desassossegos. Eu revejo-me nesta frase. Para lhe
dar um exemplo: luto até ao último minuto por uma coisa, mas ainda ela não está
acabada, eu já estou a pensar noutra.
Como é que este
percurso o pode ajudar, nas suas ambições actuais?
É muito difícil
falar de mim…
Mas tem de se dar
a conhecer, porque só as elites o conhecem. Tem essa noção?
Mais ou menos… É
muito impressionante o fenómeno de notoriedade das últimas semanas. Não posso
ir a lado nenhum sem que venha uma pessoa falar comigo, que me cumprimente, que
me dê um recado.
Isso ainda não o
incomoda?
Não me incomoda
absolutamente nada. As pessoas colam à vida académica, e percebo que colem,
este peso do professor catedrático, que é uma designação pela qual nunca me
apresento, Sou professor, ponto. Isso é mil vezes mais importante. Colam à
ideia do reitor um elitismo que eu não tenho. Na universidade jogava à bola com
os funcionários da reitoria. Hoje jogo à bola todas as semanas com alguns dos
meus amigos de há 40 anos. Mas voltando à pergunta inicial, vivi em tantas
realidades diferentes, Lisboa, Coimbra, Genebra, Paris, Nova Iorque, Aveiro, e
isso deu-me uma mundividência que me dá facilidade para adaptar-me aos
ambientes. A outra marca do meu percurso é a independência.
É um tímido
sociável?
Sou. Sou muito
tímido e por isso é que gosto de falar para muitas pessoas. Gosto das conversas
a dois ou a três, como esta em que estamos agora, e gosto da fala anónima. Não
gosto do ambiente intermédio, que é aquele das 100 pessoas, em que mais ou
menos nos conhecemos… Na verdade, eu tenho a noção exacta de onde vem a minha
aprendizagem de falar em público. Vem do Brasil. Fui pela primeira vez
convidado para ir ao Brasil em 1994, pelo Paulo Freire. Daí até agora, em
cálculos redondos, por baixo, eu devo ter feito umas 500 ou 600 palestras no
Brasil.
Talvez por isso
alguém disse que gostava que se candidatasse à Presidência do Brasil.
Esse alguém, que
eu acabei de saber agora, ao almoço, é o senhor Cristovam Buarque [senador,
ex-ministro da Educação, consultor da Unesco e do PNU, quarto classificado nas
eleições ganhas por Lula], que é uma imensa referência no Brasil. Já tive de
falar em estádios de futebol… Na minha última palestra, que era uma coisa para
professores universitários, toda bonitinha, chego lá e era um ginásio de
basquete, com quatro mil miúdos de 17 anos. Isso deu-me um treino
impressionante. Por isso, em relação à timidez, funciono mal no registo
intermédio.
Já percebemos que
os comícios não vão ser um problema. Mas também se diz que é muito frugal e não
gosta de comprar roupa. Como se vai adaptar?
Terão de me
perguntar daqui a uns meses. Nós nem sempre conseguimos ser completamente
autênticos, mas há uma marca de procura de autenticidade na minha vida. Nada me
indicava para ser reitor. Mas acho que exerci o cargo sem nunca renunciar à
minha frugalidade, à minha sobriedade. Fui algumas vezes de bicicleta para a
reitoria, e não era para fazer um número, nunca tive nenhum fotógrafo atrás a
tirar fotografias. Fui porque sempre que posso não utilizar automóvel não
utilizo.
Imagina-se a ir
de bicicleta ou de transportes públicos pra Belém?
Imagino. Não me
parece ser uma coisa impensável.
Há o protocolo e
a segurança, e o Presidente da República não manda nelas, sabe disso?
