A República dos economistas
(liberais)
JOÃO TEIXEIRA
LOPES 06/05/2015 - PÚBLICO
A República
dos economistas liberais, à qual o PS prestou vassalagem, está nos antípodas do
que vem propondo o economista não liberal Thomas Piketty.
Assisti com algum
espanto a uma das últimas edições do Expresso da Meia-Noite, na SIC Notícias,
com três economistas liberais (incluindo Mário Centeno, coordenador do estudo
sobre o quadro macroeconómico encomendado pelo PS, uma economista da
Universidade Nova e a deputada do CDS-PP Cecília Meireles) e José Reis, da
Universidade de Coimbra.
A certa altura, o
discurso tornou-se surrealista, pois dir-se-ia que a economista da Universidade
Nova e Mário Centeno tinham entrado na estratosfera dos modelos e das equações,
uma vez que raciocinavam sem qualquer ligação à terra, confrontando com grande
à-vontade e esoterismo argumentos técnicos sobre os “estabilizadores” e
“multiplicadores” do “exercício”, distanciando-se a grande velocidade daquilo a
que Paulo Portas chamaria, com o talento retórico habitual, “economia real” e
que eu preferiria tão-só apelidar "sociedade portuguesa".
Impressionou-me a
teimosia na criatividade e “inovação do modelo”, por parte de Mário Centeno,
que parecia um adolescente embevecido por uma qualquer engenhoca ou brinquedo
novo, referindo com expressividade o “mix de medidas do lado da oferta e da
procura” e as virtudes académicas do dito “exercício”. Mas, tirando José Reis,
nunca os participantes se focaram nas decisivas questões da pobreza e das
desigualdades sociais.
Mesmo a mais
vincada obsessão pelos números é muito seletiva. Para o modelo é irrelevante
saber se, em 2013, os 10% mais ricos da população auferiam um rendimento 11,1
vezes superior ao dos 10% mais pobres, recuando a 2005. Ou se, em 2012,
Portugal apresentava um coeficiente de Gini de 34,2%, acima da média UE-28
(30,5%), constituindo com a Bulgária (35,4%), Letónia (35,2%), Lituânia (34,6%)
e Grécia (34,4%) o conjunto de países europeus com a distribuição de
rendimentos mais desigual. Ou se o risco de pobreza se situava em 19,5% em
2013. Ou se os 20% dos trabalhadores mais ricos obtêm ganhos progressivamente
mais elevados, dualizando a sociedade portuguesa. Ou se o número de desempregados
que não recebem qualquer subsídio aumentou cerca de 157% entre 2013 e 2008,
representando já 54,4%.
O dito modelo
despreza, decerto, todos os que defendem, como Alfredo Bruto da Costa, que
qualquer medida de política económica deve medir o seu impacto na produção das
desigualdades e da pobreza. Ora, este estudo econométrico propõe aumentos
marginais no rendimento social de inserção, incapazes de restituírem um grau
decente de proteção social a quem dela precisa, ao mesmo tempo que nada diz
sobre o aumento do salário mínimo. Nesse mesmo debate, o putativo futuro
ministro do PS, Mário Centeno, reiterava o que sempre defendeu sobre o salário
mínimo: a não ser que houvesse um grande aumento, o seu impacto no modelo seria
“zero” (mas as pessoas não comem modelos!). Mostrava também, no pico da
alegria, que existia no documento uma grande reforma estrutural no mercado de
trabalho: o novo "regime conciliatório e voluntário” de despedimento (um
paradoxo nos termos!).
A República dos
economistas liberais, à qual o PS prestou vassalagem, está nos antípodas do que
vem propondo o economista não liberal Thomas Piketty: repor a distribuição da
riqueza no centro da análise. Para tal, é imperioso combater a concentração e
acumulação de capital, através da articulação entre um imposto progressivo
sobre as sucessões, um imposto progressivo sobre o rendimento e um imposto
progressivo sobre o capital. O máximo que o “modelo” de Centeno permite é uma
tímida reposição do imposto sucessório que um anterior governo do PS aboliu. Sobre
as taxações dos ativos financeiros e das grandes fortunas nem uma modesta
equação.
Importa
perguntar, como naquele graffito que há uns anos iluminava uma das paredes do
ISCTE: estes economistas, para quê? Ou, por outras palavras, quem nos mergulhou
no furacão da crise vai agora salvar-nos? Ou, se preferirem ainda, onde está a
política? Onde está a preocupação concreta pela superação das fraturas da
sociedade portuguesa? A ideologia, pelo contrário, eu sei bem onde está. Bem no
centro, no coração mesmo, daquele modelo “limpinho”, abstrato e cheio de
maravilhosos e acertados multiplicadores.
Sociólogo,
militante do Bloco de Esquerda
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