domingo, 6 de abril de 2014

Manuel Valls ignora Marine


Manuel Valls ignora Marine
JORGE ALMEIDA FERNANDES / PÚBLICO

É previsível uma mudança da política socialista no combate à Frente Nacional. Não se responde ao sentimento de abandono do povo com cruzadas de diabolização e palavras bonitas. “Responde-se com os actos”, diz o novo primeiro-ministro.

Manuel Valls, o novo primeiro-ministro francês, irrita Marine Le Pen, chefe da Frente Nacional. Ela acusa-o de “oportunismo”, “autoritarismo” e “desprezo das liberdades”. O atributo de “oportunismo” deriva da preocupação de Valls com temas como a insegurança e a imigração, rendosas “coutadas” políticas da FN. Em contraponto, Valls não a “diaboliza” nem parece por ela obcecado.

Enquanto ministro do Interior, preocupou-se com os factores de insegurança das classes populares e não cultivou os exorcismos verbais. Como primeiro-ministro, a sua prioridade passa a ser a economia — o rigor financeiro e a recuperação da competitividade francesa como condição para inverter a curva do desemprego e responder, entre outras coisas, à insegurança da sociedade.

Valls era o único ministro popular do anterior governo e, ao mesmo tempo, uma figura detestada pela “ala esquerda” do Partido Socialista Francês (PS), uns acusando-o de defender uma linha dura em matéria de segurança e imigração, outros de defender um programa económico demasiado liberal para seu gosto.

Em Agosto de 2012, na universidade de Verão do PS, em La Rochelle, Valls galvanizou o auditório na resposta aos seus críticos: “Para restaurar a República nos bairros [periféricos], são necessários empregos mas também segurança, porque a delinquência atinge antes de mais os mais modestos da sociedade. (...) A Nação é a invenção da esquerda e de 1789 e parece que o esquecemos. Nos bairros populares, que nos deram a sua confiança [em eleições] há também outras ordens que podem substituir a República e que em certos territórios já substituíram. A delinquência é uma dessas ordens.”

A escolha de Valls por François Hollande deve-se ao “electrochoque” provocado pelo descalabro socialista nas eleições municipais de Março e ao temor de outra hecatombe nas europeias de 25 de Maio. Deu a noção de ser uma última cartada para evitar a dissolução do Parlamento e manter o PS no poder.

A estratégia da bola de neve

Segundo a mais recente sondagem sobre as europeias, a UMP obteria o voto de 24% dos franceses, a FN 22 e o PS 19. Graças ao método proporcional, as europeias são o terreno mais favorável a Marine le Pen, que se propõe transformar a FN no “primeiro partido francês”, explorando a crise e o ressentimento em relação à Europa. As sondagens de Janeiro e Fevereiro, que a colocavam em primeiro lugar, davam crédito a esse objectivo.

As eleições locais foram um sismo político: “O bipartidarismo está morto e dá lugar ao tripartidarismo PSF, UMP e FN”, escreveu Françoise Fressoz, editorialista política do Monde. A FN segue “uma estratégia de bola de neve: uma vitória arrasta outra, maior do que a precedente”. Depois das municipais, em que lançou um programa de implantação local, sonha com as europeias, quer consolidar a implantação nas regionais de 2015 e, enfim, chegar numa posição de força às presidenciais de 2017.

Um dirigente socialista, Jean-Christophe Cambadélis, fizera idêntica análise antes do voto: “O problema de Hollande não é a escassa popularidade do Governo. É que um tripartidarismo está a instalar-se entre a UMP, o PS e a FN. A FN instalou-se no centro da vida política francesa. É isto o que está em jogo nas próximas eleições [locais e europeias].”

Marine passou a ocupar o “centro da vida política” e não apenas pelo número de votos. Ela procura, e em larga medida consegue, impor a “agenda” eleitoral e mediática, forçando os adversários a atacá-la em temas por ela escolhidos. A FN não põe em causa “a ordem republicana”, antes a invoca incessantemente — sobretudo contra o multiculturalismo e as comunidades muçulmanas que recusam a laicidade francesa.

