Enclausurado entre a falésia e o
rio Tejo, o Cais do Ginjal foi em tempos ponto estratégico de forte atividade
industrial e comercial. Hoje, resta-lhe a paisagem privilegiada, as memórias e
ruínas.
Texto: Marlene
Carriço Fotografia: Hugo Amaral / OBSERVADOR / 3-5-2015
“Aí é que você
não está muito bem.
Ainda na semana
passada me caiu mesmo aqui à frente da cabeça uma pedra que se soltou das
paredes. Não morri por um triz. Isto está tudo a cair, não vê? Olhe ali. E ali.
Ali então está tudo podre”. Margarida Martins vai apontando indiscriminadamente
para as paredes em redor, ao mesmo tempo que diz não ter dúvidas do risco que
corre neste velho edifício do Cais do Ginjal, em Cacilhas, onde entra,
diariamente, há três anos seguidos.
A mulher, na casa
dos 60 anos, prefere ainda assim correr o risco, até porque, como diz, “a morte
é certa” e ali sempre fica mais abrigada do frio, no inverno, quando vai
alimentar as dezenas de gatos que se passeiam pelo cais, nas margens do Tejo. No
verão já não faz frio junto ao rio, mas o hábito vence e acaba por se sentar no
mesmo sítio.
“Até há dois
meses ainda havia gente a morar ali na casa principal, mas a senhora, que
sempre viveu lá, saiu em março e entregou a chave ao proprietário”, apressa-se
a relatar Margarida Martins, explicando que têm sido os proprietários a pôr
tijolos nas portas e janelas dos edifícios, nos últimos anos, e a tornar
impossível a vida naqueles prédios que hoje mais não são do que um monte de
paredes devolutas. Os telhados, esses, já não existem. Mesmo assim há quem
continue a encontrar abrigo por estas bandas.
"Isto é uma miséria. Dá-me
pena tudo estar ao abandono. Trabalhava aqui tanta gente..."
Helder Gonçalves,
pescador
Margarida não se
lembra do espaço industrial de outrora. Tudo estava fechado quando começou a ir
para lá à pesca, não faz muitos anos. Já para Helder Gonçalves as memórias são
outras e mais antigas. Agora com 69 anos, tinha 19 quando começou a pescar
neste cais. “Há 50 anos ainda o Ginjal tinha vida”, lembra com alguma saudade. “Isto
é uma miséria. Dá-me pena tudo estar ao abandono. Trabalhava aqui tanta gente”,
conta o antigo trabalhador da Siderurgia Nacional, enquanto ajeita a linha no
carreto.
Onde Helder
Gonçalves está hoje a tentar a sorte para o almoço, antes atracavam arrastões
(barcos de pesca com redes de arrasto) bacalhoeiros e outras canoas
cacilheiras, fragatas e faluas, lembra-se bem. Mas já naquela altura havia
autorização para as pessoas pescarem. E onde agora se veem fachadas de
edifícios com janelas e portas tapadas com tijolos, salvo uma ou outra exceção,
antes operavam armazéns de apoio à frota bacalhoeira, tanoarias, armazéns de
carvão e de outros mantimentos para abastecimento da frota pesqueira, armazéns
de vinho, azeite e vinagre e fábricas de conservas de peixe. Havia também
casas, quintas, tabernas e casas de pasto.
“Isto tinha uma
vida, queira lá saber. Era quase tudo homens, mas também havia algumas mulheres
a trabalhar nas cantinas”. “Ali”, diz o pescador já de costas voltadas para o
rio, ao mesmo tempo que aponta para o fundo à direita, “era o ti Toino Pereira
da adega”.
Mas o “ti Toino
Pereira” de Helder é, afinal, Teotónio Pereira, que não tinha só uma adega. E é
aqui que começamos a recuar no tempo, até ao século XIX.
A família Theotónio Pereira tinha
uma longa tradição no mundo financeiro segurador, nomeadamente na Companhia de
Seguros Fidelidade, e teve uma forte ligação ao mundo da política.
Corria 1845
quando João Teotónio Pereira, ligado ao comércio, se instalou no Cais do
Ginjal, levando a indústria de abastecimento de água aos navios e armazéns de
vinho, azeite e vinagre. Construiu também uma residência e uma quinta, com
várias árvores de frutos e muita ginja, nas traseiras dos edifícios, onde
passava férias mais a família. “Era gente de bem”, descreve o pescador Helder.
