Manuel Valls ignora Marine
JORGE ALMEIDA
FERNANDES / PÚBLICO
É previsível uma
mudança da política socialista no combate à Frente Nacional. Não se responde ao
sentimento de abandono do povo com cruzadas de diabolização e palavras bonitas.
“Responde-se com os actos”, diz o novo primeiro-ministro.
Manuel Valls, o
novo primeiro-ministro francês, irrita Marine Le Pen, chefe da Frente Nacional.
Ela acusa-o de “oportunismo”, “autoritarismo” e “desprezo das liberdades”. O
atributo de “oportunismo” deriva da preocupação de Valls com temas como a
insegurança e a imigração, rendosas “coutadas” políticas da FN. Em contraponto,
Valls não a “diaboliza” nem parece por ela obcecado.
Enquanto ministro
do Interior, preocupou-se com os factores de insegurança das classes populares
e não cultivou os exorcismos verbais. Como primeiro-ministro, a sua prioridade
passa a ser a economia — o rigor financeiro e a recuperação da competitividade
francesa como condição para inverter a curva do desemprego e responder, entre
outras coisas, à insegurança da sociedade.
Valls era o único
ministro popular do anterior governo e, ao mesmo tempo, uma figura detestada
pela “ala esquerda” do Partido Socialista Francês (PS), uns acusando-o de
defender uma linha dura em matéria de segurança e imigração, outros de defender
um programa económico demasiado liberal para seu gosto.
Em Agosto de
2012, na universidade de Verão do PS, em La Rochelle, Valls galvanizou o
auditório na resposta aos seus críticos: “Para restaurar a República nos
bairros [periféricos], são necessários empregos mas também segurança, porque a
delinquência atinge antes de mais os mais modestos da sociedade. (...) A Nação
é a invenção da esquerda e de 1789 e parece que o esquecemos. Nos bairros
populares, que nos deram a sua confiança [em eleições] há também outras ordens
que podem substituir a República e que em certos territórios já substituíram. A
delinquência é uma dessas ordens.”
A escolha de
Valls por François Hollande deve-se ao “electrochoque” provocado pelo
descalabro socialista nas eleições municipais de Março e ao temor de outra
hecatombe nas europeias de 25 de Maio. Deu a noção de ser uma última cartada
para evitar a dissolução do Parlamento e manter o PS no poder.
A estratégia da
bola de neve
Segundo a mais
recente sondagem sobre as europeias, a UMP obteria o voto de 24% dos franceses,
a FN 22 e o PS 19. Graças ao método proporcional, as europeias são o terreno
mais favorável a Marine le Pen, que se propõe transformar a FN no “primeiro
partido francês”, explorando a crise e o ressentimento em relação à Europa. As
sondagens de Janeiro e Fevereiro, que a colocavam em primeiro lugar, davam
crédito a esse objectivo.
As eleições
locais foram um sismo político: “O bipartidarismo está morto e dá lugar ao
tripartidarismo PSF, UMP e FN”, escreveu Françoise Fressoz, editorialista
política do Monde. A FN segue “uma estratégia de bola de neve: uma vitória
arrasta outra, maior do que a precedente”. Depois das municipais, em que lançou
um programa de implantação local, sonha com as europeias, quer consolidar a
implantação nas regionais de 2015 e, enfim, chegar numa posição de força às
presidenciais de 2017.
Um dirigente
socialista, Jean-Christophe Cambadélis, fizera idêntica análise antes do voto:
“O problema de Hollande não é a escassa popularidade do Governo. É que um
tripartidarismo está a instalar-se entre a UMP, o PS e a FN. A FN instalou-se
no centro da vida política francesa. É isto o que está em jogo nas próximas
eleições [locais e europeias].”
Marine passou a ocupar
o “centro da vida política” e não apenas pelo número de votos. Ela procura, e
em larga medida consegue, impor a “agenda” eleitoral e mediática, forçando os
adversários a atacá-la em temas por ela escolhidos. A FN não põe em causa “a
ordem republicana”, antes a invoca incessantemente — sobretudo contra o
multiculturalismo e as comunidades muçulmanas que recusam a laicidade francesa.