Isto não quer dizer que esteja próxima do poder. As sondagens indicam que uma coisa é a intenção de voto na FN ou a “concordância com as suas ideias”, outra coisa é a sua credibilidade como partido de governo. Os seus eleitores não são estúpidos. Se o proteccionismo é popular, já as propostas de saída do euro e da UE são rejeitadas pela grande maioria. Os eleitores não levam a sério as suas miríficas ou absurdas receitas e promessas económicas.

“A FN é o ‘terceiro excluído’ da vida política desde a sua criação e tem a absoluta intenção de pôr termo a isto o mais rapidamente possível”, resume o politólogo Jean-Yves Camus. Para entrar no sistema, precisa de romper o actual modelo de bipolarização. Mas, para ser partido de governo, tem de mudar grande parte do seu discurso de protesto, o que não será simples.

Boas questões e más respostas

“A Frente Nacional coloca as verdadeiras questões a que dá as más respostas” — é uma sentença cunhada por Laurent Fabius, em 1984, quando era primeiro-ministro. Trinta anos depois, o dito é ainda mais pertinente. É que, entretanto, o discurso da FN tornou-se mais ofensivo, representando a cólera daquela “França de baixo” fustigada pela globalização e “esquecida” pelas elites políticas de esquerda e direita.

Marine Le Pen sabe atrair este eleitorado, defendendo um Estado forte e protector e dando voz a esses “esquecidos”, explicou a socióloga Nonna Meyer. Marine gritou num comício das eleições presidenciais: “Agricultores, desempregados, operários, habitantes dos campos franceses, vós sois os esquecidos, a maioria invisível, os triturados por um sistema financeiro enlouquecido. Para a casta política UMPS [UMP e PS], face ao seu deus, o triplo A, vós sois um triplo zero.”

Com o advento da “era pós-industrial”, que subverteu o mundo do trabalho, e depois com a globalização, a classe operária viu-se atacada em termos absolutos e relativos. Seguiu-se o declínio sindical. O Estado-providência começou a ser corroído. O “elevador social” desacelerou-se. Cresce a polarização entre beneficiários e perdedores da globalização.

A FN começou a ocupar antigos bastiões comunistas logo nos anos 1990. O politólogo Pascal Perrineau inventou a expressão “gaucho-lepénisme” (lepenismo de esquerda) para descrever o fenómeno. Muitos eleitores votavam FN continuando a invocar uma identidade de esquerda. Segundo um inquérito de 2013 do instituto IFOP, 42% dos operários diziam-se “próximos ou muito próximos” das ideias da FN.

Anota um estudo da Fundação Jean Jaurès (socialista): “O sucesso de Marine Le Pen nos meios populares explica-se muito simplesmente. Parece dispor do monopólio do reconhecimento da experiência popular. Mas a resposta às exigências populares — que estão a ganhar amplitude nas classes médias — não está condenada a ter apenas uma resposta populista.”

É aqui que as águas se partem.

Quem tem “culpa”?

François Mitterrand apreciava a ascensão da extrema-direita por duas razões. Primeiro, ao contrário da filha, Jean-Marie Le Pen não sonhava com o poder. Sempre quis ser um tribuno, inclusive num registo de rufião. Em segundo lugar, o seu discurso de extrema-direita, xenófobo e com ecos fascizantes, permitia a sua “diabolização” impedindo acordos eleitorais entre a direita conservadora e a FN, o que facilitava as vitórias eleitorais aos socialistas. Era a política do “cordão sanitário”.

A frase de Fabius mostra que muitos socialistas sabiam que o teatro da “diabolização” escondia um problema real. O filósofo Marcel Gauchet, autor do conceito “fractura social”, anunciara em 1990 “o regresso da luta de classes da forma que menos se esperava: para alimentar a contínua expansão eleitoral da extrema-direita”.

Tal como antes, não faltaram os avisos, como não faltam hoje as análises. Escrevia em 2012 o politólogo Laurent Bouvet, da área socialista: “Ao longo da última década, um pouco por toda a Europa e com ganhos no plano eleitoral, [a extrema-direita] foi ao encontro das aspirações populares abandonadas pela esquerda: o trabalho, a identidade nacional, o modelo de autoridade sócio-familiar, o sentido de pertença e de protecção colectiva.” Os sem-papéis, os homossexuais, as minorias identitárias ou culturais tornam-se para a esquerda “um povo de substituição”.