E não diz nenhuma mentira.
A família
Theotónio Pereira tinha uma longa tradição no mundo financeiro segurador,
nomeadamente na Companhia de Seguros Fidelidade, e teve uma forte ligação ao
mundo da política. Um exemplo: Pedro Teotónio Pereira, neto de João Teotónio
Pereira, chegou a ser subsecretário de Estado das Corporações e Previdência
Social e Ministro do Comércio e Indústria, sob a liderança de Salazar, e é
considerado por alguns como um dos seus principais interlocutores. Foi também
ele o escolhido para ser embaixador de Portugal nos Estados Unidos durante a II
Guerra Mundial. Outro dos irmãos, Luís Teotónio Pereira, foi presidente da
Câmara Municipal de Almada, presidente do Grémio do Comércio de Exportação de
Vinhos, presidente do Grémio dos Exportadores de Azeite, integrou a Câmara
Corporativa e foi deputado à Assembleia Nacional.
Foi o neto de
Luís Teotónio Pereira que o Observador descobriu. Numa conversa por telefone,
André Teotónio Pereira começa por esclarecer: “o cais foi feito por nós, com
dinheiro privado”. Este tetraneto de João Teotónio Pereira, que continua à
frente do negócio de vinhos, azeites e pescas, com escritório no Cais do Sodré,
em Lisboa, sabe a história de fio a pavio. E os registos do Centro de
Arqueologia de Almada confirmam-na.
A verdade é que o
Cais do Ginjal sempre foi privado, embora tenha resultado de uma exigência da
Câmara Municipal de Almada, em 1860. Com vários investidores interessados
naqueles terrenos, a autarquia começou a aforar lotes, obrigando à construção
de uma parcela de cais em frente aos edifícios.
E assim nasceu o
Cais, ponto de passagem e paragem quase obrigatória. Localizado num sítio
estratégico, frente à capital e perto da barra do Tejo, O Ginjal foi muito
importante numa época em que todo o trânsito se fazia por via fluvial. E
durante largos anos teve muita atividade, muita vida e muita gente.
E tudo a Ponte
Salazar levou
O início da queda
veio anos mais tarde. O “grande símbolo do futuro”, como foi anunciada quando
da sua inauguração em 1966, é apontado como principal motivo do abandono deste
cais. É isso mesmo, a Ponte Salazar, hoje Ponte 25 de Abril, tirou o fulgor
àquele pedaço de terra pois o rio “deixou de ser a principal autoestrada” e a
via rodoviária destronou a fluvial, segundo permitem perceber os arquivos
históricos, referidos pelo Centro Arqueológico da cidade. A este motivo
acrescem outros como a criação de cooperativas vinícolas, a proibição de
exportação de vinho em barris, a descolonização – as colónias eram importantes
mercados para o vinho, azeite e conservas – e a concorrência externa na pesca
do bacalhau.
Mas para André
Teotónio Pereira a explicação para o fim do Ginjal é outra. “O meu avô Luís, a
quem o meu bisavô tinha delegado a gestão dos negócios do Ginjal, zangou-se com
os irmãos. Um deles morreu cedo, o meu tio Pedro passava a vida a viajar e
aquilo acabou por ficar em autogestão entregue aos empregados e foi morrendo
lentamente”, resume.
O "grande símbolo do
futuro”, como foi anunciada a Ponte Salazar (atual 25 de Abril) aquando da sua
inauguração em 1966, é apontado como principal motivo do abandono deste cais.
Em 1973, ainda
antes da Revolução, já a família de André estava a vender os tonéis à Taylor’s,
uma das mais antigas casas de comércio do vinho do Porto, e a indemnizar os
trabalhadores. E não foi só esta família que começou a saltar fora. Também
outras detentoras de edifícios no Ginjal sentiram muitas dificuldades, acabando
os bancos por ficar, na altura, com muitas parcelas. Com o 25 de Abril, vários
edifícios foram ocupados e a degradação não mais parou desde então, atesta
André Teotónio Pereira.
Entretanto, em
1986, os Teotónio Pereira regressaram ao Ginjal, onde instalaram uma fábrica de
formas de alumínio, mas saíram novamente passado dez anos, para Sintra.