Isto não quer
dizer que esteja próxima do poder. As sondagens indicam que uma coisa é a
intenção de voto na FN ou a “concordância com as suas ideias”, outra coisa é a
sua credibilidade como partido de governo. Os seus eleitores não são estúpidos.
Se o proteccionismo é popular, já as propostas de saída do euro e da UE são
rejeitadas pela grande maioria. Os eleitores não levam a sério as suas
miríficas ou absurdas receitas e promessas económicas.
“A FN é o
‘terceiro excluído’ da vida política desde a sua criação e tem a absoluta
intenção de pôr termo a isto o mais rapidamente possível”, resume o politólogo
Jean-Yves Camus. Para entrar no sistema, precisa de romper o actual modelo de
bipolarização. Mas, para ser partido de governo, tem de mudar grande parte do
seu discurso de protesto, o que não será simples.
Boas questões e
más respostas
“A Frente
Nacional coloca as verdadeiras questões a que dá as más respostas” — é uma
sentença cunhada por Laurent Fabius, em 1984, quando era primeiro-ministro.
Trinta anos depois, o dito é ainda mais pertinente. É que, entretanto, o
discurso da FN tornou-se mais ofensivo, representando a cólera daquela “França
de baixo” fustigada pela globalização e “esquecida” pelas elites políticas de
esquerda e direita.
Marine Le Pen
sabe atrair este eleitorado, defendendo um Estado forte e protector e dando voz
a esses “esquecidos”, explicou a socióloga Nonna Meyer. Marine gritou num
comício das eleições presidenciais: “Agricultores, desempregados, operários,
habitantes dos campos franceses, vós sois os esquecidos, a maioria invisível,
os triturados por um sistema financeiro enlouquecido. Para a casta política
UMPS [UMP e PS], face ao seu deus, o triplo A, vós sois um triplo zero.”
Com o advento da
“era pós-industrial”, que subverteu o mundo do trabalho, e depois com a
globalização, a classe operária viu-se atacada em termos absolutos e relativos.
Seguiu-se o declínio sindical. O Estado-providência começou a ser corroído. O
“elevador social” desacelerou-se. Cresce a polarização entre beneficiários e
perdedores da globalização.
A FN começou a
ocupar antigos bastiões comunistas logo nos anos 1990. O politólogo Pascal
Perrineau inventou a expressão “gaucho-lepénisme” (lepenismo de esquerda) para
descrever o fenómeno. Muitos eleitores votavam FN continuando a invocar uma
identidade de esquerda. Segundo um inquérito de 2013 do instituto IFOP, 42% dos
operários diziam-se “próximos ou muito próximos” das ideias da FN.
Anota um estudo
da Fundação Jean Jaurès (socialista): “O sucesso de Marine Le Pen nos meios
populares explica-se muito simplesmente. Parece dispor do monopólio do
reconhecimento da experiência popular. Mas a resposta às exigências populares —
que estão a ganhar amplitude nas classes médias — não está condenada a ter
apenas uma resposta populista.”
É aqui que as
águas se partem.
Quem tem “culpa”?
François
Mitterrand apreciava a ascensão da extrema-direita por duas razões. Primeiro,
ao contrário da filha, Jean-Marie Le Pen não sonhava com o poder. Sempre quis
ser um tribuno, inclusive num registo de rufião. Em segundo lugar, o seu
discurso de extrema-direita, xenófobo e com ecos fascizantes, permitia a sua
“diabolização” impedindo acordos eleitorais entre a direita conservadora e a
FN, o que facilitava as vitórias eleitorais aos socialistas. Era a política do
“cordão sanitário”.
A frase de Fabius
mostra que muitos socialistas sabiam que o teatro da “diabolização” escondia um
problema real. O filósofo Marcel Gauchet, autor do conceito “fractura social”,
anunciara em 1990 “o regresso da luta de classes da forma que menos se
esperava: para alimentar a contínua expansão eleitoral da extrema-direita”.
Tal como antes,
não faltaram os avisos, como não faltam hoje as análises. Escrevia em 2012 o
politólogo Laurent Bouvet, da área socialista: “Ao longo da última década, um
pouco por toda a Europa e com ganhos no plano eleitoral, [a extrema-direita]
foi ao encontro das aspirações populares abandonadas pela esquerda: o trabalho,
a identidade nacional, o modelo de autoridade sócio-familiar, o sentido de
pertença e de protecção colectiva.” Os sem-papéis, os homossexuais, as minorias
identitárias ou culturais tornam-se para a esquerda “um povo de substituição”.
