Um reino pouco unido e em crise
de identidade vai a votos
ANA GOMES
FERREIRA (em Londres) 05/05/2015 - PÚBLICO
Se Nigel Farage fosse
primeiro-ministro, o Reino Unido ficaria fechado atrás de um muro erguido,
simbolicamente, em Dover, a cidade que liga, por barco e TGV, a ilha britânica
à Europa. Se Nicola Sturgeon leu bem Maquievel, muito em breve a Escócia deixa
de fazer parte deste reino.
Mal começou a
curta campanha eleitoral britânica, que começou quando o primeiro-ministro, o
conservador David Cameron, pediu à rainha a dissolução do Parlamento, a 30 de
Março, dois temas foram recorrentes: as possibilidades de a Escócia vir a ser,
a médio prazo, um país estrangeiro, e de o Reino Unido deixar a União Europeia.
Na Escócia, e em
menos de um ano, assistiu-se à ascensão do Partido Nacional (SNP), que tem no
topo da sua agenda a independência. Foi o referendo à independência, realizado
no ano passado e em que o ‘não’ ganhou por curta margem, que galvanizou o
partido ao ponto de se tornar praticamente no partido único deste território
nestas eleições – as últimas sondagens dizem que poderão eleger praticamente
todos os 59 deputados atribuídos à Escócia no Parlamento de Westminster,
roubando lugares que eram sobretudo dos trabalhistas.
A ideologia
xenófoba, anti-imigração e isolacionista de Nigel Farage, líder do UKIP
(Partido da Independência do Reino Unido), pôs na agenda eleitoral a presença
do Reino Unido na União Europeia. Farage defende a ruptura política com
Bruxelas, preservando apenas os acordos comerciais. Cameron, que já perdeu
votos (e deputados e candidatos a deputado) para Farage, e que tem uma forte
ala eurocéptica no partido, prometeu um referendo sobre a permanência na UE, em
2017.
Nas legislativas
de quinta-feira, explica Tim Bale, professor de política britânica e europeia
na Universidade Queen Mary de Londres e especialista em sistemas partidários e
eleitorais, escolhe-se um novo Governo e define-se o lugar do Reino Unido no
mundo.
O Reino Unido
está a viver uma crise de identidade?
Este é um ponto
importante destas eleições. Há uma crise de identidade na Inglaterra e alguns
políticos, como Nigel Farage e os próprios conservadores, têm-na usado para
recuperarem a ideia do nacionalismo, que alguns analistas defendem que é um
sentimento recorrente, com dez ou 20 anos, mas que tem estado reprimido devido
ao sucesso do país no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Os
recursos, porém, são agora menores, e o nacionalismo inglês reemergiu, motivado
pela ideia de que outras partes do Reino Unido beneficiam mais da despesa do
governo do que a Inglaterra, que é quem produz a maior parte das receitas do
Estado. Esta narrativa é aceite por muitos ingleses que consideram que os
escoceses, os galeses e os norte-irlandeses estão a sugar a riqueza que a
Inglaterra cria.
Mas essa
disparidade não existiu sempre?
Existiu, mas
havia compensações para a Inglaterra. A Escócia fornecia grande parte da força
militar que ajudava a sustentar o império britânico e era o centro da economia
quando éramos uma economia assente na indústria de manufactura, de
transformação das matérias primas. Nos anos de 1980-90, o petróleo do Mar do
Norte [escocês] ajudou a economia britânica. Quanto à Irlanda do Norte, muitas
pessoas consideravam que a redistribuição da riqueza era um preço a pagar para
derrotar o terrorismo [dos republicanos católicos, que pretendem reunificação
da Irlanda] e para iniciar um processo de paz. O País de Gales era uma região
essencial à manufactura, produzindo o carvão e o aço que alimentavam essa
economia.
Só que essa
economia desapareceu, o império colapsou e o processo de paz é dado como
garantido. E algumas pessoas
ressentem-se da contribuição da Inglaterra para os outros países e territórios
da união e são facilmente mobilizáveis para certas narrativas.
Se houvesse um
referendo ao contrário, perguntando à Inglaterra se quer manter a união, qual
seria o resultado?
Tem havido
sondagens sobre o assunto que nos levam a crer que é possível imaginarmos os
ingleses a votarem a favor de uma separação da Escócia e da Irlanda do Norte.
Deixar ir o País de Gales é mais difícil, pois é considerado parte integrante
desde o settlement inglês. Mas a atitude dos ingleses depende muito da dos
escoceses. Se eles continuarem a dizer que podem, e preferem, estar sozinhos,
pode muito bem acontecer que os ingleses lhes digam para partirem.
E o que querem os
políticos escoceses? Um segundo referendo rápido?
Para o SNP, o
melhor cenário é que estas eleições produzam um Governo conservador. Estão a
fazer tudo para que isso aconteça, tornando as coisas muito esquisitas para os
trabalhistas. Ofereceram aos trabalhistas um acordo [de coligação], mas que é
um pacto com o diabo, pois dá aos conservadores argumentos para falarem nos
riscos de o país se desintegrar. Há aqui muito jogo maquiavélico.
