O doce embalo de um
governo à esquerda
DIRECÇÃO EDITORIAL
12/10/2015 - PÜBLICO
Negociações do PS
configuram o que em Portugal nunca se viu. E que só muito
dificilmente se verá.
Para o PCP não é
algo de novo, ao contrário do que alguns sugerem. Durante décadas,
ainda Cunhal era vivo, os comunistas agitaram como solução para o
país uma “maioria de esquerda” (é só consultar os seus
documentos) que só poderia concretizar-se em aliança com “outras
forças progressistas” e, claro, com o PS. A isto, respondeu sempre
o PS com um natural afastamento. Como ficou provado na tal
manifestação da Fonte Luminosa, quando o PS se insurgiu contra o
gonçalvismo, havia um abismo a separá-los, apesar de ilusoriamente
ambos se irmanarem na “esquerda”. É pois natural que Jerónimo
de Sousa tenha vindo a dizer que viabilizaria um governo do PS só
para evitar um governo PSD-CDS e que essa viabilização não teria
exigências de maior. Por enquanto, claro. Ora se Jerónimo vê aqui
“uma oportunidade que seria incompreensível que se desperdiçasse”
para a almejada “maioria de esquerda”, o PS, ou pelo menos parte
dele, poderá ser tentado a conseguir apoios do PCP e do BE (com o
qual hoje os socialistas se reúnem) para um governo seu. Mas o que
seguirá é bem mais do que uma incógnita. Se o PS seguir depois o
seu natural caminho, mais convergente com o do actual governo nas
relações de Portugal com a União Europeia e os credores, a
“maioria de esquerda” ruirá e o PS terá na rua, contra si, os
sindicatos e seus episódicos aliados. Se, pelo contrário, ceder a
propostas mais à esquerda, terá de se haver com os mercados e os
impiedosos credores. O curioso, nisto tudo, é que parece ter sido
António Costa o indigitado por Cavaco para formar governo, e não
Passos Coelho, que aparentemente se mantém por aí calmo e à
espera. As reuniões destes dias vão permitir dissipar um pouco o
nevoeiro que paira sobre este inebriamento. Mas nenhum sol se verá
por trás das nuvens, quando estas passarem. O doce embalo de um
governo à esquerda pode não passar de uma ilusão passageira e
inconsequente, como tantas outras.
Prova dos Factos /
Conclusão do PÚBLICO : TALVEZ
O
PCP nunca se demarcou do estalinismo e do leninismo?
PAULO PENA
12/10/2015 - 16:55
O
jornalista José Milhazes afirmou que o PCP continua a ver Estaline e
Lenine como “timoneiros do povo”. Terá razão?
A frase
“O
Partido Comunista Português, ao que eu saiba, nunca se demarcou dos
hediondos crimes cometidos por Lenine e Estaline, continua a ver
nestes dois carrascos “timoneiros do povo”, sempre foi fiel e
servo do Partido Comunista da União Soviética até ao fim deste.”
O contexto
Esta frase foi
publicada num artigo de opinião do jornalista José Milhazes no
jornal online Observador. O título: “Não quero participar a
segunda vez no mesmo filme” sobre a possibilidade de um acordo
entre PS, PCP e BE para viabilizar um possível Governo em Portugal.
Como se trata de uma opinião, procuramos analisar a veracidade de um
dos pontos da argumentação, tendo em conta uma latitude de
interpretações que não se esgota num mero “sim” ou “não”.
Uma demarcação política, como aquela que Milhazes sugere faltar ao
PCP, é sempre relativa. Depende de quem avalia a demarcação. Para
uns, uma demarcação será sempre insuficiente, para outros, uma
mera distanciação já será uma demarcação bastante. Tentemos
olhar para esta questão com distância: Haverá sempre quem
considere que alguém não se demarcou suficientemente de um facto
embaraçoso. A nossa vida política tem disto inúmeros exemplos.
Mas para responder à
pergunta desta Prova dos Factos existem várias fontes disponíveis.