Em Maio de 2011,
o think tank socialista Terra Nova teorizava um novo programa para Hollande,
dando por perdido o eleitorado operário. “O declínio da classe operária —
crescimento do desemprego, precarização, perda da identidade colectiva e do
orgulho de classe, dificuldade de viver em certos bairros — leva-a a reacções
defensivas: contra os imigrantes, contra os assistidos, contra a perda dos
valores morais e as desordens da sociedade contemporânea.”
Era o contraponto
entre uma “esquerda popular” e uma “esquerda societal”. O jornalista Eric
Conan, que segue a FN há décadas, escreveu no semanário Marianne um libelo
intitulado “Como a esquerda entregou o povo à FN”. Alguém ironizou que, “depois
de perder o povo, a esquerda tem medo do populismo”.
Hollande procurou
fazer uma “síntese” mas avisou que o seu objectivo era “reencontrar os laços
com as categorias populares”: estas são a maioria do eleitorado.
Querelas e mitos
François Bonnet,
director editorial do jornal digital Mediapart, manifestou perplexidade perante
a nomeação de Valls. “Quando se exprimiu [no voto] uma exigência de esquerda e
de justiça social, o Presidente opta pelo discurso da ordem, da segurança e do
liberalismo: aquele mesmo que organizou a descida da esquerda aos infernos.”
Hollande escolheu um “socialista de direita” para responder a um “défice de
esquerda”. Os seus críticos atribuem a derrota nas locais a uma política
demasiado direitista e liberal.
Laurent Joffrin,
ex-director do Libération e do Nouvel Observateur, interroga-se neste
semanário: “Valls está muito à direita?” Refuta as análises das várias
esquerdas. As candidaturas à esquerda do PS tiveram “resultados honrosos” mas
não mordem no eleitorado popular. Joffrin faz o raciocínio inverso. “Uma grande
parte das famílias operárias e populares compreendem que os défices e as
dívidas acabam por ser virar a prazo contra os seus beneficiários aparentes.
(...) O que eles contestam é a falta de resultados, o que os faz suspeitar de
que os sacrifícios consentidos foram em vão. Para lá dos erros de governação, é
a principal razão do fiasco socialista nas municipais.” Hollande fez uma
política aos ziguezagues e rapidamente perdeu credibilidade.
Passemos a outro
ponto interessante: a elevada popularidade de Valls. A “ala esquerda” explica:
Valls é o socialista mais popular na direita ou, até, mais popular na direita
do que na esquerda. Esta “verdade” é um mito urbano. Valls tem uma elevada taxa
de aprovação em quase todos os quadrantes políticos, mas sobretudo no
eleitorado socialista.
Uma sondagem do
instituto IFOP indica que 61% dos franceses aprovaram a sua nomeação: 77% entre
os simpatizantes socialistas e 63 nos da UMP. E o eleitorado da FN? Sintomaticamente,
ele parte-se: 51% a favor, 49 contra. A mais forte oposição vem da Frente de
Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon, onde 58% o rejeitam. Outra sondagem dá-lhe uma
taxa de apoio de 88% entre os eleitores socialistas.
Brice Teinturier,
director do instituto Ipsos, observa que, à excepção do período
Outubro-Dezembro de 2013, marcado pelo “caso Leonarda” (expulsão para o Kosovo,
por imigração ilegal, de uma família, incluindo uma menor) e pelas suas
declarações sobre os ciganos roms (“Não se querem integrar no nosso país” e
“têm a vocação de voltar para a Roménia e a Bulgária”), Valls sempre foi mais
popular na esquerda do que na direita.
As duas esquerdas
O problema passa
por outro lado e é mais complicado do que “esquerda-direita”. Para lá da
clivagem entre “populares” e “societais”, muitas outras dividem os socialistas.
A esquerda sempre
esteve dilacerada em matéria de autoridade. Sempre houve tensão entre uma
“esquerda libertária e antiautoritária” e uma “esquerda republicana” mais
sensível à ordem pública e à legalidade. Esta divergência espelha-se agudamente
no tratamento da delinquência e da imigração clandestina. Neste aspecto, Valls
pertenceria ao “campo republicano”.