Projetos que não
saem do papel. Degradação que se agrava
E foi
precisamente nos anos 1990 que um consórcio de proprietários (credores das
anteriores empresas) tentaram, juntamente com a Câmara Municipal de Almada,
avançar com um projeto de reabilitação para este local, que acabou por não ir
para a frente.
Os projetos de reabilitação do
Cais do Ginjal nunca saíram do papel. O último previa a criação de uma praia,
de um jardim, habitação para jovens e espaços culturais.
Mas esse foi só o
primeiro projeto. Em 2009, já depois de a empresa Tejal – Empreendimentos
Imobiliários Lda ter comprado mais de 90% da área do Cais do Ginjal, foi
assinado um protocolo tendo em vista a elaboração de um Plano de Pormenor para
o desenvolvimento urbano da área do Ginjal.
E esse projeto de
plano prevê que seja desde logo garantida a estabilização sustentável da arriba
e que as obras respeitem a primeira linha da fachada dos edifícios. Mas estão
previstas muitas novidades: criação de praças urbanas e miradouros, uma praia e
um jardim, a abertura de espaços culturais, ateliers e escolas de artes, a
construção de habitação para jovens, bem como a melhoria das condições de
acessibilidade ao Cais, com zonas de cargas e descargas e um silo automóvel.
A Câmara
Municipal de Almada explica o atraso com “o quadro de dificuldades económicas e
financeiras dos últimos anos”, mas não deixa de atribuir as responsabilidades
pela recuperação do espaço à empresa proprietária, a Tejal, que, contactada
pelo Observador, não quis prestar esclarecimentos. De resto, poucos dos que vão
ao Cais sabem a quem pertence. “Já ouvi dizer que é tudo da filha do Presidente
e do Joe Berardo”, diz um transeunte que vem a passar, arriscando uma resposta.
E nem quem usufrui de espaços cedidos pelos donos, como os pescadores que lá
estão em permanência há 30 anos, e que guardam material nos edifícios mais
seguros, próximos do cais de embarque para Lisboa, têm exata noção de quem
manda ali. “São dois irmãos açorianos”, respondem.
A verdade é que
mesmo que poucos saibam quem são, os donos do Ginjal existem e a Câmara
Municipal de Almada sabe quem são. Tem até “procedido a notificações
consecutivas da proprietária no sentido de serem concretizadas as intervenções
de conservação e proteção necessárias à prevenção de quaisquer acidentes”, sem
contudo obter qualquer resposta. Com o Cais cada vez mais degradado e mais
perigoso para as pessoas, sobretudo turistas, que diariamente se passeiam junto
ao Tejo, a autarquia tem aumentado o número de avisos de risco de derrocada.
Em fevereiro
último, a Câmara Municipal de Almada, a Agência Portuguesa do Ambiente e a
Administração do Porto de Lisboa fizeram uma vistoria ao local, tendo concluído
pela urgência de uma intervenção imediata com obras de contenção do cais. Chegaram
a colocar sinais a indicar a proibição de circulação de carros, mas esses
sinais foram roubados e as proteções desviadas. O pior aconteceu a 25 de abril
de 2015. Um carro capotou numa zona do cais onde uma parte do chão já tinha
abatido anteriormente. O estrago foi agora bem maior e a viatura mantém-se no
local, pois terá de ser o proprietário a retirá-la.
Com um cenário
cada vez pior, a Câmara já anunciou que vai avançar com algumas obras no Cais,
nas zonas de maior perigo, designadamente onde se encontra caído o veículo. Porém,
questionada, não diz quando, nem onde, nem o que vai ser feito.
Quem anseia por
obras são os gerentes de dois restaurantes no Cais do Ginjal, que ocupam duas
antigas casas de pasto que tornavam aquele local ainda mais apetitoso para os
pescadores e navegadores, há mais de 50 anos. Hoje, os clientes são
maioritariamente turistas estrangeiros que questionam o que havia ali antes e o
porquê de a zona estar tão degradada. Mas o ambiente devoluto não os afasta,
garantem. “Os turistas adoram isto. Tudo, desde a comida, à paisagem para
Lisboa, ao facto de estarem a comer perto do rio e com sol”, relata Dulcínia
Coelho, sócia-gerente do restaurante Ponto Final.
Sem comentários:
Enviar um comentário