“Neste momento não há condições
para mexer na receita da Segurança Social”
RAQUEL MARTINS
04/05/2015 - PÚBLICO
Teresa Garcia, professora do
ISEG, considera que se a proposta do PS de reduzir a TSU for por diante
“entramos num beco sem saída”.
Especialista em
Segurança Social, Teresa Garcia alerta que um dos problemas do sistema de
pensões em Portugal é a falta de transparência com que ao longo dos anos ele
tem sido gerido e as mudanças, que o tornam opaco para a generalidade da
população. E defende que os decisores políticos devem actuar “fortemente no
crescimento económico, na educação e na taxa de natalidade”, essenciais para
que ele funcione. Quanto às propostas do PS de reduzir a TSU, discorda “em
absoluto”, porque agravam o problema da receita.
Temos um problema
de sustentabilidade no sistema de pensões em Portugal?
O sistema é
sustentável, assim o queiramos. A Segurança Social resultou de um processo
histórico de urbanização e de industrialização das sociedades em que muitos dos
laços familiares se perderam e foi a maneira de os políticos gerirem massas
operárias. A ciência económica tem de aprender com a história. A crise de 2008
deveria ter sido um momento para pensarmos que temos de encontrar uma solução e
que ela não está dentro do sistema. Quando falamos na sustentabilidade da
Segurança Social, estamos a falar na sustentabilidade da própria sociedade. A
solução tem de passar por uma revisão da estratégia económica no seu sentido
amplo. É fundamental termos dados claros, para sabermos o que não está e o que
não correu bem. Não basta dizer que não é sustentável.
O que é que
correu mal?
Estamos a falar
num sistema que assenta na repartição. O dinheiro que é recolhido, sob a forma
de receita, é imediatamente utilizado para pagar despesa. Isto é importante
porque torna o sistema imune a outro tipo de utilização. Por outro lado, quando
são estabelecidos, estes sistemas de repartição têm muito menos despesa do que
receita, o que significa que durante alguns anos há saldos positivos, os quais
devem ser salvaguardados para o seu objectivo: pagar as pensões. Aconteceu
assim no caso português? Desconfio que não. Chegámos à fase de maturação do
sistema e todos os estudos previam isto [que íamos ter um aumento da despesa].
Tínhamos que ter o dinheiro para pagar pensões.
Ao canalizar a
receita directamente para a despesa, diz que o sistema fica mais imune à
manipulação. Acontece o mesmo com a gestão dos saldos positivos?
Nesse caso não há
imunização em relação ao risco político. Basta, por exemplo, haver legislação
quanto à afectação de activos, que obriga a que o fundo de estabilização
financeira da Segurança Social compre dívida pública numa terminada
percentagem. Se isto acontece num sistema de repartição, não percebo esta ideia
das contas individuas, porque elas também requereriam uma aplicação no mercado
de capitais, com todas características inerentes a esse mercado.
Tem ganho peso a
ideia de que devia haver contas individuais. É uma questão ideológica ou faz
sentido?
É uma questão
ideológica, de ignorância e de credibilidade. Uma das razões de ser da
Segurança Social tem a ver com a miopia dos indivíduos que, por natureza, dão
mais importância ao curto prazo do que ao longo prazo. A Segurança Social vem
lutar contra esta tendência natural, enquanto esta conversa de cada um por si
vem alimentar aquilo que, por defeito, é próprio dos indivíduos. A Segurança
Social é universal e obrigatória, apanha toda a gente, os prudentes e os
imprudentes, dentro da proporcionalidade do seu rendimento, para que todos
sejamos prudentes e consigamos um certo nível de bem-estar. Todos temos de
contribuir para um óptimo na óptica daquilo a que se chama um estado
paternalista, mas no bom sentido. Esta obrigatoriedade faz com que, em termos
agregados, aquilo que se contribuiu deva ser igual ao que se vai receber em
termos agregados. Em termos individuais, haverá indivíduos que vão receber mais
do que contribuíram e outros que não chegarão a receber nada, porque morrem. Se
todos começamos a puxar a manta, não vamos a lado nenhum. É um discurso que não
devia existir.
De tempos a
tempos, esse discurso é fomentado pela classe política, quando se fala em
plafonamento, por exemplo, ou quando se colocam os velhos contra os jovens.
Sugeria que se
fizesse um estudo das carreiras contributivas dos políticos. Esse discurso é
uma manipulação da opinião pública muito grave.
Embora seja uma
defensora do sistema de repartição, reconhece que ele tem de ser calibrado? Em
2007 foi criado o factor de sustentabilidade, que fazia reflectir nas pensões o
aumento da esperança média de vida, por exemplo.
