Venda da TAP. Mitos, argumentos e ameaças de um dossiê cada
vez mais polémico
É tempo de revisitar alguns pontos: a recapitalização pública é proibida?
FILIPE PAIVA CARDOSO
09/05/2015 /
(jornal) i online
O governo
reforçou a convicção esta semana: a TAP vai ser privatizada e ponto final.
A “determinação”
foi manifestada por Sérgio Monteiro, secretário de Estado dos Transportes,
depois de António Costa, PS, ter pedido o adiamento da operação dada a
proximidade das eleições. “Faremos o que nos compete”, sentenciou Monteiro.
Depois, os pilotos: ainda a greve de dez dias está a decorrer e já falam em
eventuais novas paralisações. Não são contra a privatização, dizem, mas foi por
causa desta que decidiram os timings das greves. No meio estão os outros: não
só os restantes trabalhadores da TAP como os contribuintes. E serão estes
últimos os que têm mais razões de queixa, inundados em argumentos e
contra-argumentos exagerados e até falaciosos. Olhemos para alguns deles.
Recapitalização:
pode-se ou não?
O governo começou
por passar a ideia de que Bruxelas proibia a recapitalização. Depois, o
discurso foi sendo adaptado, mudando lentamente até se tornar num “até pode
ser, mas obriga a despedimentos”. A verdade é que a recapitalização pública é
permitida, já que, para não ser vista como ajuda ilegal, basta provar que é uma
operação que qualquer accionista privado faria. Ou seja, se há privados
interessados em reforçar o capital da TAP, então o Estado também o pode fazer
sem que tal seja ilegal, pois a proibição comunitária aplica-se a
capitalizações em condições diferentes das que um accionista privado faria. Seria
como repetir o argumento usado em 1994: “Um investidor privado, em condições de
uma economia de mercado e numa perspectiva de longo prazo, poderia aceitar
fazer um investimento idêntico ao que o Estado se propõe realizar”, conforme se
explicou a Bruxelas aquando da última injecção de capital na TAP.
É comparável à
alitalia? não.
O governo não tem
dúvidas em dizer que a recapitalização da TAP significa o caos: “uma TAP em
miniatura”, “despedimentos”, “venda de aviões”, tal como o colocou Passos
Coelho. O governo justifica esta certeza com dois casos: o “exemplo da Alitalia” e “o da Cyprus
Airways”. Apesar de o governo o fazer, é no mínimo puxado comparar a TAP com
estes casos.
Comecemos por
Itália. No texto publicado na página oficial do governo sobre a privatização da
TAP, o executivo diz que a Alitalia “passou exactamente” por aquilo que a TAP
passa hoje, tendo sido capitalizada e sofrido com imposições de Bruxelas, como
“despedimento de milhares, venda de aviões e redução de rotas”, concluindo que
“destino igual teria a TAP se o governo optasse pela injecção de capital”. Mas
o caso português não “é exactamente o mesmo” da Alitalia: esta acumulou 3,7 mil
milhões em prejuízos entre 1999 e 2008, e no mesmo período recebeu várias
ajudas estatais que totalizaram 5 mil milhões de euros. Além do valor, a dieta
imposta à companhia justificou-se pela recorrência e dimensão das ajudas, já
que a Alitalia exigia dinheiro público quase todos os anos, sendo assim imposta
a reestruturação. Este também foi o caso da Cyprus Airways, que recebeu ajudas
em 2012 e 2013 e nem assim foi reestruturada, pelo que a CE forçou o seu fecho.
Algum destes é o caso da TAP? A companhia nada recebe do Estado desde 1994,
precisa de uma recapitalização pontual e não anual, e num valor equivalente a
cerca de 10% do que recebeu a Alitalia, tendo ainda um negócio de transporte
aéreo que, nos últimos seis anos, deu lucros de 137 milhões.