A “ala direita”
do PS é sensível aos temas sociais e ao liberalismo económico, assumindo-se
como “reformista”, mas intransigente na laicidade. Exalta a cidadania como
espaço de emancipação contra os comunitarismos. A “ala esquerda” tende a ser
mais estatista na economia e liberal no plano dos costumes, dando prioridade à
emancipação individual e aceitando o multiculturalismo. Valls estaria no
primeiro campo, Martine Aubry, Harlem Désir ou Christiane Taubira no segundo.
Isto remete-nos
para a antiga oposição entre as duas esquerdas antagónicas da era Mitterrand. A
“primeira esquerda” era politicamente republicana e jacobina, assim como
economicamente estatista. A “segunda esquerda”, encarnada por Michel Rocard,
era reformista, descentralizadora e autogestionária. Valorizava o mercado e a
sociedade civil. A “primeira esquerda” qualificava “a segunda” como “direita do
PS”. O curioso é que a “segunda esquerda” vinha do anticolonialismo e da
oposição à guerra na Argélia, juntando católicos e esquerdistas. A arte de
Mitterrand foi fazer a “síntese” das duas famílias, o que reforçava o seu poder
de árbitro.
Manuel Valls, tal
como Benoit Hamon, o novo ministro da Educação e expoente da “ala esquerda”,
são herdeiros de Rocard. Em matéria económica, Hamon acentua a vertente de
progresso social, Valls é um realista. Quando, em 2012, se candidatou às
primárias socialistas fez um diagnóstico implacável da economia francesa e
apontou duas prioridades: sanear as finanças e incentivar a competitividade.
Cabe-lhe agora fazer isso mesmo com o “Pacto de responsabilidade” de Hollande a
que muitos socialistas se opõem. Por isso alguém ironizou que o seu “governo de
combate” será de “combate contra metade do PS”.
Se a grande
maioria dos franceses aprova a escolha de Valls, as expectativas são baixas:
apenas 33% crêem que o seu governo fará melhor do que o anterior. E os 51% dos
eleitores socialistas que esperam mais não são um número assombroso. Não é
pessimismo, é realismo. A margem de manobra de Valls será estreitíssima.
Voltando a Le Pen
“A estratégia
anti-FN dos socialistas foi posta em xeque” nas eleições de Março, resumiu o
Monde. O objectivo proclamado era impedir que Marine conquistasse uma única
cidade. O secretário nacional, Harlem Désir, dobrado por personalidades como a
ministra Christiane Taubira, voltou a recorrer à “diabolização” sob o nome de
“combate cultural e político” contra a FN. Esta estratégia, que lembra a do SOS
Racisme — de que Désir foi fundador e presidente — nos anos 1980, foi criticada
no PS como “obsoleta”. Acrescentou um dirigente socialista: “Designar a tal
ponto a FN como adversário principal foi um erro. Fazê-lo foi de certa forma
legitimar e instalar [a FN] no centro da vida política nacional.”
A “diabolização”
e o “cordão sanitário” terão sofrido um golpe no dia 30 de Março. O Monde, que
sempre defendeu essa linha, titulou em manchete: “A estratégia de Marine Le Pen
para conquistar o poder.” No interior, publicava uma entrevista de página
inteira com a líder da FN, tratada como qualquer outro político.
O desafio das
europeias é difícil. Não é em 50 dias que um governo mostra resultados ou que
inverte uma dinâmica política que vem de longe. Apenas pode começar a
restabelecer a credibilidade da governação — e esta é um assunto que preocupará
Marine Le Pen.
Valls discorda
das “cruzadas” contra a FN. Quando era ministro do Interior, declarou: “Não se
responde ao sentimento de abandono e à perda de esperança pela polémica e por
palavras bonitas. Combatem-se com os actos.” O resto é ajudar à projecção da
FN.
Por isso é
previsível que Valls se concentre na economia, ouça as queixas da sociedade e
ignore Marine. Alguém o aconselhou a seguir o exemplo de Mendés France
(1907-82), uma das suas referências políticas: “Explique, explique, explique”
os seus actos. No fim, é pelos actos que será julgado.
Sem comentários:
Enviar um comentário