Os
socialistas e a “esquerda da esquerda”
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 18/10/2015 / PÚBLICO
“Uma
esquerda que iluda os eleitores sobre a possibilidade de um regresso
à idade de ouro da social-democracia ou que ponha entre parêntesis
a tempestade que se aproxima não tem futuro nem sequer grande
presente.”
Começo por uma
história de fantasmas. Quando o Syriza ganhou as eleições gregas
de Janeiro, alguns sectores do PS português evocaram o fantasma da
“pasokização”. Nesta linha, a simpatia manifestada perante a
vitória de Alexis Tsipras tinha implícito um desejo de “viragem à
esquerda”. O fantasma voltou na ressaca da derrota de 4 de Outubro
e tornou as coisas um pouco mais claras. É um “problema
estratégico”, escreveu um dirigente socialista: se o PS viabilizar
um governo de Passos Coelho vai “pasokar”. Traduza-se o
raciocínio: o PS acabará devorado pelo Bloco de Esquerda se não se
aliar ou aproximar dele.
Este argumento
merece uma breve rectificação. O Syriza está inocente no
desabamento do Pasok, partido velho e anquilosado, clientelista e
corrupto, cujo fundador, Andreas Papandreou (1919-1996), inventou nos
anos 1980 o fabuloso modelo do “socialismo da dívida” que duas
décadas depois levou a Grécia à bancarrota e à tragédia. O Pasok
pagou a factura e implodiu. Que o Syriza tenha atraído parte do seu
eleitorado é outra questão.
A crise aberta
depois das eleições é uma disputa do poder e de legitimidade. Mas
tem outras dimensões, como os dilemas estratégicos dos partidos
socialistas, o tema que aqui me interessa. A relação entre
socialistas e esquerdas radicais levanta múltiplas questões. Mas o
que é determinante é aquilo que o PS ou uma “maioria de esquerda”
contam fazer com o poder. A lógica das alianças está subordinada
ao seu projecto político.
“A esquerda pode
morrer”, proclamou no ano passado o primeiro-ministro francês,
Manuel Valls, advogando a necessidade de uma ruptura com o
“conservadorismo” da esquerda, com a enquistada resistência à
mudança que encobre a recusa de olhar as transformações do mundo e
tirar as consequências. No caso do PS português, e sem saber o
desfecho das negociações (escrevo na sexta-feira), a opção por
uma “maioria de esquerda” daria o sinal inverso: meter na gaveta
as reformas de fundo pois é neste terreno – basta pensar na
segurança social – que mais irredutível será a contradição
entre o PS e a “esquerda da esquerda”. Para não falar no euro,
na NATO ou na “tempestade perfeita” em que a Europa está a
mergulhar, pontos de elevado atrito e que o PS tenta colocar entre
parêntesis.
Sob a capa de uma
“ruptura histórica” no quadro das alianças, a “maioria de
esquerda” indiciaria uma opção “conservadora”, no sentido de
que inviabilizaria reformas ou “pactos de regime” que ameacem o
statu quo.
Corbyn
Passemos um olhar
por duas outras eleições. As vitórias e as derrotas vão e vêm. E
os partidos tiram lições distintas. Na Inglaterra, a derrota do
Labour nas eleições de Maio trouxe a surpresa Jeremy Corbyn. A sua
eleição como líder trabalhista não significou a vontade de um
regresso rápido ao poder. Pelo contrário, traduziu uma revolta
contra os compromissos que governar impõe. Explicou no The Guardian
o analista Jonathan Freedland que o que está em causa na mobilização
pró-Corbyn “nada tem a ver com a construção de uma maioria
governamental, com a conquista do poder ou até com uma mudança da
sociedade. O que está em causa é a identidade”. É a
“autenticidade” do partido e dos militantes. Apenas 10% dos
adeptos de Corbyn consideraram importante que o líder do partido
compreendesse “o que é necessário para vencer uma eleição”.
Por isso não os preocupa que Corbyn assuma o programa trabalhista
dos anos 1970.
A crise não
revigorou apenas os conservadores. Fez também ressurgir as velhas
esquerdas que, fazendo um uso eficaz dos novos meios de comunicação,
propõem o mesmo programa de sempre, da nacionalização dos sectores
estratégicos à tentação soberanista e de isolamento económico.
