Os estragos na cabeça
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 02/05/2015 - PÚBLICO
Pobre país o nosso, entregue a
estas cabeças e a este desastre ambulante que é hoje a Europa.
1. Estes últimos
anos de “ajustamento” moeram o corpo de muitos milhões de europeus, mas fizeram
ainda mais estragos à cabeça de muitos, não tantos, mas muitos.
Está a
interiorizar-se um conjunto de falácias muito perigosas, a tornar-se habitual
pensar fora da democracia, de uma forma mais ou menos soft mas, de facto, fora
do quadro democrático, estão-se a aceitar como normal ou habitual procedimentos
e práticas que subordinam toda a política “possível” a uma versão ideológica da
política, que é o que é o “economês”. Aceita-se como normal uma espécie de
marxismo dos imbecis que é a determinação da política (superestrutura) pela
infraestrutura (economia) em termos tão grosseiros que deixariam Marx coberto
de vergonha e Adam Smith furioso com tanta ignorância. Vamos pagar caro por
estes estragos na cabeça. Estamos já a pagar caro.
2. Criou-se uma
nova classificação de “radicalismo”. Um bom cristão, ainda melhor burguês, fiel
a Deus, protector da sua família, conservador nos costumes, firme partidário da
propriedade privada, moderado nas suas opiniões, que nunca sonhou ser
revolucionário na vida, se contestar esta hegemonia do pensamento “economês” e
da “Europa”, passa imediatamente a ser um “radical” e é atirado para as trevas
exteriores da “boa política”, onde não há direito a vida cívica a não ser em
obscuros e convenientes grupúsculos. Ao demonizarem a moderação, o que estão é
a atearem as chamas do verdadeiro radicalismo. Esta “Europa” vai acabar mal.
3. Hoje em nome
de um “realismo” autoritário, que é tudo menos “realismo” como a história se
encarregará de mostrar breve, soçobraram os liberais genuínos, que aceitam
novas formas de autoridade imperial sem pestanejarem, que abandonam o amor pela
liberdade, a favor de uma vulgata que lhes é imposta em nome da
“inevitabilidade”; ficam calados e indiferentes os democratas que vêem os
parlamentos para que votam serem desprovidos dos poderes fundamentais do
orçamento (ou seja “taxation without representation”), os patriotas que vêem a
sua comunidade nacional desprovida da possibilidade de se governar a si
própria, a quem se retiram todas as dimensões da soberania, a começar pela
possibilidade de definirem as suas leis, terem as suas forças armadas e defesa
própria, e a sua política externa.
4. As nações
passaram a secções da União Europeia numa nova dimensão internacionalista e
imperial, governada por alguns países mais poderosos, a favor estritamente dos
seus interesses. É um império muito instável, acantonado em muitas posições
defensivas, sem dinamismo, força e vontade, mas é um império. Vive cada vez
mais de censuras, diktats e do medo.
6. Este tipo de
argumentos é usado por todos os que se querem no “arco da governação”, que na
verdade significa, estarem dentro desta “Europa” e deste euro. Fora não há
governação possível como se “viu na Grécia”. Isso significa que socialistas,
social-democratas, democratas cristãos ou não cristãos, direitistas liberais,
partidos do centro-direita e do centro-esquerda, partidos de esquerda
“europeísta”, todos dizem isto. O mesmo.
7. Mas acaso a
“Europa” é uma entidade supra-política? Não é de “direita” ou de “esquerda”? Não
é o resultado de uma hegemonia política de alguns partidos e alguns países e
alguns governantes, em particular alemães? Não tem cor política? É neutra?
Claro que não é: é até bastante à direita. O que torna particularmente irónico
se não fosse trágico, ouvir um socialista dizer que quer estar com a “Europa”,
ou seja com as políticas de direita da actual maioria europeia. O Tratado
Orçamental selou esta aliança dando à “Europa” um modelo político de direita, a
que todos devem obediência.
9. Este “modelo”
implica um regime objectivamente autoritário, em qua as eleições são uma
perturbação perigosa e, no limite, desnecessária. Traduz-se em termos populares
por perguntas que se tornaram uma espécie de cianeto para o pensamento,
aparentemente sensatas, mas cujo lugar na argumentação não é para os homens
livres, aquele em que eles as colocam os mandantes e os seus colaboradores:
“quanto custa?” “onde está o dinheiro?”, “quem paga?”. E nem sequer podemos
questionar que sabemos onde está o dinheiro, só que não é nos bolsos onde o
querem ir buscar.
10. Estamos
reduzidos a isto. E se aceitamos este quadro de partida chegamos sempre à
chegada que convém a quem acha que isto é que é a “realidade” do “possível” em
política. Foi nesta armadilha em que o PS se meteu ao aceitar o quadro do
pensamento dominante (em nome seja lá do que for, da “Europa”, por exemplo) e
assim colocar-se inteiramente no terreno de uma discussão pública cujos termos
são os do governo e da maioria e que ela domina sempre melhor. Ao começarem a
apresentação de um projecto político por aquilo que deve ser um complemento
ancilar e não um ponto de partida, aceitaram o “economês” e todas as ideias
simplistas sobre a sociedade, a política e a economia que lhes estão
associadas. Parece quererem obter o beneplácito dos adversários, fishing for
compliments e atestados de responsabilidade dados pelos mentores e apoiantes da
actual maioria, que nunca deixarão de pensar que os “outros” fazem melhor. O PS
“confiável” é conveniente para eles passarem o intermezzo que acham que os
eleitores vão dar à maioria, para diminuir as tensões, mas depois tudo voltará
ao normal, um “ajustamento” eterno, que aumenta as desigualdades sociais,
fragiliza o poder do trabalho, reduz Portugal a uma versão pobre e medíocre de
uma Singapura falhada.
11. Os programas
políticos agora são auditados e auditáveis. Por quem? Por técnicos que lhes vão
dar notas pelo “trabalho de casa”. Mas esses técnicos não têm opiniões, não são
parte quando se trata, no fundo, de analisar políticas? Mas não, não é política
é uma folha de Excel. Vão dar notas? Alguém espera que o PS tenha mais do que
um sofrível dez e o PSD-CDS um melhor treze? Com que modelos, com que concepção
da sociedade, com que ideias, com que “economia”? Não. Com a “realidade”,
aquela mesmo de que falei atrás. Mas está tudo doido em democracia? É natural
que universidades, think tanks, economistas, comentadores, outros partidos
façam um trabalho de análise, com mais ou menos independência, mas querer a
validação de um programa político por técnicos oficiais do Estado, por
instâncias do Estado, é pretender um aval de outra natureza. E como é se
chumbarem a avaliação, vão mudar o programa, melhorar a folha de Excel, apelar
a um tribunal superior? Mais valia mandar directamente ao senhor Schäuble e à
senhora Merkel. E a prazo? Quem chumba não pode ir a exame? Vai haver exclusões
eleitorais porque os programas estão fora do “consenso europeu”? Já esteve mais longe.
12. Pobre país o
nosso, entregue a estas cabeças e a este desastre ambulante que é hoje a
Europa. Esta é das previsões mais fáceis de fazer: vai haver surpresas e todas
elas fora do “consenso europeu”. É que a história não é feita de modelos, mais
ou menos neo-malthusianos, que não incluem a complexidade da realidade, agora
sem aspas. E essa realidade é o ruído de que falava Max Weber: a regra desses
programas é falhar. A regra, não a excepção.
Sem comentários:
Enviar um comentário