domingo, 25 de outubro de 2015

122 palavras a mais / Paulo Ferreira


122 palavras a mais
Paulo Ferreira
23/10/2015, OBSERVADOR

Cavaco fez considerações ideológicas e programáticas acerca do PCP e do Bloco, traçando uma linha vermelha que, no seu entendimento, os afastam de qualquer solução de governabilidade. Fez mal.

Há decisões acertadas justificadas com motivos errados. Cavaco Silva deu na noite desta quinta-feira um exemplo claro dessa possibilidade.

A indigitação de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro era a única decisão que o Presidente da República podia tomar para respeitar de forma inquestionável o resultado das eleições de forma entendível para a generalidade dos eleitores.

A coligação PSD/CDS foi a clara vencedora das eleições, mostrando que o divórcio violento entre o país e o governo ao longo de quatro duríssimos anos foi mais um enviesamento zarolho dos media do que uma realidade de facto. A coligação perdeu a maioria mas renovou o direito a governar. E ficou com a obrigação de governar de forma diferente, trocando a determinação pela negociação. É isso que se espera de um governo que não tem maioria no Parlamento.

A sustentar a acertada decisão de Cavaco Silva está também a inexistência, até ao momento, de qualquer acordo firme, sustentado e coerente entre o PS, o BE e o PCP que permita olhar para as negociações que mantiveram nas duas últimas semanas e ver nelas um programa de governo decente com perspectivas de durar uma legislatura.

Não basta a António Costa sair de Belém a anunciar que tem “as condições para que possa existir uma solução com apoio maioritário que garanta estabilidade” sem ter logo ali, no bolso, o acordo assinado que faz desse seu desejo uma realidade. A prova disso mesmo é que, três dias depois, acordo à esquerda ainda nem vê-lo.

Mas, sobretudo, é no Parlamento que os governos são legitimados, vivem e morrem. Não deixa de ser irónico que os que sustentavam que António Costa devia ser já indigitado primeiro-ministro, valorizando a soberania parlamentar e o apoio maioritário que esta opção terá, eram os mesmos que logo a seguir consideravam uma “perda de tempo” a submissão de Passos Coelho a essa mesma soberania parlamentar. Os votos das eleições contam-se nas urnas tal como os votos dos deputados se contam na Assembleia da República e não em declarações de oportunidade ou em conferências de imprensa.

O Presidente da República sustentou de forma sólida por que tomou esta decisão e fechou bem o discurso, remetendo para os deputados os passos seguintes.

O problema é que, pelo meio, Cavaco decidiu fazer considerações sobre a natureza ideológica e programática estruturais de dois partidos, o PCP e o Bloco de Esquerda, traçando claramente uma linha vermelha que, no seu entendimento, os afastam de qualquer solução de governabilidade.

Não está em causa se esses dois partidos da extrema-esquerda são mesmo como o Presidente os define, que são. Nada do que Cavaco Silva disse é objectivamente errado. É verdade que os “programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da União Bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da União Económica e Monetária e a saída de Portugal do Euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador”, como está escrito no discurso que leu.

A questão é que esta avaliação política, ideológica e programática não deve entrar nas contas da decisão presidencial de um possível arranjo governamental que também sai do resultado eleitoral.

Uma coisa seria Cavaco rejeitar um acordo concreto que o PS lhe pudesse levar para formar governo com o apoio do PCP e do BE por considerar que não era consistente e abalava “os fundamentos do nosso regime democrático”.

Outra coisa, bem diferente, foi aquilo que o Presidente da República fez, que foi dizer que independemente do conteúdo programático de um entendimento que possa vir a ser conseguido entre o PS, o PCP e o BE, a natureza histórica destes dois últimos partidos deve afastá-los à partida de qualquer solução de governo.

Cavaco não precisava de ter dito isto para justificar a sua acertada decisão. Num discurso de 28 parágrafos houve dois desnecessários e infelizes, que provocam mais problemas do que abrem a porta a soluções. Houve 122 palavras a mais.

Cavaco dividiu quando devia ter unido. Acentuou divergências quando precisamos de convergência. Extremou posições ideológicas quando a hora é de pragmatismo.

É provável que o discurso de ontem do Presidente tenha feito mais por um entendimento à esquerda do que a sede de poder de António Costa somada à repulsa que todas as esquerdas têm pela coligação PSD/CDS, a única coisa que verdadeiramente as une.

PCP e BE deverão estar agora ainda mais determinados em chegar a um entendimento com o PS para poderem confrontar Cavaco Silva como seu maior pesadelo: ter que optar entre um governo de gestão de Passos Coelho e dar posse a um governo de esquerda; entre uma governação de serviços mínimos até ao Verão do próximo ano e um governo suportado pelos partidos que diabolizou.

Entre a paralisia prolongada e os custos económicos e orçamentais das típicas soluções de esquerda estaremos sempre a falar de controlo de danos. Não são bonitos os cenários alternativos que temos pela frente mas o Presidente ajudou a desenhá-los nesta quinta-feira. A política está de volta mas o bilhete para o espectáculo vai sair-nos demasiado caro.


Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com

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