O
império ortográfico
Rui
Ramos
16/5/2015
/ OBSERVADOR
O
Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um
paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo
aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal.
O chamado “Acordo
Ortográfico” tornou-se obrigatório esta semana – ou talvez não,
pois que tudo nesta matéria é confuso. O Brasil ou Angola são,
geralmente, as razões dadas para passarmos do acto ao ato. Mas o
Brasil nunca mostrou demasiado entusiasmo ou pressa em partilhar uma
mesma ortografia com Portugal – a nova grafia ainda nem sequer é
obrigatória por lá. Quanto a Angola, continua a pensar. A parte
portuguesa andou aqui à frente. Porquê?
Para perceber o
Acordo Ortográfico, não basta recuar a 1990. É preciso, pelo
menos, voltar a 1961. Nesse ano, o ditador Salazar, sem consultar o
país, decidiu que Portugal desenvolvera com os povos extra-europeus
sujeitos à administração portuguesa uma relação tão especial,
que se justificava defender essa administração contra tudo e contra
todos. Em 1974, a direcção revolucionária das forças armadas,
também sem consultar o país, decidiu abdicar dessa administração
e abandonar territórios e populações à ditadura e à guerra civil
dos chamados “movimentos de libertação”. Não renunciou, porém,
ao mito da relação especial. Essa relação teve uma novo avatar
enquanto “solidariedade anti-imperialista”, quando uma parte do
MFA também quis ser “movimento de libertação”, para depois, em
democracia, se redefinir como “comunidade de língua”.
Foi assim que, para
além das independências, as oligarquias democráticas mantiveram o
império numa versão linguística, a que era consentida por uma das
“línguas mais faladas do mundo”. Alguém então se terá
lembrado que Fernando Pessoa escreveu algures que “a minha pátria
é a língua portuguesa”. Nunca importou a ninguém o que Pessoa
quis dizer com a frase, logo entendida como o direito de qualquer
português continuar a sonhar com mapas onde Portugal, sendo talvez
pequeno, tem uma língua muito grande (“a sexta mais falada do
mundo”, etc.). Acontecia, porém, que, entre Portugal e o Brasil,
havia diferenças. Era preciso apagar esses vestígios de fronteiras,
pelo menos no papel. Só assim (argumentava-se), a língua poderia
emergir como única e grandiosa, reunindo o que se separara e
impondo-se ao que resistia. No fundo, este acordo ortográfico é
apenas o sintoma de uma descolonização mal resolvida.
Dir-me-ão: mas não
temos ou não deveremos cultivar as tais relações especiais com os
Estados onde o português é língua oficial? Sim, claro. Mas é
importante, a esse propósito, não esquecer duas coisas. A primeira
é que relações especiais não significam necessariamente ausência
de diferenças e de distâncias. Estas diferenças e distâncias são
aliás, no que diz respeito ao Brasil, muito mais profundas e
irreversíveis do que convém admitir ao imperialismo linguístico. O
português escrito no Brasil não se distingue apenas pela
ortografia, mas pelo vocabulário e sobretudo pela sintaxe. A
existirem, as relações especiais não deviam depender de quaisquer
homogeneizações, irrelevantes ou impossíveis, mas de uma maior
intensidade de comunicação, que habituasse portugueses e
brasileiros às características de escrever e de falar uns dos
outros. Ao reconhecer isso, há porém que reconhecer isto: não há
assim tanto interesse de um lado e do outro num intercâmbio
demasiado enérgico. As culturas que tradicionalmente mais fascinam
portugueses e brasileiros não são as dos outros países de língua
portuguesa, mas, por muitas razões, a das grandes potências do
Ocidente, como os EUA. Este Acordo Ortográfico é, portanto, uma
ilusão.
Mas há uma segunda
coisa: a língua portuguesa não nos une apenas ao Brasil ou a Angola
ou a Moçambique, mas também à Espanha, à Itália, à França,
mesmo à Inglaterra e a outros países europeus ou de formação
europeia. E a esse respeito, o Acordo Ortográfico tem um efeito
perverso: afasta o português escrito dessas outras línguas
europeias, com as quais tem raízes comuns, por via da rejeição,
como em reformas anteriores, da grafia etimológica. A palavra acto
assim escrita ainda sugere a palavra act para um inglês que não
fale português. Ato, não. Num momento de integração europeia,
optamos por uma grafia tropical, destinada a complicar a decifração
do português pelos nossos vizinhos e parceiros mais próximos (como
se já não bastasse a nossa pronúncia impenetrável). Não vou
reclamar o regresso da philosophia. Mas é pena que tivéssemos
deixado de ter uma palavra que evocasse imediatamente a philosophie
francesa ou a philosophy inglesa. Era aliás assim que Pessoa gostava
da sua pátria: “Philosopho deve escrever-se com 2 vezes PH porque
tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia
assenta nas bases clássicas ou pseudo-clássicas”.
O Acordo Ortográfico
é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial
que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil,
vamos abrasileirar Portugal, a ver se salvamos o mapa onde não somos
pequenos. Mas é precisamente assim que parecemos e somos pequenos. A
grandeza, hoje em dia, deveria consistir em tratar os países que têm
o português como língua oficial sem fraternidades falsas,
paternalismos deslocados, ou sujeições ridículas. E passa também
por perceber que há muito mais populações, para além das que
falam português, com quem temos uma história e um destino em comum.
O resultado de todos
estes devaneios de imperialismo linguístico é que deixámos de ter
uma ortografia consensual. O regime tenta agora compensar isso
através do terrorismo escolar exercido sobre crianças e jovens. O
que começou como um disparate acaba numa indignidade.
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