Quem
tem medo de eleições?
Rui
Ramos
27/10/2015,
OBSERVADOR
As
eleições do dia 4 geraram uma situação em que quem não for para
o governo, virá para a rua. Só novas eleições podem evitar que
questões de “legitimidade” envenenem a vida pública portuguesa.
As eleições de 4
de Outubro geraram uma situação em que, como já toda a gente
percebeu, quem não for para o governo, virá para a rua contestar a
“legitimidade” de quem fique a governar.
Imaginemos que o
presidente da república, uma vez o governo de Pedro Passos Coelho
chumbado no parlamento, decide mantê-lo em gestão. A frente
PCP-BE-Costa declarar-se-ia imediatamente vítima de uma exclusão
“ilegítima”. Teríamos em pouco tempo as camionetas da CGTP a
encher o Terreiro do Paço de fúria contra a ditadura presidencial e
contra políticas rejeitadas por 60% do eleitorado.
Imaginemos, em vez
disso, que o presidente dá posse a um governo minoritário de
António Costa, sustentado pelo PCP e pelo BE. A coligação PSD-CDS
anunciaria logo ter sido roubada da sua vitória eleitoral. Não lhe
seria difícil inspirar indignação contra o governo “ilegítimo”
de uma coligação de derrotados, e suscitar protestos contra um
primeiro-ministro rejeitado por 68% do eleitorado.
A dramatização é
inevitável, porque o sistema político português mudou
radicalmente: pela primeira vez, o líder de um partido poderá ser
primeiro-ministro sem ter sido o mais votado; pela primeira vez, o
PCP e os neo-comunistas do BE poderão participar na governação.
Mas as últimas eleições ainda foram disputadas segundo as regras e
as convenções antigas. Será por isso possível a um ou a outro
lado contestar a “legitimidade” do resultado político das
eleições, seja esse resultado o governo de Passos ou o de Costa:
uns invocarão as regras antigas, outros afirmarão a existência de
regras novas.
Não sendo possível
voltar atrás, só há um remédio: consagrar eleitoralmente as novas
regras e convenções, isto é, disputar o mais depressa possível
eleições em que candidatos e eleitores estejam à partida cientes
de que governará o partido que congregar mais apoio parlamentar,
mesmo que, por hipótese, seja o menos votado, e que um voto no PS já
não é um voto no extinto “arco-da-governação”, mas numa
“maioria de esquerda”. Só novas eleições podem evitar as
questões de “legitimidade” que de outro modo envenenarão a vida
pública portuguesa nos próximos anos.
Aceite a solução
eleitoral, há uma primeira dificuldade: que fazer entre a eventual
queda do governo de Passos Coelho e a data mais próxima para novas
eleições, isto é, entre Novembro de 2015 e Junho de 2016? Manter o
governo de Passos Coelho em gestão ou nomear António Costa para um
governo temporário não seriam boas opções: qualquer delas
provocaria apenas a mobilização dos excluídos, para além das
dificuldades associadas a um regime de gestão no primeiro caso. Um
governo de iniciativa presidencial, que seria a outra possibilidade,
não parece entusiasmar nem o próprio presidente.
Por tudo isso, há
que encarar outro tipo de solução governativa, e essa pode ser a de
um governo de transição que resultasse de um pacto entre os
partidos parlamentares, com vista a garantir a governação até às
próximas eleições. A iniciativa caberia aos partidos, e seria
depois sancionada pelo presidente da república. Esse governo
continuaria a responder perante o parlamento e o país. Não
corresponderia a nenhuma “suspensão da democracia”, mas apenas à
necessidade de assegurar uma governação eficaz e imparcial num
período entre eleições. Teria um prazo definido e um mandato que o
habilitasse a corresponder a todas as urgências decorrentes da
situação financeira e dos compromissos internacionais (os quais são
agora aceites por todos os partidos, a crer no que é dito pelos
negociadores da “maioria de esquerda”). Mas limitar-se-ia a si
próprio quanto a outras decisões. Não seria um governo de gestão,
mas um governo que, com plenos poderes, os exerceria com prudência e
contenção.
Para protagonizar
esta governação, os partidos poderiam recorrer a personalidades
públicas com um estatuto de tipo “senatorial”, distantes das
querelas partidárias: por exemplo, pessoas com o perfil de Guilherme
de Oliveira Martins, Teodora Cardoso, Eduardo Marçal Grilo, João
Lobo Antunes, Emílio Rui Vilar, Joaquim Gomes Canotilho, Eduardo
Catroga, Luís Campos e Cunha, João Salgueiro, ou Artur Santos
Silva. É uma fórmula inédita, mas, como dizia Brecht: quando há
obstáculos, a linha torta pode ser o caminho mais curto entre dois
pontos.
Esta solução teria
outra vantagem: prevenir uma eventual pressão partidária para
transformar as eleições presidenciais de Janeiro na segunda volta
das legislativas de 4 de Outubro. Com um acordo entre os partidos
para novas eleições e a governação assegurada deste modo para um
período de transição, o novo presidente da república teria
certamente em conta o consenso nacional, e, logo que possível,
dissolveria a Assembleia da República e marcaria eleições para a
data mais próxima. Aos cidadãos caberia então fazer uma escolha
decisiva, entre a coligação PSD-CDS e a frente PCP-BE-Costa. Seria
a ocasião para o país resolver de uma vez por todas se pretende
manter as políticas de defesa do crédito público e continuação
no euro, ou seguir por outro caminho. Ninguém que esteja certo de
ter o país consigo deve ter medo de eleições.
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