A
Europa deixou de exportar estabilidade para passar a importar
instabilidade
TERESA DE SOUSA
31/05/2015 - PÚBLICO
Crises
de diferente natureza convergem e entrecruzam-se, levando a Europa em
passo rápido em direcção a uma tempestade perfeita.
1. A Europa está
hoje a viver uma situação única em que, quase sem se dar por isso,
crises de diferente natureza convergem e se entrecruzam, levando-a em
passo rápido em direcção a uma tempestade perfeita.
Internamente, os
líderes europeus vão reunir-se no final do mês para avaliar o que
ainda falta fazer na construção de um governo para a zona euro que
previna o tipo de crises que viveu nos últimos cinco anos. Sabemos a
história. A resposta inicial e ainda relutante de Angela Merkel
acabou por transformar-se numa oportunidade que a Alemanha não
desdenhou de redefinir o novo quadro da moeda única, enquanto moeda
verdadeiramente alemã, completando aquilo que ficou por fazer em
Maastricht, quando Kohl ofereceu o marco em troca da reunificação.
Teve de ceder mais do que porventura desejaria, incluindo o papel
crucial do BCE para evitar um desastre, primeiro em Agosto de 2012, e
depois com a injecção maciça de liquidez nos mercados para evitar
a deflação e animar algum crescimento, numa série de medidas não
convencionais justificadas pela dimensão e pela gravidade do que
estava em jogo. Em contrapartida, e para além da receita da
“austeridade redentora” que impôs aos países da troika mas
também aos outros, fez adoptar novas regras para o funcionamento da
zona euro que obrigam a muito maior responsabilidade nacional sobre
as finanças públicas (Tratado Orçamental) e a um programa de
reformas para sustentar um modelo económico mais “alemão” e
mais competitivo. Os custos sociais foram enormes em muitos países.
Politicamente, os estragos foram ainda maiores. A fragmentação
política e económica da Europa está ainda longe de se poder
considerar superada para deixar de ser um risco sério. Muitos
europeus deixaram de ver na Europa uma vantagem. Os do Sul porque se
viram sujeitos a programas de ajustamento brutais. Os do Norte porque
não querem pagar o preço de manter a união monetária intacta. A
prova real: os movimentos populistas ainda estão na sua fase
ascendente. Uns são “românticos” como na vizinha Espanha.
Outros são realmente perigosos, alimentado o nacionalismo e a
xenofobia entre os próprios europeus. E condicionando os governos.
Na Finlândia, o novo Governo de centro-direita resolveu dar aos
Verdadeiros Finlandeses a pasta dos Negócios Estrangeiros e da
Europa. A Grã-Bretanha entrou numa perigosa deriva antieuropeia
ainda sem fim à vista. Seria uma catástrofe para ela e para a
Europa. A Grécia transformou-se num despojo de guerra. Na França ou
na própria Alemanha o desapego em relação à Europa é cada vez
mais visível.
2. A crise alterou
completamente os velhos equilíbrios internos na União, dando à
Alemanha um poder enorme e desviando as decisões das instituições
europeias para as mãos da chanceler, agora mais disposta a
reparti-las com Paris. Levou tempo, mas, mais uma vez, Berlim
percebeu que isolar-se da França não era um caminho avisado. A
França rendeu-se à ideia de que a sua relação especial com Berlim
é o que lhe resta para manter alguma forma de liderança europeia.
Falta resolver o
problema maior: como voltar a convencer os europeus de que a
convergência ainda é possível e que a Europa ainda é uma vantagem
que, em maior ou menor grau, serve a toda a gente e não apenas a
alguns. Incluindo os gregos. A Grécia é a prova provada de que a
crise do euro ainda não terminou. Muita gente, desde Wolfgang
Schauble a Durão Barroso passando por Lagarde, insiste em que a
União poderia gerir facilmente uma saída da Grécia. É duvidoso.
Falta ao euro fazer a sua suprema prova, a da irreversibilidade. Tal
como a Califórnia, mesmo endividada, não pode abandonar o dólar, a
união monetária europeia não pode ter uma geometria variável. A
reversibilidade teria consequências de tal modo imprevisíveis que,
em Atenas ou em Berlim, ainda ninguém se atreveu a dar o passo em
frente.