Em Maio de 2011, o think tank socialista Terra Nova teorizava um novo programa para Hollande, dando por perdido o eleitorado operário. “O declínio da classe operária — crescimento do desemprego, precarização, perda da identidade colectiva e do orgulho de classe, dificuldade de viver em certos bairros — leva-a a reacções defensivas: contra os imigrantes, contra os assistidos, contra a perda dos valores morais e as desordens da sociedade contemporânea.”

Era o contraponto entre uma “esquerda popular” e uma “esquerda societal”. O jornalista Eric Conan, que segue a FN há décadas, escreveu no semanário Marianne um libelo intitulado “Como a esquerda entregou o povo à FN”. Alguém ironizou que, “depois de perder o povo, a esquerda tem medo do populismo”.

Hollande procurou fazer uma “síntese” mas avisou que o seu objectivo era “reencontrar os laços com as categorias populares”: estas são a maioria do eleitorado.

Querelas e mitos

François Bonnet, director editorial do jornal digital Mediapart, manifestou perplexidade perante a nomeação de Valls. “Quando se exprimiu [no voto] uma exigência de esquerda e de justiça social, o Presidente opta pelo discurso da ordem, da segurança e do liberalismo: aquele mesmo que organizou a descida da esquerda aos infernos.” Hollande escolheu um “socialista de direita” para responder a um “défice de esquerda”. Os seus críticos atribuem a derrota nas locais a uma política demasiado direitista e liberal.

Laurent Joffrin, ex-director do Libération e do Nouvel Observateur, interroga-se neste semanário: “Valls está muito à direita?” Refuta as análises das várias esquerdas. As candidaturas à esquerda do PS tiveram “resultados honrosos” mas não mordem no eleitorado popular. Joffrin faz o raciocínio inverso. “Uma grande parte das famílias operárias e populares compreendem que os défices e as dívidas acabam por ser virar a prazo contra os seus beneficiários aparentes. (...) O que eles contestam é a falta de resultados, o que os faz suspeitar de que os sacrifícios consentidos foram em vão. Para lá dos erros de governação, é a principal razão do fiasco socialista nas municipais.” Hollande fez uma política aos ziguezagues e rapidamente perdeu credibilidade.

Passemos a outro ponto interessante: a elevada popularidade de Valls. A “ala esquerda” explica: Valls é o socialista mais popular na direita ou, até, mais popular na direita do que na esquerda. Esta “verdade” é um mito urbano. Valls tem uma elevada taxa de aprovação em quase todos os quadrantes políticos, mas sobretudo no eleitorado socialista.

Uma sondagem do instituto IFOP indica que 61% dos franceses aprovaram a sua nomeação: 77% entre os simpatizantes socialistas e 63 nos da UMP. E o eleitorado da FN? Sintomaticamente, ele parte-se: 51% a favor, 49 contra. A mais forte oposição vem da Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon, onde 58% o rejeitam. Outra sondagem dá-lhe uma taxa de apoio de 88% entre os eleitores socialistas.

Brice Teinturier, director do instituto Ipsos, observa que, à excepção do período Outubro-Dezembro de 2013, marcado pelo “caso Leonarda” (expulsão para o Kosovo, por imigração ilegal, de uma família, incluindo uma menor) e pelas suas declarações sobre os ciganos roms (“Não se querem integrar no nosso país” e “têm a vocação de voltar para a Roménia e a Bulgária”), Valls sempre foi mais popular na esquerda do que na direita.
As duas esquerdas

O problema passa por outro lado e é mais complicado do que “esquerda-direita”. Para lá da clivagem entre “populares” e “societais”, muitas outras dividem os socialistas.

A esquerda sempre esteve dilacerada em matéria de autoridade. Sempre houve tensão entre uma “esquerda libertária e antiautoritária” e uma “esquerda republicana” mais sensível à ordem pública e à legalidade. Esta divergência espelha-se agudamente no tratamento da delinquência e da imigração clandestina. Neste aspecto, Valls pertenceria ao “campo republicano”.