Mas em 1994 houve
despedimentos
Este é outro
exemplo citado pelo governo: a TAP foi duramente reestruturada para receber as
últimas injecções públicas, há mais de 20 anos. “Quando, em 1994, o Estado
injectou capital na TAP, também teve de submeter a empresa a um rigoroso plano
de reestruturação da companhia”, diz o executivo no referido texto, numa
comparação tão anacrónica quanto a lei da cobertura das eleições, diríamos. Em
1994 existia uma TAP bem diferente da actual, a começar pelos valores em causa:
a preços actuais, a empresa recebeu 1,6 mil milhões, cerca de 3,2 vezes mais do
que precisará hoje. Depois, o lado operacional: segundo a decisão de Bruxelas
em 1994, a
TAP tinha então 38 aviões, 9691 empregados, proveitos de 1,3 mil milhões – 134
mil por empregado –, uma rede de rotas “que não foi adaptada à evolução do
mercado” e uma produtividade “sistematicamente abaixo da apresentada pelos
competidores europeus”. Um cenário que fez com que, entre 1975 e 1994, a TAP tenha sido
“permanentemente deficitária”, daí ter exigido “um rigoroso plano de
reestruturação para restabelecer a viabilidade”. E hoje? A TAP tem uma frota de
61 aviões, 10,8 mil trabalhadores, 2,8 mil milhões de euros de volume de
negócios e todos os anos vê o total de passageiros crescer, fruto do
alargamento de rotas e da adaptação da oferta à procura. O problema da TAP em
1994 estava, assim, directamente relacionado com o transporte aéreo, daí a dura
reestruturação a que a empresa foi obrigada. Hoje, porém, o problema não está
na aviação.
Qual o problema
hoje?
Os capitais
próprios da TAP caíram para negativos em 2008, culpa do impacto dos
combustíveis, cujo preço levou a TAP a gastar mais 67% que em 2007 – subida de
281 milhões. Depois, a deterioração acentuou-se com os resultados da aposta,
feita em 2007 por Fernando Pinto, de comprar o ramo de manutenção da empresa
que antes liderou, a Varig. A VEM foi comprada em 2007 e desde 2008 que acumula
perdas anuais, tendo representado 286,5 milhões de prejuízos para a TAP até
2014, mais de metade das perdas do grupo no período. Outro ponto visto como
crítico é a “enorme dívida” da transportadora: no final de 2014 eram 1,06
milhões de euros, ou 38% dos proveitos anuais, valor já longe dos 1,4 mil
milhões de dívida que tinha em 2008, já que a TAP foi baixando a dívida
recorrendo a meios próprios para o conseguir.
Os privados não
reestruturam?
O governo
argumenta que, se for o Estado a recapitalizar a TAP, seguir-se-á uma profunda
reestruturação da empresa e “despedimentos colectivos”. Mas se a reestruturação
for realmente necessária, não irão os privados avançar com a mesma? A diferença
é que, se for o Estado a recapitalizar a TAP, manterá algum controlo sobre a
eventual reestruturação, tal como teve em 1994: foi o governo que desenhou,
planeou e sugeriu os “remédios” depois impostos à TAP.
E as culpas pela
situação da tap?
Pires de Lima,
ministro da Economia, fez as contas e concluiu que, nos últimos anos, “a TAP
foi descapitalizada em 800 milhões de euros”. Sobre responsáveis, nada apontou.
Mas o governo sabe a resposta: “A situação financeira do grupo [TAP] agravou-se
a partir de 2007 por conta dos investimentos não aviação e factores externos,
tendo a empresa entrado numa situação de falência técnica em 2008” , lê-se nas perguntas
sobre a privatização respondidas pelo executivo. Por “investimentos não
aviação” leia-se a investida na manutenção no Brasil, isto quando, em 1994, a CE recomendou à TAP
que se concentrasse apenas no transporte aéreo, vendendo todas as empresas
associadas e deficitárias que tivesse. Os sindicatos da TAP já há vários anos
que alertam para o peso da VEM, há tantos quantos a gestão da empresa anda a
prometer a inversão das perdas da mesma “para o ano” – eventualmente,
acertarão.
Os pilotos querem 20%?
É o argumento que
fica associado à actual greve. A Procuradoria-Geral da República considerou que
nem a TAP nem o sindicato “tinham legitimidade para representar o Estado e os
pilotos num contrato-promessa relativo à alienação de acções da TAP”, tendo por
isso considerado nulo o acordo de 1999 que serve de suporte àquela exigência
dos pilotos. Mesmo tendo sido enganados pela suposta validade do documento
assinado em 1999, aos pilotos de nada serve insistir em ficar com uma fatia da
TAP só para eles.
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