O PÚBLICO contactou para isso vários historiadores portugueses,
especialistas em História do PCP. Estas são as principais
conclusões. A primeira crítica do PCP a Estaline surgiu no V
Congresso do partido, na clandestinidade, em 1957, na sequência da
“desestalinização” promovida por Nikita Krushov. O PCP, na
altura, vivia um “desvio de direita”, que Cunhal viria a
“corrigir”, depois da sua fuga de Peniche, em 1961. Mas isso são
outras histórias… É o próprio Cunhal que, no seu livro Partido
com Paredes de Vidro retoma a crítica: “O V Congresso, realizado
em 1957, estimulado também pelo desvendar do culto da personalidade
de Stáline e de todas as suas negativas consequências, instituiu
normas de democracia interna e inseriu-as nos Estatutos do Partido
então aprovados." (p.88). Pode-se alegar que a crítica a
Estaline é mitigada. Cunhal, mais uma vez, em 1990, já depois da
queda do Muro de Berlim, deu uma entrevista mais clara. Os
entrevistadores, do Independente, eram Miguel Esteves Cardoso e Paulo
Portas. Sobre Estaline, Cunhal disse o seguinte: “Eu não vou aqui
propor ou sugerir a leitura, mas eu escrevi muitas páginas sobre a
caracterização do estalinismo. O estalinismo é isto, e isto, e
isto. E uma coisa que não queremos e que repudiamos. O estalinismo
como ideologia, como acção política, como organização do Estado,
como organização do partido, como intervenção antidemocrática
interna ou externa do partido. Naturalmente que rejeitamos. Aliás,
há um país muito acusado de métodos estalinistas, a Roménia. Já
nós, os comunistas portugueses, tínhamos grande dificuldade de
contactos com o Partido Comunista Romeno.”
Outra questão,
completamente diferente, é a da relação do PCP com Lenine. Neste
caso, o partido não só se continua a afirmar como
“marxista-leninista”, como não concordará com a expressão
“hediondos crimes” usada pelo jornalista. Porém, no mesmo livro
de Álvaro Cunhal, existe uma crítica à “infalibilidade” das
referências comunistas: “Mas ser leninista não consiste em
endeusar Lénine, em utilizar cada frase de Lénine como verdade
universal, eterna e intocável, em substituir a análise pela
citação, em responder aos acontecimentos através de afirmações
de Lénine, mesmo quando se trata de novos fenómenos que Lénine não
conheceu no seu tempo, em abafar, com a transcrição de textos e com
a presença dominadora do nome e da efígie e da autoridade desse
nome e dessa efígie, a investigação, a análise e o espírito
criativo no estudo e interpretação dos novos fenómenos .”
(pág.140)
Os factos
Para o PCP, a
“demarcação” bastante faz-se quando o partido afirma que “tem
a sua própria concepção de socialismo e o seu próprio projecto
para a edificação em Portugal de uma sociedade socialista”. O que
significa que não vê em Lenine ou Estaline, ou Castro, ou qualquer
outro modelo de sociedade socialista, um exemplo a seguir. Pelo
contrário, o PCP afirma ter objectivos que se “diferenciam e
distanciam” dessas práticas. No seu programa “Uma Democracia
Avançada no Limiar do Século XXI”, o partido demarca-se da
experiência da URSS e do antigo “bloco de Leste”. “Nesses
países (…) acabou por instaurar-se (…) um "modelo" que
violou características essenciais de uma sociedade socialista e se
afastou, contrariou e afrontou aspectos essenciais dos ideais
comunistas.” Exemplos disso? “Um poder excessivamente
centralizado nas mãos de uma burocracia (…) a acentuação do
carácter autoritário do Estado (…) uma economia excessivamente
estatizada (…) um centralismo burocrático baseado na imposição
(…) confusão das funções do Estado e do partido (…); “um
distanciamento entre os governantes e as massas, o uso indevido do
poder político, o abuso da autoridade, a não correspondência da
política e das realidades com os objectivos definidos e proclamados
do socialismo, desvios e deformações incompatíveis com a sua
natureza.”
Em resumo
Cada um fará a sua
interpretação, à luz das suas próprias convicções, se a
demarcação face a Estaline é proporcional à gravidade dos crimes
conhecidos do ex-líder soviético. Mas neste caso, parece
indiscutível que houve um repúdio público do PCP e do seu
histórico líder Álvaro Cunhal sobre aquele período histórico.
Uma situação diferente é a de Lenine. Aí, o PCP continua a
defender o seu legado teórico, embora procure distanciar-se de
qualquer “culto da personalidade”. Ou seja, a expressão
“timoneiros do povo” não é aplicada a nenhum dos dois por
nenhum documento do PCP. Quanto ao “seguidismo” em relação à
União Soviética, essa ainda é uma matéria controversa na
historiografia.
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