Esta disputa tem
ainda uma dimensão moral. “Os moderados do Labour cometeram um
grave erro estratégico ao permitir à esquerda reclamar a
superioridade moral”, comentou no The Guardian o colunista Rafael
Behr. “Corbyn não tem o monopólio da virtude.” Os moderados
“foram cúmplices na divisão do Labour em duas esferas: a dos
princípios, que pertence à esquerda [trabalhista], e a do cálculo
cínico, própria da direita [trabalhista]”.
Renzi
Como contraste pode
referir-se a via do Partido Democrático (PD) italiano, de Matteo
Renzi. Os militantes estavam cansados de perder eleições. Nas
legislativas de 2013, o então líder, Pierluigi Bersani, cometeu a
proeza de não ganhar apesar de Berlusconi ter perdido. Muitos
eleitores fugiram para o populista Beppe Grillo ou para a abstenção.
A politóloga Elisabetta Gualmini pôs o dedo na ferida: “[O PD] é
um partido que renunciou a elaborar um programa e uma estratégia
para vencer eleições, preferindo defender a identidade interna e os
grupos dirigentes, velhos e novos, que lhe são fiéis.”
Essa derrota abriu
caminho para que Matteo Renzi fosse eleito secretário nacional nas
primárias de Dezembro de 2013, com a maioria absoluta entre
militantes e eleitores. Em Fevereiro seguinte, assumiu a chefia do
governo para se lançar numa frenética política de reformas, apesar
de contar com uma frágil e estranha maioria parlamentar. Renzi era
um alien dentro do partido, dominado pela cultura política do século
XX. Foi legitimado por uma esmagadora vitória nas eleições
europeias de 2014.
Escreveu-se: “A
esquerda reaprendeu a vencer”. Como? A tradição da esquerda
visava assegurar o eleitorado fiel, com um discurso centrado na
identidade partidária, para depois fazer alianças, naturais ou
bastardas. Renzi falou sempre para fora do partido. Observou no La
Repubblica o jornalista Massimo Gramellini: “O teorema de Renzi,
que subverteu as leis da física política italiana, reza o seguinte:
para transformar uma minoria em maioria é preciso ir buscar votos
aos adversários.”
Renzi mudou o estilo
de fazer política, mudou a linguagem e começou a demolir os
fetiches ideológicos da “velha esquerda”. Quer pragmaticamente
reformar as instituições. Depois das leis do trabalho, acaba de
concluir a primeira grande reforma constitucional ao mudar o papel do
Senado, fonte da instabilidade governativa. A esquerda tem o dever de
salvar o welfare state, mas para isso tem de o racionalizar. A
prioridade é o emprego, sobretudo para os jovens, mas para isso
exige destruir o apartheid entre os que estão dentro, e são
protegidos, e os que estão fora e não têm direitos. O modelo da
flexi-segurança, de inspiração nórdica, é uma das vias,
contestada embora pelos sindicatos que denunciam o trabalho precário
mas apenas defendem “os que estão dentro”. Note-se que, na
Itália, o debate sobre o trabalho remonta aos anos 1990 e foi quase
sempre conduzido pela esquerda.
Preveniu Renzi:
“Perante as mutações da sociedade, a esquerda tem medo. Parece
que não se dá conta de que o novo mundo em que vivemos é também
fruto do sucesso das suas próprias políticas, das mudanças
ocorridas no século XX graças à sua iniciativa.” E ironizou
provocatoriamente: “Uma esquerda que não muda é de direita.”
Da social-democracia
É altura de mudar
de registo. As opostas decisões do Labour e do PD não escondem,
antes sublinham, que a esquerda tem um sério problema. A crise
financeira atingiu mais os partidos socialistas e sociais-democratas
do que os conservadores por terem mais dificuldade em formular um
projecto próprio para lhe responder. “Falta-lhes um discurso
convincente sobre a globalização, a imigração e a redistribuição
no contexto de penúria orçamental”, assinala a politóloga
francesa Pauline Schnapper.
