Ode
à mercearia
É
na mercearia que ficamos à espera para ser atendidos, e enquanto
esperamos, ouvimos e aprendemos.
Lucy Pepper
31/5/2015 /
OBSERVADOR
Graças a deus que
existem cidades antigas, em cujos centros históricos é difícil
instalar um supermercado, porque é assim que sobrevivem as
mercearias.
Estão abertas
durante 12 horas por dia, 6 dias por semana, à espera que eu me
lembre das coisas de que me esqueci.
Depois de umas
poucas de visitas à mercearia, a Dona Ana começou a mandar-me ir
buscar coisas por mim própria, mesmo nas áreas que ficam por detrás
do balcão, quando lhe acontece estar ocupada com outro cliente. Se a
encontro sentada num degrau ao fundo da loja, a fazer as suas contas,
posso deixar as moedas certas para pagar os ovos que tirei da divisão
misteriosa ao lado da mercearia.
O frigorífico
barulhento chocalha e geme todo o dia com a sua seleção estranha de
manteigas, iogurtes, vinhos e refrigerantes, ao lado do congelador
onde residem quantidades vastas de lulas congeladas e esparregado.
Está sempre escuro dentro da mercearia e os nossos olhos precisam de
uns segundos para se habituarem. Nos dias de calor, está ainda mais
escuro, graças a uma persiana estendida por cima da porta, de modo
que a fruta, nas prateleiras de mármore logo à entrada, não se
estrague.
O balcão
frigorífico com os produtos frescos — queijos bons de leite de
ovelha, queijos maus de tipo flamengo, e pacotes aleatórios de bacon
e presunto — oculta o lugar secreto onde a Dona Ana guarda os
enchidos. Pelos enchidos, tem se de perguntar. A Dona Ana sugere as
versões mais baratas de bolachas, para o caso de eu estar
interessada. Atrás do balcão, está a caixa registadora, uma
daquelas caixas novas onde tem de se bater no écran com o dedo,
categorizando cada coisa, ou passar o código de barras pelo scanner.
Ela ri-se, porque a máquina só lê bem os produtos metade das
vezes.
Há um banco de
plástico para quem precisa de se sentar. Durante várias horas do
dia, está sempre uma senhora idosa sentada no banco, à espera de
que a Dona Ana acabe de percorrer as prateleiras à procura do que
ela precisa. As clientes sentam-se e contam histórias das suas
consultas no hospital ou dos problemas dos seus netos na escola, ou
simplesmente sentam-se, exaustas pelo calor, olhando para os turistas
que entram e pedem coisas em espanhol básico porque não leram
aquela parte do guia turístico que explica que aqui não é Espanha
e que deviam tentar falar Português básico.
A Dona Ana é a
guardiã das fofocas, e quase todas as fofocas são sobre doenças
graves ou sobre mortes. Quando entro na mercearia, encontro-a sempre
a conversar sobre um assunto qualquer com alguém, e depois da pessoa
sair, continua a história comigo, sem voltar ao início, como se eu
tivesse conhecido o Sr. João (aquela com a perna esquisita e uma
filha em Angola, e que morreu a semana passada) toda a minha vida.
Há um cesto de
algas para sushi no chão, ao lado do banco. Há latas de “baked
beans” ingleses na prateleira, ao lado das de feijão frade, e que
compro nos dias maus, quando preciso do conforte de uma comida da
minha terra. “Porque vende isto?”, perguntei um dia. “Ah, há
pessoas daqui que foram lá fora e voltaram a gostar disso … são
muito populares”. Quem sabe?
As mercearias já
estão mais ou menos extintas na aldeia suburbana onde eu vivia antes
de me mudar para Lisboa. Em dez anos, quatro supermercados apareceram
e limparam do mapa todas as lojas, menos as mais teimosas. A
mercearia que sobreviveu perto da minha casa foi uma bênção
durante os meus primeiros anos em Portugal. Não por causa dos
produtos que vendia, mas por me ter ajudado a tornar-me parte da
comunidade.
É na mercearia que
ficamos à espera para ser atendidos, e enquanto esperamos, ouvimos e
aprendemos. Ouvimos as bisbilhotices, aprendemos os nomes das
pessoas, tornamo-nos numa cara que as pessoas começam a conhecer,
dizemos olá aos bebés e vemo-los crescer, descobrimos um
vocabulário novo, e passamos a figurar na vida local. Aprendi a
falar português com maior fluência devido ao muito tempo que passei
à espera na mercearia e descobri muita coisas sobre como as pessoas
vivem, o que fazem com os ingredientes que compram, como lidam com os
seus problemas — muito mais do que teria aprendido a empurrar um
carrinho num supermercado.
Na minha rua em
Lisboa, há três mercearias, um talho e uma papelaria, e dentro de
cada uma delas, pode-se conversar, brincar e ter a oportunidade de
começar pertencer a uma comunidade.
E quando a patroa da
mercearia aprende o nosso nome e se lembra de o usar na nossa visita
seguinte, ficamos a saber que somos de cá.
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