terça-feira, 13 de outubro de 2015

O doce embalo de um governo à esquerda / O PCP nunca se demarcou do estalinismo e do leninismo?


O doce embalo de um governo à esquerda
DIRECÇÃO EDITORIAL 12/10/2015 - PÜBLICO
Negociações do PS configuram o que em Portugal nunca se viu. E que só muito dificilmente se verá.


Para o PCP não é algo de novo, ao contrário do que alguns sugerem. Durante décadas, ainda Cunhal era vivo, os comunistas agitaram como solução para o país uma “maioria de esquerda” (é só consultar os seus documentos) que só poderia concretizar-se em aliança com “outras forças progressistas” e, claro, com o PS. A isto, respondeu sempre o PS com um natural afastamento. Como ficou provado na tal manifestação da Fonte Luminosa, quando o PS se insurgiu contra o gonçalvismo, havia um abismo a separá-los, apesar de ilusoriamente ambos se irmanarem na “esquerda”. É pois natural que Jerónimo de Sousa tenha vindo a dizer que viabilizaria um governo do PS só para evitar um governo PSD-CDS e que essa viabilização não teria exigências de maior. Por enquanto, claro. Ora se Jerónimo vê aqui “uma oportunidade que seria incompreensível que se desperdiçasse” para a almejada “maioria de esquerda”, o PS, ou pelo menos parte dele, poderá ser tentado a conseguir apoios do PCP e do BE (com o qual hoje os socialistas se reúnem) para um governo seu. Mas o que seguirá é bem mais do que uma incógnita. Se o PS seguir depois o seu natural caminho, mais convergente com o do actual governo nas relações de Portugal com a União Europeia e os credores, a “maioria de esquerda” ruirá e o PS terá na rua, contra si, os sindicatos e seus episódicos aliados. Se, pelo contrário, ceder a propostas mais à esquerda, terá de se haver com os mercados e os impiedosos credores. O curioso, nisto tudo, é que parece ter sido António Costa o indigitado por Cavaco para formar governo, e não Passos Coelho, que aparentemente se mantém por aí calmo e à espera. As reuniões destes dias vão permitir dissipar um pouco o nevoeiro que paira sobre este inebriamento. Mas nenhum sol se verá por trás das nuvens, quando estas passarem. O doce embalo de um governo à esquerda pode não passar de uma ilusão passageira e inconsequente, como tantas outras.

Prova dos Factos / Conclusão do PÚBLICO : TALVEZ

O PCP nunca se demarcou do estalinismo e do leninismo?
PAULO PENA 12/10/2015 - 16:55

O jornalista José Milhazes afirmou que o PCP continua a ver Estaline e Lenine como “timoneiros do povo”. Terá razão?

A frase

O Partido Comunista Português, ao que eu saiba, nunca se demarcou dos hediondos crimes cometidos por Lenine e Estaline, continua a ver nestes dois carrascos “timoneiros do povo”, sempre foi fiel e servo do Partido Comunista da União Soviética até ao fim deste.”

O contexto

Esta frase foi publicada num artigo de opinião do jornalista José Milhazes no jornal online Observador. O título: “Não quero participar a segunda vez no mesmo filme” sobre a possibilidade de um acordo entre PS, PCP e BE para viabilizar um possível Governo em Portugal. Como se trata de uma opinião, procuramos analisar a veracidade de um dos pontos da argumentação, tendo em conta uma latitude de interpretações que não se esgota num mero “sim” ou “não”. Uma demarcação política, como aquela que Milhazes sugere faltar ao PCP, é sempre relativa. Depende de quem avalia a demarcação. Para uns, uma demarcação será sempre insuficiente, para outros, uma mera distanciação já será uma demarcação bastante. Tentemos olhar para esta questão com distância: Haverá sempre quem considere que alguém não se demarcou suficientemente de um facto embaraçoso. A nossa vida política tem disto inúmeros exemplos.