Desespera
Jean-Christophe Cambadélis, primeiro secretário do PS francês:
“Todas as esquerdas europeias perderam o debate cultural. A
igualdade era antes o ponto central de debate. (…) Agora passa para
primeiro plano o conceito de identidade: o meu povo, a minha região,
o meu país (…) perante a Europa e a globalização. (…) A grande
dificuldade é voltar a centrarmo-nos no tema da igualdade, quando as
circunstâncias tornam impossível a redistribuição.”
A debilidade dos
partidos de esquerda manifesta-se de acordo com especificidades
nacionais mas deriva de transformações estruturais ocorridas nos
últimos 40 anos, bem antes da queda do Muro de Berlim e dos seus
efeitos ideológicos.
A social-democracia
assentava numa aliança tácita entre a classe operária e as novas
classes médias assalariadas, que começou a romper-se nos anos 1970.
Esta “coligação” tinha como pressupostos um crescimento
económico acelerado – os “trinta gloriosos” – , a promoção
social e o desenvolvimento do Estado-providência. O modelo foi posto
em causa a partir do “choque petrolífero” de 1973.
Como efeito das
mudanças tecnológicas da “era pós-industrial”, e mais tarde da
globalização, a classe operária é atacada em termos absolutos e
relativos, arrastando o declínio sindical. O “elevador social”
desacelera-se. O Estado-providência começa a ser corroído. O
neoliberalismo começa a prevalecer sobre o keynesianismo.
Este processo vai
culminar numa outra mudança. A esquerda vê fugir a sua base
operária. O voto de classe diminui enquanto prosperam o voto
flutuante e o de protesto. Em países como a França, a Frente
Nacional, de Le Pen, torna-se no maior partido operário. Anunciou o
Le Monde: “O mítico ‘povo de esquerda’ funde-se como neve ao
sol.”
Também mudou a área
conservadora. A Europa foi construída no pós-guerra pelas duas
grandes famílias políticas: democratas-cristãos e
sociais-democratas. Anota o analista espanhol Andrés Ortega que “a
globalização e as mudanças internas nas sociedades minaram a
democracia-cristã”, fazendo ascender na direita forças
ideologicamente mais radicais.
A “esquerda da
esquerda”
À “esquerda da
esquerda” proliferam movimentos populistas radicais que parecem de
vento em popa. O caldo de cultura é conhecido: o protesto contra as
políticas de austeridade, a crise da representação politica, a
rejeição das elites dirigentes e a denúncia da “casta”, o
discurso anti-euro e, por vezes, anti-UE. “Há no seu discurso uma
ressurgência das temáticas dos partidos comunistas dos anos 1970,
com a denúncia da CEE capitalista alinhada com o imperialismo
americano”, observa o politólogo francês Marc Lazar.
“Esta esquerda da
esquerda – prossegue Lazar – seduz certas camadas da população,
como assalariados do sector público, pessoas dotadas de alto nível
de instrução e jovens em situação de trabalho precário. (…)
Mas, fora raras excepções, não atrai as camadas populares que os
partidos sociais-democratas e socialistas perderam. (…) O seu peso
eleitoral é limitado mas susceptível de penalizar a esquerda
reformista.”
O Syriza polarizou
durante alguns meses a mobilização desta área. Mas a viragem final
de Tsipras foi um balde de água fria. Em Espanha, o Podemos chegou a
ocupar o lugar cimeiro nas sondagens e abanou o sistema partidário.
Teve o mérito de, ao obrigar os partidos tradicionais a reverem os
seus “costumes”, ter ajudado a reabilitar a credibilidade da
política entre os cépticos cidadãos espanhóis. Hoje parece estar
a descer, sendo a quarta força nas sondagens.
Esta “esquerda da
esquerda” oscila entre “o esplêndido isolamento” e a vontade
de fazer alianças que lhe permitam aceder à área da governação,
tentando forçar a esquerda reformista a adoptar uma parte dos seus
temas. Noutros casos, a denúncia do euro e da autoridade europeia
arrisca-se a conduzir a uma radicalização soberanista e a uma
perversa convergência entre extrema-esquerda e extrema-direita.
