Passos
Coelho no Portugal do Primeiro Mundo
MANUEL CARVALHO
17/05/2015 – PÚBLICO
Nas
últimas semanas não parece haver no país queijaria que Pedro
Passos Coelho não visite, cerimónia que não presencie ou sessão
solene em que não intervenha.
Como notava Miguel
Sousa Tavares no Expresso deste sábado, o primeiro-ministro
tornou-se uma figura omnipresente com o avançar da pré-campanha
eleitoral e a “incontinência verbal” colou-se-lhe à pele de
forma indelével. Com tanto discurso para fazer, é normal que a
palavra descaia para o disparate e que a mensagem se torne fonte de
irritações. Aconteceu esta semana, por exemplo, quando Passos
Coelho foi às Caldas da Rainha homenagear D. Leonor e dizer que
“Portugal vive no primeiro mundo”. Para que não sobrassem
dúvidas, acrescentou que somos “considerados como um país rico no
mundo” e “comparamos com as nações de maior prosperidade do
mundo”. Somos mesmo? Comparamos?
Custa a crer que o
comum dos mortais que um país vergado a uma intervenção externa
para se salvar da bancarrota, com 35% dos jovens no desemprego e uma
dívida acima dos 125% do PIB possa reclamar para si tantos e tão
belos atributos. Até porque esta mensagem não cola bem com a
doutrina da austeridade salvífica, do ajustamento regenerador e da
recuperação dos pequenos passos que o Governo tem cultivado. E
ainda menos à sempre mais útil apologia da “vida nova” que
exige mudanças no Estado e nas mentalidades. Passos, desta vez,
passou por cima do futuro e escolheu o presente como um bom lugar
para se viver, com prosperidade e classe mundial. Não admira por
isso que nas redes sociais tenham abundado críticas, a oscilar entre
a indignação e o insulto. Muitos dizem que ele entrou em transe,
que delira, que gostavam de viver no país dele, que mente, que não
ousa a meios para se reeleger. Dizer a quem resiste que Portugal é
um país mais perto do mundo dos ricos do que do mundo dos pobres é
um atentado.
A verdade é que
Passos tem parcialmente razão. Os números e os rankings das
principais organizações internacionais estão com ele. Portugal é
uma das 37 economias que integram o grupo avançado (o que se move
pela inovação) da análise do Fórum Mundial da Competitividade. Em
termos de produção de riqueza (o famoso PIB) estamos no lugar 48 de
uma lista de 192 países recenseados pelo Fundo Monetário
Internacional. Depois, se centrarmos a riqueza nacional por pessoa (o
PIB per capita), Portugal sobe na escala e situa-se no lugar 36. Se a
isto juntarmos um sistema científico com um rácio de investigadores
em relação à população acima da média da OCDE, um sistema de
saúde apesar de tudo competente, um sistema de ensino superior
desigual mas em certos casos de vanguarda, uma infra-estrutura entre
as melhores do mundo (a análise é do Relatório Mundial da
Competitividade), podemos dizer que Passos pode dizer o que disse.
Nas estatísticas, somos mais do Primeiro Mundo do que do segundo ou
do terceiro.
Mas bem sabemos que
indicadores e rankings não se servem à mesa nem dão para medir os
índices de conforto, de felicidade ou de qualidade de vida. São
meros apêndices das análises que responsáveis pela governação
têm o dever de usar apenas como contexto, como ponto de partida para
colocar perguntas, para formular diagnósticos, para anunciar
insatisfação e meios para a vencer. Porque, por muito que
consideremos que Portugal conseguiu resistir sem estourar a um dos
mais cruéis desafios da sua história recente (um ajustamento
duríssimo sem poder jogar com a política cambial), também é
verdade que hoje em termos sociais, de emprego, de confiança, de
investimento, de estratégia e de dinâmica social ou económica é
um corpo doente e desmoralizado. O que permite a Pedro Passos Coelho
dizer que “comparamos” com os países ricos foram conquistas das
últimas décadas, conquistas que a força das circunstâncias da
crise, o radicalismo do ajustamento e as debilidades congénitas do
país estão a pôr em causa.
Há sim um país
europeu, com empresas de classe mundial, com gestores,
investigadores, médicos, professores, operários, arquitectos ou
engenheiros ao nível da melhor Europa. Mas também há gestores,
operários ou enfermeiros que ficariam melhor colocados nas paisagens
do terceiro mundo. É isso que torna Portugal o país mais desigual
da Europa, que coloca um quarto dos trabalhadores a receber salários
que os aprisionam no limiar da pobreza, que cria 460 mil
desempregados de longa duração condenados a viver no ostracismo
social ao descobrirem que o país onde conseguiram fazer uma vida
digna sucumbiu às ondas de choque e já não volta mais. É por isso
que 31,6% das crianças e jovens vivem em risco de pobreza, que há
400 mil idosos a viver sozinhos, que todos os anos emigram mais de
100 mil pessoas, que mais de metade dos jovens está disposta a
deixar este país de “prosperidade” e arriscar uma vida nova no
estrangeiro. Nesta comparação, Portugal é mais o Brasil do que a
Noruega, como certamente sabe o primeiro-ministro. A maior desgraça
destes anos de chumbo é a travagem na fusão do país dual que
resiste há mais de 50 anos.
As sequelas do
subdesenvolvimento e do atavismo salazarista são ainda graves de
mais para que o primeiro-ministro nos venha colocar num estágio de
desenvolvimento que uma grande parte da população sabe ser apenas
uma construção estatística. As raízes do atraso são demasiado
grossas para se arrancarem de um momento para o outro. As
mentalidades rentistas, subservientes e em alguns casos venais da
velha elite económica persistem. A concepção oligárquica e
clientelar dos partidos, geradora de um espírito de clã que os
impede de celebrar compromissos em nome do interesse nacional, está
ainda demasiado arreigada para que a politica seja um bem de
utilidade pública. O centralismo medieval com que se pretende
governar um Estado moderno tem ainda demasiados interesses em seu
torno para que possa ser demolido.
Se Passos é o
gestor de uma herança, é também o personagem do qual se espera uma
solução para os seus espartilhos. Fica-lhe melhor recusar atitudes
“piegas” e propor uma visão sobre o "homo portucalensis
versão 3.0" do que a falar de um país quimérico – um desejo
é sempre menos questionável do que uma realidade. A recuperação
da teoria cavaquista do oásis faz menos sentido do que nunca. Quando
as teorias dos políticos são percebidas pelos cidadãos como
delírios da estratosfera, não há nada de bom a esperar.
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