Veremos… [Risos]
Falamos daqui a dois anos. É evidente que há equilíbrios. E a minha maneira de
ser, essa frugalidade, não pode nunca ser vista como falta de dignidade na
representação da República. Mas, e isto são coisas que eu não digo muito, por
essa frugalidade, sempre que fui representar a Universidade nunca recebi um
tostão de ajudas de custo. Nunca quis. Acredito que as pessoas percebem essa
autenticidade. As pessoas estão um bocadinho cansadas é dos discursos de
plástico, do politicamente correcto, do não se pode dizer isto porque se pode
perder cinco votos. Acho que esta eleição se vai ganhar na palavra confiança.
Se as pessoas perceberem que lhes falo com autenticidade.
Diz que quer
fazer uma campanha diferente. Como?
Quero fazer uma
campanha de redes animadas pelas pessoas. Não quero ter uma campanha
centralizada, com directivas. Quero que as pessoas se organizem. Muitas vezes
vão acontecer coisas com as quais eu não esteja inteiramente de acordo, mas
quero que isso venha de um movimento de baixo. Nos últimos dez dias, felizmente,
já são muitos milhares.
Assim à partida
parece um pouco anárquico. Uma campanha tem mensagens…
Há esse risco, é
evidente, mas é diminuído quando temos uma estratégia, linhas de candidatura e
agora de seguida a carta de princípios, até ao final de Maio. Quem quiser
colaborar fá-lo neste enquadramento. Havendo esse risco, ele é infinitamente
menor do que o de uma campanha centralizada, com directivas definidas.
Preferirei sempre morrer ingénuo do que amargurado. Acredito na liberdade das
pessoas. Recebi há duas horas um sms de pessoas que eu não conheço que se
querem organizar, “não sei se há problema, mas nós sempre estivemos ligados ao
CDS”. Não tem nenhum problema. Se aquelas pessoas se identificam comigo, e com
as linhas da campanha, eu quero é que as pessoas se organizem.
Mas os
portugueses não costumam ter muita iniciativa de organização. Sem estrutura vai
conseguir ter um fio condutor?
O fio condutor
vai ter de ser dado por mim. Uma candidatura presidencial é unipessoal. Não há
10 pessoas a falar. O único compromisso que conta é o meu. Isto dito, eu não
tenho nada, nada, o preconceito sobre os portugueses que definiu. Eu sei que é
isso que dizemos sobre nós próprios há 300 anos. Todos os intelectuais e toda a
conversa sobre os portugueses aponta nesse sentido. Sei que é o País que vem
nos livros, que somos desorganizados, pelo desenrascanço, mas não é o País que
eu conheço. Se há coisa que os últimos quatro anos nos mostraram foi uma enorme
capacidade de iniciativa dos portugueses e a capacidade de organizar soluções
para muitos problemas sociais. Esta austeridade ainda não acabou com o País
porque essas redes sociais, essa capacidade de iniciativa, apareceu em força
nos últimos quatro anos.
Não vai ter
comissão de honra, nem comissão política?
Comissão de
Honra, no sentido tradicional, não. Mas é evidente que a partir de certa altura
queremos divulgar os nomes de muitas pessoas que estão a dar apoio a esta
candidatura. Esta é uma candidatura republicana. Não fazemos convites. Quem
quiser vir, que venha. Até agora há um grupo de cerca de 12 pessoas, mais
operacional, que se encontra quase diariamente. É gente na casa dos quarenta e
poucos anos, totalmente voluntárias. Duas ou três vão deixar os empregos para
se juntarem a isto a tempo inteiro. Para a semana abriremos a sede. Depois há
um conjunto de pessoas com que me reúno, tomo pequeno-almoço, almoço, telefono,
sempre de um modo informal. Não gostaria muito que ganhasse organicidade.
Quando anunciei a minha candidatura no dia 29 desliguei-me da Universidade.
Agora também não tenho salário. Achei que o devia fazer. Iria viver a campanha
a achar que devia estar a dar uma aula…
Tirou uma
licença?
Sem vencimento.
Quando vier a ter
apoios partidários como é que vai ser? Vão integrar-se nessa forma de fazer
campanha que defende?
Fico contente por
utilizar o “quando”, eu teria tendência a utilizar o “se” [Risos]. Se vier a
ter, as pessoas terão de funcionar no interior destas dinâmicas. É uma
característica pessoal: a pior coisa que me podem fazer é tentar encostar-me à
parede. Há muita arrogância no poder em Portugal. As pessoas a mim levam-me por
bem, mas constrangendo-me é impossível. Eu vou fazer o possível dos impossíveis.
Com uma entrega total. Mas quem vai fazer isto são os portugueses.
Já sabe quanto
vai custar a campanha?
Temos um cálculo.
Queremos fazer uma campanha com poucos custos. Não teremos um aparato
centralizado que depois terá de colocar outdoors nas rotundas todas do País.
Depois de termos analisado todas as campanhas anteriores, para fazermos uma
campanha séria, que chegue às pessoas, precisamos de cerca de um milhão e meio
de euros. É um bocadinho menos do que se gastou em campanhas anteriores. Se este
processo correr bem, se tiver os níveis de votação que pensamos que venha a
ter, a subvenção do Estado cobrirá esse valor. Teremos de recolher alguns
donativos, eu terei de recorrer às poucas poupanças que tenho. Não é líquido
que se possa pedir um empréstimo… Se correr mal, o risco é meu e estou cá para
isso.
Diz-se um homem
de esquerda. Nunca houve maiorias de coligação à esquerda. Acha que o sistema
político está demasiado inclinado ao centro?
Acho que mais do
que inclinado ao centro, criou-se uma convicção de que só se podia governar ao
centro. É o famoso “arco da governação”, que eu acho uma coisa verdadeiramente
insuportável, até porque é um conceito que logo à partida exclui 20% dos
portugueses. A inevitabilidade do centro é a inevitabilidade de certas
políticas. Sou completamente contrário a isso. As sociedades são de uma enorme
pluralidade e essa pluralidade deve ser respeitada ao limite. Daqui decorre uma
segunda questão central: a capacidade de fazer entendimentos. A partir do
respeito pela diversidade, temos de ter a capacidade de fazer os entendimentos
que resultem da vontade popular.
Sente-se capaz,
como Presidente, de pôr os partidos a falar e a fazer entendimentos?
É a história da
minha vida. Sempre o fiz na Universidade. Eu não faço consensos para vivermos a
nossa vidinha o melhor possível, faço consensos em torno de projectos. Sinto-me
muito capaz disso. É talvez de todas a coisas a que faço melhor. Essa amálgama
do centro é uma coisa muito irritante em Portugal.
Daria posse a um
Governo minoritário?
Claro. Não vejo
nenhum drama nisso, desde que seja possível encontrar entendimentos e
equilibrios que permitam encontrar estabilidade na governação. É muito
importante haver estabilidade e que os portugueses sintam que o Presidente
garante essa estabilidade. Mas estabilidade, para mim, não é ficar tudo na
mesma.
Cavaco Silva já
fez saber que não dará posse a um Governo minoritário. Se vencer as eleições à
primeira volta, embora só tome posse a 9 de Março, vai estar a assistir ao
processo de formação do Governo e às negociações do Orçamento de fora. Tem
disponibilidade, depois de eleito, para ajudar o Presidente actual, caso ele
lhe peça?
Em democracia, os
mandatos cumprem-se até ao último dia. O Presidente tem um órgão próprio de
aconselhamento, que é o Conselho de Estado. Contudo, se o Presidente entender
que ouvir-me nesse contexto pode ser-lhe útil, estarei sempre disponível, como
sempre estive. Mas a responsabilidade pertence ao actual Presidente.
Consegue ver-se a
dar posse a um Governo do Bloco Central?
Consigo. Se me
pergunta se esse é o meu ponto de partida, não é. Espero que seja claro para
toda a gente que o meu ponto de partida é o da crítica das políticas de
austeridade.
Ouviu Carvalho da
Silva dizer que ainda não existem candidatos que ponham em causa a austeridade?