As alianças entre
socialistas e esquerdistas são sempre precárias e não apenas pela
contradição programática mas porque, em última análise, a pulsão
dominante da “esquerda da esquerda” é a desconfiança perante o
exercício do poder e a partilha de escolhas políticas que ponham em
causa a sua identidade – como a viragem do Syriza bem o ilustrou.
Note-se que esta
tensão atravessa os próprios partidos socialistas. A
social-democracia tornou-se historicamente numa grande força
política porque escolheu a vocação de governar e não se acantonou
numa posição tribunícia de denúncia do capitalismo. Evocando a
oposição da esquerda socialista francesa ao governo Valls, assinala
Gérard Grunberg, historiador do socialismo francês: “Esta
esquerda da esquerda [do PS] gosta do poder mas quando é necessário
tomar medidas impopulares prefere o conforto ideológico da oposição
às dificuldades da acção governamental. Assume então a postura de
partido de protesto, a função tribunícia outrora desempenhada
pelos comunistas franceses.”
Quanto ao destino
destas alianças, deixo a conclusão a Grunberg: “O dilema do
Partido Socialista francês é que, se quer permanecer como partido
de governo, tem de assumir políticas que impedem uma união da
esquerda.” Em Portugal, a conclusão não seria muito diferente.
Negar a realidade
Interroga-se Manuel
Valls sobre o que é ser de esquerda hoje num mundo globalizado e
avesso a utopias. “O pior é que a esquerda se revela hoje incapaz
de regenerar o Estado-providência adaptando-o às realidades da
nossa época. À falta de afrontar as consequências da globalização
e da individualização da sociedade, a esquerda fecha-se numa
concepção pessimista do mundo.”
As dificuldades do
discurso da esquerda começam na resistência a reconhecer a
realidade. As sociedades ocidentais mudaram profundamente. O quadro
de combate deixou de ser o do século XX e grande parte da esquerda
continua a viver no século passado. Tende a negar a realidade quando
os factos entram em choque com os seus valores ou opiniões. “Mas é
um erro lógico”, responde o italiano Luca Ricolfi. “O plano dos
valores e dos factos são separados. (…) Não podemos ter medo de
conhecer se queremos mudar a realidade.”
Um breve exemplo
italiano: no recente debate sobre o trabalho, os reformistas
denunciavam o “mito do emprego fixo para toda a vida” em nome do
crescimento, da equidade e dos jovens. “Para os jovens, o trabalho
precário não é um parêntesis no seu percurso, é uma ratoeira.
Apenas um em cada três consegue passar a um contrato por prazo
indeterminado. Os jovens devem apostar no emprego estável mas não
podem sonhar com um trabalho vitalício na mesma empresa. Esse mundo
desapareceu.” A alternativa à reforma é a flexibilização sem
regras e a “selva do trabalho precário”.
A “tempestade
perfeita”
A pretexto do PS
português, passei em revista coisas que se dizem sobre os dilemas
com que a esquerda europeia se debate, sobretudo no Sul. Para
permanecer no plano da realidade é inevitável uma referência à
conjuntura da Europa, que o debate português coloca entre
parêntesis.
Cito o espanhol José
Ignacio Torreblanca, do European Council on Foreign Relations. “A
Europa está exposta a um perigosíssimo cruzamento de três crises
que até agora corriam em paralelo: a crise de gestão do euro, com o
seu clímax grego; a crise do asilo e do refúgio, que ameaça fazer
mandar pelos ares a livre circulação das pessoas; e a crise da
nossa vizinhança que, da Ucrânia à Líbia passando pela Síria,
põe a nu a debilidade da política externa europeia. Separadamente,
cada uma destas crises expõe as profundas fracturas que percorrem o
projecto europeu. Juntas, formam uma tempestade perfeita que, a não
haver uma reacção à altura das circunstâncias, pode acabar com o
projecto europeu. A construção europeia assenta hoje nestes três
pilares: o euro, a livre circulação de pessoas e os valores
europeus. Se retirarmos qualquer deles, o edifício dificilmente se
sustentará.”
Uma esquerda que
iluda os eleitores sobre a possibilidade de um regresso à idade de
ouro da social-democracia ou que ponha entre parêntesis a tempestade
que se aproxima não tem futuro nem sequer grande presente.
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