Os líderes vão
tentar avançar na reorganização da zona euro na próxima cimeira,
a 25 e 26 de Junho. O Governo português enviou para Bruxelas a sua
visão do futuro governo europeu, com uma agenda ambiciosa e
sobretudo muito europeia, no bom sentido da palavra. Mas não vale a
pena ter grandes expectativas. Primeiro, porque a carta franco-alemã
com a contribuição dos dois países é um conjunto de ideias
suficientemente vagas para limitar o debate a alguns argumentos
banais. Segundo, porque o Grexit e o Brexit dominarão todas as
atenções. Hollande quer o máximo de imobilismo, incluindo a recusa
em rever os tratados antes de 2017, porque acredita que é o melhor
caminho para um segundo mandato, enquanto vai tentando levar a cabo a
tarefa ciclópica de reformar a França. Merkel quer manter a ponte
entre o seu compromisso com a França e o seu desejo de manter o
Reino Unido na Europa. David Cameron já iniciou a sua campanha pela
devolução de poderes a Westminster, aliás elevando a fasquia a uma
altura que começa a ser perigosa. Nas últimas 24 horas visitou
Varsóvia, Paris e Berlim, depois de receber Juncker na sua casa de
campo, sem conseguir disfarçar a incomodidade mútua. Merkel
mostrou-se compreensiva. Quer discutir coisas substantivas e não
princípios gerais. A chanceler precisa de Cameron para levar a bom
porto as negociações do TTIP, tendo na França um parceiro muito
mais reticente. E convém lembrar que o primeiro-ministro britânico
foi o seu único aliado nas cimeiras do G20, quando o mundo inteiro
lhe pedia para mudar a sua política de austeridade, de forma a tirar
a Europa da recessão e a ajudar a economia mundial.
3. Esta é a crise
interna. Falta a crise externa que, enquanto a Europa tentava salvar
o euro e salvar-se a si própria, transformou radicalmente o seu
enquadramento estratégico. A União deixou de ser, como o foi depois
da queda do Muro, um pólo de irradiação de estabilidade nas suas
fronteiras para passar a sofrer ela própria da instabilidade gerada
nas suas fronteiras. Esta nova realidade estará, porventura, na
origem da mudança de atitude da chanceler em relação a Paris.
Fê-la ver que a geoeconomia não é tudo e que a segurança é
indissociável da economia. A chanceler aprendeu depressa. Quando
Hollande interveio no Mali em Fevereiro de 2013 para estancar a
ofensiva jiahdista, Berlim respondeu com desdém: “Não temos de
pagar as aventuras militares da França." Corrigiu o tiro. Viu o
Médio Oriente e o Norte de África incendiarem-se na Síria, na
Líbia, no Iraque, acrescentado uma crise de refugiados de dimensões
nunca vistas desde a II Guerra para as quais a Europa não tem
resposta. Percebeu o risco do novo terrorismo fomentado pelo Estado
Islâmico. O maior choque veio, no entanto, do Leste. A Rússia
decidiu travar a “europeização” das antigas repúblicas
soviéticas que estão entre a sua fronteira e a fronteira europeia,
recorrendo abertamente à força militar. A Turquia caminha a passos
largos para uma via que a afasta cada vez mais da Europa. A gestão
das negociações com o Irão abalam as velhas alianças no Médio
Oriente com os Estados Unidos. A Europa deixou de exportar
estabilidade para passar a importar instabilidade.
Como encaixar estas
duas agendas, a interna e a externa, é o grande desafio que a União
tem pela frente. Com todos os seus defeitos, a chanceler leva as
coisas a sério. A visita que fez a Moscovo no dia 9 de Maio, a que
não se deu grande importância, foi a imagem da sua forma de fazer
diplomacia. Primeiro, foi prestar homenagem aos soldados russos
mortos na Guerra contra o nazismo. Sozinha. A Alemanha não esquece a
sua história. Imediatamente depois, numa conferência de imprensa
com Vladimir Putin, disse tranquilamente que a ocupação da Crimeia
era um “crime” internacional.
Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário