Os
apátridas da língua que nos governam
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 16/05/2015 - PÚBLICO
Uma
geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar
que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a
nossa identidade e a nossa liberdade. É como se estivéssemos
condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar.
À memória do Vasco
Graça Moura
Não sei se são
válidos ou não os argumentos jurídicos que discutem a data da
aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes dias, ou
em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para
registar a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos.
Mas uma coisa eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que
ele pretende regular, a língua portuguesa, é evidente nessa mistura
sinistra de inércia, indiferença e imposição burocrática com que
se pretende obrigar os portugueses a escrever de uma forma cada vez
mais abastardada.
Na sua intenção
original, o Acordo pretendia ser um acto de política externa, uma
forma de manter algum controlo sobre o português escrito pelo mundo
todo, como forma de garantir uma réstia de influência portuguesa
num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da
centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo”
é suposto que seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o
AO é um grande falhanço diplomático, visto que está neste momento
em vigor apenas em Portugal, com promessas do Brasil e Cabo Verde,
esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S. Tomé e Timor-Leste, e
recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos sucessivos,
implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade. Para
além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a
pressão burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em
nenhum país, a começar por aquele que parecia ser o seu principal
beneficiado, o Brasil. Ratificado ele foi, aplicado, não.
Mas com o mal ou a
sorte (mais a sorte que o mal) dos outros podemos nós bem, mas ele
revela o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará
ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em
Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo
Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu
ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um
acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o
Estado participa, é um acto político e as suas consequências são
identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo
habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu
“pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da
actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos
anteriores.
É um problema da
nossa identidade como portugueses que está em causa, na forma como
nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na sua história e na
sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim. Não é
irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de
manter laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a
riqueza do mundo romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o
mundo clássico onde nasceu a nossa cultura ocidental. Esta
comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta
em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua
marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala,
mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não
apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem
“antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.
O AO é mais um
passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades,
contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas
tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços
e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são
indiferentes a esse património que eles consideram caduco,
ultrapassado e dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do
“jovem” do Impulso Jovem aos saltos em cima do palco a dizer “ó
meu isso não serve para nada”, sendo que o “isso” era a
história. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram
sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas
universidades a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da
investigação nas humanidades e em sectores como a física teórica
e a matemática pura, teorias sem interesse para os negócios. “Ó
meu, isso não interessa para nada!”.
Mas estamos em 2015
e hoje o português de Portugal está sitiado e numa situação
defensiva. Não é no Brasil que o português está em risco, nem em
Angola, Cabo Verde, Moçambique ou Timor. Aí os riscos do português
são os riscos de sempre e vêm da extensão da colonização, da sua
relação com as línguas autóctones, dos crioulos que gerou, e do
modo como penetrou nas elites e no povo desses países, se é ou não
a língua de cultura ou a língua da administração e do Estado. E
não é certamente no Brasil que o português está na defensiva, bem
pelo contrário, é no Brasil que o português está num momento
particularmente criativo.
Quer se goste quer
não, a locomotiva da língua portuguesa não é a academia
portuguesa, mas a pujança do povo e da sociedade brasileira, a sua
criatividade e dinamismo. E isso fará com que o português escrito
no Brasil esteja sempre para lá de qualquer AO, como aliás
aconteceu no passado e vai acontecer no futuro. É o mais fútil dos
exercícios, até porque enquanto o português de Portugal for para o
português do Brasil como o latim é para o português, ainda tem um
papel. Se abastardamos o português de Portugal, nem esse papel
teremos, a não ser escrevermos um “brasileiro” mais pobre que
não serve de exemplo a ninguém.
A vitalidade do
nosso português está nos seus grandes escritores, Miranda, Camões,
Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, todos conhecedores do seu
Virgílio, do seu Horácio, do seu Ovídio, mesmo do seu escolar
Tácito, César ou Salústio. Todos lidos, estimados e estudados no
Brasil, que por eles faz muito mais do que nós alguma vez fizemos,
por exemplo, com Machado de Assis. E é também por isso, que a
maioria dos escritores portugueses contemporâneos recusa o AO, como
quase toda a gente que está na escrita e vive pela escrita e é
independente da burocracia do estado. Todos sabem que o português
permite todas as rupturas criativas, dos simbolistas ao Sena dos
Sonetos a Afrodite Anadiómena – “E, quando prolifarem as
sangrárias,/ lambidonai tutílicos anárias,/ tão placitantos como
o pedipeste”, – ao “U Omãi Qe Dava Pulus” de Nuno Bragança.
Criativamente a nossa língua vernácula suporta e bem tudo, menos
que seja institucionalizada com uma ortografia pobre e alheia à sua
história.
O futuro do
português como língua já está há muito fora do nosso alcance,
mas o português que se fala e escreve em Portugal, desse ainda
podemos cuidar. É que é em Portugal que o português está em
risco, está na defensiva, e o AO é mais uma machadada nessa defesa
de último baluarte. É em Portugal que um Big Brother invisível,
que se chama sistema educativo, retira todos os anos centenas de
palavras do português falado, afastando das escolas os nossos
escritores do passado e substituindo-os por textos jornalísticos. É
em Portugal que uma linguagem cada vez mais estereotipada domina os
media, com a substituição dos argumentos pelos soundbites, matando
qualquer forma mais racional e menos sensacional de conversação. É
em Portugal que formas guturais de escrita, nos SMS e nos 140
caracteres do Twitter, enviados às centenas todos os dias por tudo
que é adolescente, ou seja também por muitos adultos, se associa à
capacidade de escrever um texto, seja uma mera reclamação a uma
descrição de viagem. É neste Portugal que, em vez de se puxar para
cima, em nome da cultura e da sua complexidade, em nome da língua e
da sua criatividade, em nome da conversação entre nós todos que é
a democracia, se puxa para baixo não porque os povos o desejem, mas
porque há umas elites que acham que a única pedagogia que existe é
a facilidade.
E é neste Portugal
que uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em
declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”,
minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade, que vem dessa coisa
fundamental que é falar e escrever com a fluidez sonora do
português, mas também com a complexidade da sua construção
ortográfica. É como se estivéssemos condenados a escrever como se
urrássemos em vez de falar.
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