Mas para responder à pergunta desta Prova dos Factos existem várias fontes disponíveis. O PÚBLICO contactou para isso vários historiadores portugueses, especialistas em História do PCP. Estas são as principais conclusões. A primeira crítica do PCP a Estaline surgiu no V Congresso do partido, na clandestinidade, em 1957, na sequência da “desestalinização” promovida por Nikita Krushov. O PCP, na altura, vivia um “desvio de direita”, que Cunhal viria a “corrigir”, depois da sua fuga de Peniche, em 1961. Mas isso são outras histórias… É o próprio Cunhal que, no seu livro Partido com Paredes de Vidro retoma a crítica: “O V Congresso, realizado em 1957, estimulado também pelo desvendar do culto da personalidade de Stáline e de todas as suas negativas consequências, instituiu normas de democracia interna e inseriu-as nos Estatutos do Partido então aprovados." (p.88). Pode-se alegar que a crítica a Estaline é mitigada. Cunhal, mais uma vez, em 1990, já depois da queda do Muro de Berlim, deu uma entrevista mais clara. Os entrevistadores, do Independente, eram Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas. Sobre Estaline, Cunhal disse o seguinte: “Eu não vou aqui propor ou sugerir a leitura, mas eu escrevi muitas páginas sobre a caracterização do estalinismo. O estalinismo é isto, e isto, e isto. E uma coisa que não queremos e que repudiamos. O estalinismo como ideologia, como acção política, como organização do Estado, como organização do partido, como intervenção antidemocrática interna ou externa do partido. Naturalmente que rejeitamos. Aliás, há um país muito acusado de métodos estalinistas, a Roménia. Já nós, os comunistas portugueses, tínhamos grande dificuldade de contactos com o Partido Comunista Romeno.”

Outra questão, completamente diferente, é a da relação do PCP com Lenine. Neste caso, o partido não só se continua a afirmar como “marxista-leninista”, como não concordará com a expressão “hediondos crimes” usada pelo jornalista. Porém, no mesmo livro de Álvaro Cunhal, existe uma crítica à “infalibilidade” das referências comunistas: “Mas ser leninista não consiste em endeusar Lénine, em utilizar cada frase de Lénine como verdade universal, eterna e intocável, em substituir a análise pela citação, em responder aos acontecimentos através de afirmações de Lénine, mesmo quando se trata de novos fenómenos que Lénine não conheceu no seu tempo, em abafar, com a transcrição de textos e com a presença dominadora do nome e da efígie e da autoridade desse nome e dessa efígie, a investigação, a análise e o espírito criativo no estudo e interpretação dos novos fenómenos .” (pág.140)

Os factos

Para o PCP, a “demarcação” bastante faz-se quando o partido afirma que “tem a sua própria concepção de socialismo e o seu próprio projecto para a edificação em Portugal de uma sociedade socialista”. O que significa que não vê em Lenine ou Estaline, ou Castro, ou qualquer outro modelo de sociedade socialista, um exemplo a seguir. Pelo contrário, o PCP afirma ter objectivos que se “diferenciam e distanciam” dessas práticas. No seu programa “Uma Democracia Avançada no Limiar do Século XXI”, o partido demarca-se da experiência da URSS e do antigo “bloco de Leste”. “Nesses países (…) acabou por instaurar-se (…) um "modelo" que violou características essenciais de uma sociedade socialista e se afastou, contrariou e afrontou aspectos essenciais dos ideais comunistas.” Exemplos disso? “Um poder excessivamente centralizado nas mãos de uma burocracia (…) a acentuação do carácter autoritário do Estado (…) uma economia excessivamente estatizada (…) um centralismo burocrático baseado na imposição (…) confusão das funções do Estado e do partido (…); “um distanciamento entre os governantes e as massas, o uso indevido do poder político, o abuso da autoridade, a não correspondência da política e das realidades com os objectivos definidos e proclamados do socialismo, desvios e deformações incompatíveis com a sua natureza.”

Em resumo

Cada um fará a sua interpretação, à luz das suas próprias convicções, se a demarcação face a Estaline é proporcional à gravidade dos crimes conhecidos do ex-líder soviético. Mas neste caso, parece indiscutível que houve um repúdio público do PCP e do seu histórico líder Álvaro Cunhal sobre aquele período histórico. Uma situação diferente é a de Lenine. Aí, o PCP continua a defender o seu legado teórico, embora procure distanciar-se de qualquer “culto da personalidade”. Ou seja, a expressão “timoneiros do povo” não é aplicada a nenhum dos dois por nenhum documento do PCP. Quanto ao “seguidismo” em relação à União Soviética, essa ainda é uma matéria controversa na historiografia.  

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