Os analistas que
se debruçam sobre a questão da identidade explicam que a crise é fruto de um
vazio ideológico. Concorda?
Não é por
acidente que em grande parte da Europa estejam a surgir sentimentos nacionais.
Isto coincide com o declínio da classe e da religião enquanto factores de
identidade das populações. Criou-se um vazio que os políticos não souberam
preencher e que permitiu que outras formas tribais de identidade emergissem.
Sabíamos que o
Reino Unido era eurocéptico. Mas agora Cameron dá vários passos em frente e
promete um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE se for reeleito.
Este agudizar das
posições sobre a Europa tem a ver com desenvolvimentos no Partido Conservador e
com as preocupações sobre a soberania do país que já existem há muito tempo. A
partir de 1989, a
estratégia britânica sobre a gestão económica choca com a orientação de
Bruxelas. Muita gente no Partido Conservador tem uma visão híper-globalista.
Quer isto dizer que acreditam que o futuro deste país estaria melhor preservado
se se centrasse mais no mundo anglo-saxónico e não só. A UE é olhada como um
travão a esta visão, que muitos consideram ser o caminho natural para o
desenvolvimento do país. Essa corrente de pensamento olha para a UE como algo
que já faz parte da História e que está esclerosado, e que nos está a impedir
de realizar o nosso destino, que é desenvolver laços comerciais com a China, a
Índia e os outros países emergentes.
Onde é que se
situa o pensamento de David Cameron sobre o assunto?
Cameron
ajustou-se a esta visão, apesar de ir dizendo que sair da UE não é boa ideia,
até porque muitos apoiantes conservadores, sobretudo empresários, defendem que,
pelo menos a curto prazo, ainda precisamos da UE. Cameron também está a ser
arrastado para este [afastamento da Europa] pelo UKIP, que lhe pode roubar
lugares no Parlamento. A forma de evitar que isso aconteça é adoptar algumas
linhas de pensamento do UKIP, apesar de na minha opinião essa ser uma pobre
linha de raciocínio – porque quanto mais os conservadores falam na UE ou na
imigração, mais popular se torna o UKIP. Não faz sentido tentar dobrar o UKIP
propagando as suas ideias.
O trabalhista Ed
Miliband seria um primeiro-ministro mais europeísta e alinhado com as opções de
Bruxelas.
Os trabalhistas
têm uma posição mais realista e menos ideológica, que é a de que a UE tem
defeitos mas que isso não é razão para correr os riscos inerentes a uma saída.
Sobretudo quando permanecer na UE não exclui a opção de procurar laços
comerciais com o resto do mundo.
Cameron também
afastou o Reino Unido da arena política internacional. Retirou as tropas
britânicas no Afeganistão, travou a possibilidade de haver uma intervenção
militar ocidental na Síria e não se envolveu na mediação do conflito na
Ucrânia, deixando o problema nas mãos da Alemanha e da França. Como explica
esta retirada de cena?
Há três
respostas. Primeiro, Cameron, como já vimos, ficou muito relutante em
envolver-se em qualquer iniciativa que pudesse ser entendida como europeia.
Segundo, não temos dinheiro e há o receio de que tenhamos esticado demasiado o
orçamento das despesas militares, pelo que fomos obrigados a conter-nos e a
pensarmos bem naquilo que realmente podíamos fazer. Finalmente, há o factor
opinião pública que, depois do aventureirismo de Tony Blair, sobretudo no
Iraque, se tornou bastante isolacionista. A opinião pública esqueceu a lição da
I e da II guerras de que não podemos ignorar o que se passa no resto do mundo,
porque podemos ser arrastados para os problemas. É uma questão estrutural, mas
depois de 70 anos, as pessoas dão a paz como adquirida. Para elas,
infelizmente, a Ucrânia é como a Checoslováquia, para usar as palavras
proferidas por Neville Chamberlain [primeiro-ministro entre 1937-40] nos anos
30: é um país longínquo sobre o qual nada sabemos.
O tempo em que o
Reino Unido era uma superpotência europeia acabou?
Acabou, segundo
um Governo conservador. Se tivermos um Governo trabalhista teremos mais
envolvimento em iniciativas europeias. Os trabalhistas perderam algum do
idealismo pró-europeu que Tony Blair tinha em 1997, mas ainda há entusiasmo. Se
houver mudança de Governo, creio que vamos ter mudanças [na política externa].
E vai haver
mudança de governo?
O meu instinto
diz que os conservadores ainda poderão conseguir, através de uma coligação,
mesmo que minoritária. A minha calculadora diz outra coisa diferente. A
formação do novo Governo vai ser difícil para qualquer dos lados. Não se sabe o
que poderá acontecer, e se houver alguém que diga o contrário é porque é tolo.
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