O sistema tem
algumas condições de bom funcionamento: crescimento económico, crescimento dos
salários, políticas de natalidade. O envelhecimento não é um problema que está
aí apenas por agora, é um ganho civilizacional que vai continuar. Temos de
actuar fortemente no crescimento económico, na educação e na taxa de
natalidade. Aqui é que temos de actuar, porque o sistema de repartição é
sensível a isso, mas devia ter a sua garantia no fundo de estabilização para
ciclos de baixa e para responder ao envelhecimento populacional do qual
estávamos à espera. O sistema tem sofrido ajustamentos correctos, porque como
sistema que é não tem estado imune à manipulação, até por parte dos indivíduos,
sejam empregadores ou trabalhadores. No cálculo do benefício a remuneração de
referência foi, durante muito tempo, os melhores dez dos últimos 15 anos. Mas a
dada altura também se percebeu que foi manipulado e que muitos empregadores, ou
por iniciativa deles ou dos próprios trabalhadores, só começavam a descontar a
15 anos do fim da carreira contributiva. O sistema foi objecto de manipulação,
foi. Tentou-se corrigir, tentou. A partir de 2000 passou a contabilizar-se a
média de toda a carreira contributiva e desse ponto de vista foi um ajuste
correctíssimo. Atendendo ao valor da despesa, esta indexação à evolução da
esperança média de vida feita em 2007 não me parece errada. Enquanto não
conseguimos virar o ciclo e tentamos ganhar tempo, vamos dar um bocadinho menos
a todos, é um mal menor. O que me custa é a falta de transparência em relação à
própria fórmula de cálculo e uma idade da reforma que todos os anos muda
[decorrente das alterações feitas pelo actual Governo].
O relatório
recentemente apresentado pelo PS propõe uma redução da TSU, que mais tarde se
irá reflectir em pensões mais baixas. Faz sentido?
Discordo em
absoluto de mexidas do lado da receita. Neste momento, não há condições para
mexer do lado da receita. Estamos com um problema e estamos a agravá-lo, sem
termos a certeza quanto à recuperação futura dessa receita. Se isto for por
diante entramos num beco sem saída. Todos devemos ser apologistas de sistemas o
mais simples possíveis para que todos os possamos entender. Já encontrar
receitas alternativas para a Segurança Social seria muito importante.
Onde é que se
poderá ir buscar receita?
Teria de ser junto
do capital, aos montantes transaccionados em bolsa, por exemplo.
Há quem defenda
um sistema semelhante ao de alguns países nórdicos, em que parte dos descontos
visa o bem comum e depois há contas individuais obrigatórios. Admitiria uma
solução desse tipo?
Não. O sistema
sueco, por exemplo, está indexado ao crescimento económico e não é justo que o
benefício esteja dependente de um ciclo. Se me reformo num momento de alta
recebo mais, o outro que se reforma num momento de baixa recebe menos, tendo
tido o mesmo contributo para a sociedade. Sou muito crítica em relação a esse
tipo de indexação, até porque não estamos livres de haver crises do sistema
financeiro.
O sistema do
fisco é muito mais eficiente, por vezes até sobre-eficiente, em comparação com a
Segurança Social. O que explica isso?
É uma coisa
surpreendente. Não há um investimento na transparência do sistema. É preciso
que nos mostrem os dados que revelem que o sistema não é viável. O montante de
dados necessários para a boa gestão, requere um investimento em informática, se
ele não existe numa altura em que temos desenvolvimento colossais da tecnologia
temos de perguntar porquê. Essa é uma boa exigência que os cidadãos em conjunto
deviam fazer. É fundamental ter dados actualizados. A conta da Segurança Social
tem um desfasamento temporal que é inadmissível. Podemos ser até levados a
pensar se a máquina não é refém de orientações políticas.
As mudanças no
factor de sustentabilidade e o aumento da idade da reforma forma, foram
decididas para responder a um problema orçamental sem que se conheça um estudo
sobre o impacto da reforma. Estas decisões são um risco para o sistema?
Como se costuma
dizer, está-se a navegar à vista. E se agora lhe cortarem a receita [como
sugere o PS] não resiste mesmo. Sem uma clara e transparente administração não
vamos a lado nenhum. Estamos a entrar em caminhos que não auguram nada de bom.
Não vejo nem na Alemanha, nem na França esta premência de alterar e alguns
países que fizeram alterações, como a Hungria ou a Polónia, já recuaram
nalgumas ousadias. Com a reforma de 2007, as taxas de substituição já vão para
40% a 60% em 2020. Não sei se alguém anda a ver isto, já vai ter um impacto
substancial. Já se devia ir informando as pessoas. Não acredito que a taxa de
poupança vá colmatar as quebras previstas no valor da pensão. Não se percebe
como é que esta idade legal da reformar acaba por ser flexível quando o próprio
mercado de trabalho não quer velhos. Caímos no dilema de que somos muito novos
para nos reformarmos e velhos para trabalhar. Este problema não está a ser
resolvido.
Quais são as
alternativas?
A prioridade deve
ser uma política que ponha o sistema de Segurança Social acima de uma
ideologia. Temos um sistema de repartição, vamos olhar muito objectivamente
para os dados e tentar perceber as causas de algum défice que poderá existir e
por que razão não temos um fundo de estabilização financeira de maior dimensão.
Enquanto não houver este pragmatismo, desvinculado de uma ideologia não me
parece que vamos a algum lado. Temos de criar uma administração eficiente e,
diagnosticados os factores de risco, não deixar que o sistema continue exposto
a esses factores e evitar que, volta e meia, o sistema sirva para resolver
outros problemas.
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