Não, não ouvi. A
primeira parte do meu discurso de apresentação de candidatura é toda sobre
isso, uma crítica das políticas de austeridade. Fi-lo de maneira intencional,
poderia ter começado pelos poderes presidenciais. Quis deixar essa marca na
minha declaração de candidatura. Isso para mim é muito claro. Quando se fala em
Portugal de Bloco Central o que se fala é em tornar inevitáveis essas políticas
de austeridade. Não sou favorável a isso. Mas o Presidente tem de tirar as
conclusões da vontade das pessoas. Eu não posso substituir-me a essa vontade.
Se num determinado momento resultar que essa é a única possibilidade, é
evidente que terá de se encontrar uma solução.
Gostaríamos de
saber o que faria em algumas situações concretas. A primeira é: assinaria o
Acordo de Parceria Transatlântica para o Comércio (TTIP)?
Antes deixe-me
esclarecer um ponto. Um candidato a Presidente tem de ir um bocadinho mais
longe do que nas suas funções enquanto Presidente, O Presidente não tem funções
legislativas, nem executivas, e tem de respeitar isso até ao limite, mas um
candidato não pode responder a tudo dizendo que não tem nada para dizer… Vou
responder a algumas questões por essa razão. Em relação ao Tratado
Transatlântico tenho algumas reservas sobre a maneira como está a ser
negociado. Creio que podemos estar de novo perante uma situação que já nos
aconteceu antes com a União Europeia, que é aderirmos a um espaço comercial
mais amplo para o qual a nossa economia pode não estar preparada. Estamos
sempre a jogar um jogo, como nós percebemos hoje em relação ao Euro, que parece
aberto, de iguais, mas onde uns têm umas armas e os outros têm armas
diferentes. Depois tenho a sensação de que sempre que estão em jogo tratados em
que intervêm os Estados e grandes grupos económicos, quase sempre são os
interesses económicos privados que acabam por prevalecer. Ou porque têm
melhores advogados, consultores ou influência. Quase nunca, ou nunca, estas
coisas resultam a favor do público ou dos Estados.
Se houver um novo
tratado europeu, pondera convocar um referendo?
Pondero, sim. O
Presidente não pode convocar um referendo por iniciativa própria, pode criar
condições para que isso aconteça. Se houver nos próximos anos uma revisão dos
tratados, temos obrigação de fazer um debate muitíssimo maior e mais informado.
O Presidente deve sinalizar perante os partidos que não ratificará um tratado
se não houver um amplo debate na sociedade. E em casos de tratados que afectem
de forma significativa a soberania nacional o Presidente pode dizer que entende
que devem ser submetidos a referendo. O meu entendimento é que se o Presidente
é chamado a ratificar é porque pode escolher entre ratificar ou não. Se não,
não vale a pena… Alguém traz um carimbo e assina pelo Presidente. O que se
verifica hoje é que a nossa adesão à Europa foi sendo feita de forma pouco
informada.
Mário Soares
promovia debates com as célebres presidências abertas. Vai fazer o mesmo?
Julgo que os
portugueses precisam de um Presidente mais próximo, mais presente, que as ouça
mais, que seja capaz de perceber os seus problemas. A minha ideia é ter
presidências descentralizadas, onde eu posso estar um mês num lugar, outro mês
no outro, mas é claro que é preciso ponderar com muito cuidado, porque se isto
tem custos é melhor ninguém se meter a fazê-lo. A dimensão da coesão social -
da pobreza, da luta contra as desigualdades, contra a austeridade que está a
massacrar o povo português - e da coesão territorial - a desertificação, o
despovoamento, aldeias inteiras que estão a desaparecer - são duas áreas
centrais da minha acção presidencial.
Defende a
renegociação da dívida “até ao limite do possível”. Como é que isso pode ser
feito?
O limite nós não
sabemos nunca. Quem está na ciência sabe que nunca fazemos o que é possível,
porque isso já os outros fizeram. Nós vamos tentar descobrir uma coisa
impossível, que nunca ninguém fez até agora.
Daí a pergunta:
vendo o que se está a passar com a Grécia, não é impossível?
Vai ser
obviamente um processo duro e difícil. Há compromissos que foram assumidos e
nós, honradamente, temos de cumprir. Mas não precisamos de o fazer de forma
passiva, ordeira, e como bons alunos. Podemos fazê-lo explicando em todos os
lugares, dentro e fora de Portugal, fazendo alianças com outros países em
situação idêntica, tentando criar as condições mais vantajosas, para que o
problema - uma dívida insustentável - possa ganhar a possibilidade de ser
renegociada. Sem isso resta-nos o caminho de sermos um país pobre, onde há cada
vez menos capacidade competitiva, onde há cada vez menos jovens, que vai de ano
para ano piorando nas suas condições sociais. Mas há muita coisa que vai
acontecer nos próximos meses ou anos e nós não conseguimos sequer imaginar
agora.
Para já, os
credores estão a fechar a porta a Varoufakis e a Tsipras…
Acho que o jogo
ainda não chegou ao fim… Está a tirar conclusões do processo grego que eu ainda
não sou capaz de tirar. Vamos ter de seguir o que se segue na Grécia. Sabemos
uma coisa: as duas últimas grandes eleições na Europa, na Grécia e no Reino
Unido, deram uma vitória considerável a correntes que, sendo completamente
diferentes, têm ambas um grande cepticismo em relação a esta Europa. É um pouco
triste o que vou dizer agora e até me custa, eu que sou um europeísta de
sempre: a União Europeia conseguiu esta coisa extraordinária que é
transformar-nos a todos em eurocépticos. De facto, o que está a acontecer não
pode deixar de nos trazer uma enorme descrença em relação à União Europeia.
Alguma coisa vai ter de mudar, e seriamente.
Este problema não é meramente financeiro, é político. Estamos a falar de
política, na Europa.
Mas a esquerda
não conseguiu, até agora, nenhuma alternativa à austeridade…
A palavra-chave
da sua pergunta é “até agora”. Por isso é que estamos aqui e agora, para poder
construir um projecto de mudança em Portugal e darmos um contributo para a
mudança na Europa.
Sente que é essa
a sua responsabilidade?
Completamente.
Dou-me a este projecto, com todos os riscos no plano pessoal, com uma enorme
crença de que posso contribuir para uma mudança de fundo da política em
Portugal, Se nós acreditássemos que esta Europa não vai mudar, e que as
políticas de austeridade são uma inevitabilidade ficávamos em casa a protestar
contra qualquer coisa…
Numa entrevista
recente disse que na crise de 2013, com as demissões de Portas e Gaspar, devia
ter havido uma renovação da legitimidade democrática. Com eleições?
Sim.
Em que se
baseava?
No princípio
constitucional do regular funcionamento das instituições democráticas. Havia
uma quebra forte de confiança no programa político, com a demissão do ministro
que tinha sido o seu protagonista, como a demissão do principal parceiro da
coligação. Havia também uma quebra de confiança grande entre o que tinham sido
as políticas do Governo e a percepção dos portugueses sobre o que lhes havia sido
prometido na campanha eleitoral. Na minha opinião, em alturas dessas, o
Presidente deve dar a voz aos portugueses. Uma parte do que se passa em
Portugal hoje- o desânimo, a crispação, a animosidade que se sente na sociedade
- tem a ver com a situação económica, obviamente, mas tem a ver também com a
quebra de confiança no sistema político e com o facto de, na altura própria, os
portugueses não terem sido chamados a renovar a legitimidade democrática do
Governo.
Acha que este
Governo tem menos legitimidade?
O Governo tem uma
legitimidade do ponto de vista da votação que é inequívoca. Tem maioria no
Parlamento, o Presidente tomou a decisão que tomou, mas há uma legitimidade que
vai para além disso, que tem a ver com a confiança dos portugueses.
O Presidente é o
comandante supremo das Forças Armadas, sector onde é muito visível o desencanto
com o rumo da democracia. O facto de não ter um passado partidário pode
favorecer a simpatia desse sector?
Não tenho nunca,
em nenhuma circunstância, um discurso anti-partidos. 48 anos chegaram, não
precisamos de mais. Sou crítico em relação a certas modalidades dos aparelhos
partidários e do seu funcionamento. A Constituição é, agora, como se
compreende, o meu livro de cabeceira [risos]. Depois de a ler muitas vezes,
cada vez me vou apercebendo melhor que não é por acaso que lá está previsto que
os Governos vêm de projectos partidários e os Presidentes de projectos
individuais. Porque, de algum modo, essa candidatura pessoal dá uma
independência (que eu não digo que quem venha de um partido não tenha) na qual
os sectores militares certamente se revêm com alguma simpatia.
Nunca militou num
partido, mas teve uma passagem por um partido revolucionário, a LUAR. Pode
contar-nos como foi essa experiência?
Nunca me filiei.
Participei durante alguns meses nalgumas sessões. Sempre fui muito desalinhado.
Nessa mesma altura, no ano de 1974, colaborei com associações de moradores,
comissões de trabalhadores e promovi uma das primeiras candidaturas
independentes às autárquicas. Chamava-se, se não estou enganado, TMUPA,
Trabalhadores Moradores Unidos para as Autarquias, para a assembleia de
freguesia da Parede [em 1976].
O que o levou a
fazê-lo?
Houve um período
pequeno, mas muito importante na minha vida, em que tinha uma ligação muito
forte ao Zeca Afonso. Foi o Zeca que me levou a algumas dessas sessões. Hoje
olho para aqueles momentos como os mais importantes da minha vida. Parece que
vivíamos a sensação contrária da que vivemos hoje. Naquela altura tínhamos a
sensação de que tudo era possível e que bastava decidirmos à volta desta mesa
que uma coisa ia acontecer para que ela acontecesse. Hoje é ao contrário.
Façamos o que fizermos, digamos o que dissermos, parece que não muda nada.
Recuando, consigo hoje perceber que muita gente se tenha sentido agredida
naquela altura. Mas uma coisa que sempre foi muito importante para mim, apesar
de ter enormes convicções, é nunca ter sido capaz do menor gesto de
violência.
Mas rejeita
qualquer tipo de violência, por convicção ética?
Rejeito qualquer
tipo de violência. Não sou capaz. Tenho um compromisso, que levarei até ao fim,
com a minha mãe que, pouco antes de morrer me pediu não para não dizer mal de
ninguém.
E está preparado
para o contrário, para que digam mal de si?
Estou completamente
preparado para isso. Percebi nas últimas semanas que há uma espécie de lógica
de intimidação. Como se dissessem “esta pessoa não tem o direito de jogar este
jogo que não lhe pertence”. Não li a maioria das coisas que escreveram, decidi
não ler. É impossível initimidarem-me. Esses ataques descabelados reforçam-me.
O Padre António Vieira - não posso fazer muitas citações, senão acusam-me de
fazer muitas citações - dizia qualquer coisa assim, se não erro. Ainda que ter
inimigos pareça uma desgraça, uma desgraça muito maior é não os ter. [Risos]
Tem denunciado a
promiscuidade entre negócios e política. Que papel pode o Presidente
desempenhar nesse caso?
Um papel imenso.
Pela palavra, pelo exemplo e por não aceitar a degradação da vida pública por
fenómenos de corrupção. Esses fenómenos têm sido gravíssimos na sociedade
portuguesa e por isso precisamos de um Presidente que pela sua história de vida
e pelo seu exemplo não seja conivente. A palavra transparência é fundamental.
Em todos os casos, sejam PPP, sejam privatizações, a transparência é central. O
Presidente pode exigir transparência. Mas pode também, ainda que não de uma
forma pública, chamar a atenção de governantes. Eu fiz isso, sistematicamente,
como Reitor. Não basta sermos sérios, temos de parecer sérios.
Como se define em
matéria de costumes?
Liberdade. A
minha matriz sobre os costumes é a liberdade.
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