A “ala direita” do PS é sensível aos temas sociais e ao liberalismo económico, assumindo-se como “reformista”, mas intransigente na laicidade. Exalta a cidadania como espaço de emancipação contra os comunitarismos. A “ala esquerda” tende a ser mais estatista na economia e liberal no plano dos costumes, dando prioridade à emancipação individual e aceitando o multiculturalismo. Valls estaria no primeiro campo, Martine Aubry, Harlem Désir ou Christiane Taubira no segundo.

Isto remete-nos para a antiga oposição entre as duas esquerdas antagónicas da era Mitterrand. A “primeira esquerda” era politicamente republicana e jacobina, assim como economicamente estatista. A “segunda esquerda”, encarnada por Michel Rocard, era reformista, descentralizadora e autogestionária. Valorizava o mercado e a sociedade civil. A “primeira esquerda” qualificava “a segunda” como “direita do PS”. O curioso é que a “segunda esquerda” vinha do anticolonialismo e da oposição à guerra na Argélia, juntando católicos e esquerdistas. A arte de Mitterrand foi fazer a “síntese” das duas famílias, o que reforçava o seu poder de árbitro.

Manuel Valls, tal como Benoit Hamon, o novo ministro da Educação e expoente da “ala esquerda”, são herdeiros de Rocard. Em matéria económica, Hamon acentua a vertente de progresso social, Valls é um realista. Quando, em 2012, se candidatou às primárias socialistas fez um diagnóstico implacável da economia francesa e apontou duas prioridades: sanear as finanças e incentivar a competitividade. Cabe-lhe agora fazer isso mesmo com o “Pacto de responsabilidade” de Hollande a que muitos socialistas se opõem. Por isso alguém ironizou que o seu “governo de combate” será de “combate contra metade do PS”.

Se a grande maioria dos franceses aprova a escolha de Valls, as expectativas são baixas: apenas 33% crêem que o seu governo fará melhor do que o anterior. E os 51% dos eleitores socialistas que esperam mais não são um número assombroso. Não é pessimismo, é realismo. A margem de manobra de Valls será estreitíssima.

Voltando a Le Pen

“A estratégia anti-FN dos socialistas foi posta em xeque” nas eleições de Março, resumiu o Monde. O objectivo proclamado era impedir que Marine conquistasse uma única cidade. O secretário nacional, Harlem Désir, dobrado por personalidades como a ministra Christiane Taubira, voltou a recorrer à “diabolização” sob o nome de “combate cultural e político” contra a FN. Esta estratégia, que lembra a do SOS Racisme — de que Désir foi fundador e presidente — nos anos 1980, foi criticada no PS como “obsoleta”. Acrescentou um dirigente socialista: “Designar a tal ponto a FN como adversário principal foi um erro. Fazê-lo foi de certa forma legitimar e instalar [a FN] no centro da vida política nacional.”

A “diabolização” e o “cordão sanitário” terão sofrido um golpe no dia 30 de Março. O Monde, que sempre defendeu essa linha, titulou em manchete: “A estratégia de Marine Le Pen para conquistar o poder.” No interior, publicava uma entrevista de página inteira com a líder da FN, tratada como qualquer outro político.

O desafio das europeias é difícil. Não é em 50 dias que um governo mostra resultados ou que inverte uma dinâmica política que vem de longe. Apenas pode começar a restabelecer a credibilidade da governação — e esta é um assunto que preocupará Marine Le Pen.

Valls discorda das “cruzadas” contra a FN. Quando era ministro do Interior, declarou: “Não se responde ao sentimento de abandono e à perda de esperança pela polémica e por palavras bonitas. Combatem-se com os actos.” O resto é ajudar à projecção da FN.


Por isso é previsível que Valls se concentre na economia, ouça as queixas da sociedade e ignore Marine. Alguém o aconselhou a seguir o exemplo de Mendés France (1907-82), uma das suas referências políticas: “Explique, explique, explique” os seus actos. No fim, é pelos actos que será julgado.

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