Todos
serão culpados
TERESA DE SOUSA
25/10/2015 - PÚBLICO
Não
me lembro, depois do PREC, de uma crise tão profunda e tão
angustiante como esta que hoje vivemos.
1. Estamos hoje para
lá do pior dos cenários que conseguíamos imaginar há uma semana.
O Presidente decidiu lançar fogo à tenda, onde já ninguém se
entendia. Cavaco tinha e tem o direito e o dever de lembrar aos
principais partidos políticos que há coisas inegociáveis, como o
destino europeu do país sufragado em todas as eleições, do qual
PCP e BE se auto-excluíram. Desse destino faz parte a pertença ao
euro, que está hoje no centro da integração europeia. A opção
estratégica pela Europa envolve igualmente uma componente atlântica,
que sempre fez parte da nossa identidade (mesmo que ultimamente
bastante descurada pela coligação). Relembrar isto tudo seria útil.
Transformar isto tudo numa bomba sem retardador, que apenas serviu
para agudizar as divergências e as frustrações, era tudo aquilo
que não se esperava de um Presidente em fim de mandato, que
conseguiu a proeza de ser o mais impopular da democracia. O seu
discurso pode, talvez, incluir-se numa série de outros nos quais
parece haver mais motivações “pessoais” e os respectivos
ajustes de contas do que propriamente uma visão estratégica. O
Presidente está sempre a lembrar que é o político que mais anos
exerceu funções cimeiras: 10 anos em São Bento e outros tantos em
Belém. Essa experiência devia ter-lhe permitido de forma muito mais
eficaz criar as condições para um entendimento entre os dois
maiores partidos, feito com convicção e com discrição. Não foi
assim. A sua comunicação ao país teve 122 palavras a mais (confio
plenamente nas contas de Paulo Ferreira), que conseguiram piorar
ainda mais a crise pós-eleitoral e oferecer de bandeja a António
Costa a unidade do PS em torno de uma opção necessariamente
controversa. A Assembleia abriu as portas em clima de enorme
crispação. Ninguém sabe o que acontecerá depois de o Parlamento
rejeitar o programa do Governo da coligação.
2. Talvez valha a
pena, para entender melhor o que está em causa, deixar de pensar
como nos habituámos a pensar antes da crise financeira internacional
e da Grande Recessão que se lhe seguiu. A crise não alterou apenas
os termos da economia europeia, mas levou a profundas mudanças
políticas, que se traduzem, em maior ou menor grau, na quebra dos
grandes partidos europeus e na ascensão de novas forças políticas
nacionalistas, populistas, xenófobas e extremistas, que têm em
comum a rejeição da Europa e que se constituem como as únicas
alternativas às opções determinadas pela necessidade de salvar o
euro nos termos definidos por Berlim. Essa resposta com uma só saída
afectou ainda mais os países que tiveram programas de resgate,
sujeitos a duras medidas de austeridade, que aceitaram como o preço
a pagar para garantir a sua permanência no euro, mas que deixaram
feridas económicas e sociais profundas. Já conhecemos esta
história bem demais e já pagámos boa parte do preço. Entretanto,
o mundo à nossa volta entrou em convulsão, desafiando directamente
a Europa na Ucrânia, no terrorismo ou no barril de pólvora do Médio
Oriente. Mas hoje, como ontem, nem vale a pena imaginar o que seria
Portugal desligado da União e do euro, deixado à sua pequena sorte,
incluindo no mundo de língua portuguesa onde o Brasil e Angola
querem mandar. É no espaço europeu que se joga de novo o nosso
interesse estratégico, numa altura em que a Europa joga também o
seu destino e as previsões não são as melhores.
As crises
acumulam-se e agravam-se a uma velocidade incompatível com a
capacidade de resposta europeia. Nos Balcãs, milhares de refugiados
correm o risco de viver mais uma tragédia, quando as temperaturas se
começam a aproximar de zero. Ao ponto de Jean-Claude Juncker ter
convocado uma mini-cimeira europeia para hoje, em Bruxelas, com a
presença da Alemanha e dos países mais afectados, incluindo os
balcânicos que estão a ser usados como corredores. Em Berlim,
Merkel tenta não perder o controlo de uma estratégia que só lhe
fica bem e ao seu país, mas que está a ter consequências
inesperadas. Não são apenas as críticas internas em tom cada vez
mais alto que a chanceler tem de enfrentar, mas o número cada vez
maior de actos de violência contra os refugiados. A cimeira europeia
do passado dia 15 serviu-lhe de pouco no que respeita ao seu
objectivo de dividir o fardo de forma mais equilibrada. Teve de ir a
Ancara convencer o Presidente Erdogan, na sua actual deriva
autoritária e nacionalista, a permitir fazer a triagem in loco aos
mais de 2 milhões de refugiados que estão na Turquia. Levou o livro
de cheques mas também uma reviravolta na sua anterior oposição à
entrada da Turquia na União Europeia. Não houve a mínima coerência
na política externa da União em relação à Turquia, que ocupa o
centro de uma região mergulhada em conflitos, que afecta
directamente a Europa. Mas, mais uma vez, ninguém se salvará
sozinho nesta tempestade. Nem a Alemanha nem, muito menos, nós.
3. Também não é
por acaso que em Berlim, Paris ou Varsóvia (para já não falar dos
países de Leste) reaparece um debate sobre a identidade, que precisa
de ter uma resposta positiva. Merkel não deixou esta dimensão
fundamental de parte, lembrando que a Alemanha sempre se viu como um
país que não era destino de imigração (as necessidades económicas
eram resolvidas com os “trabalhadores convidados”) e que tem hoje
de se preparar para integrar milhares de cidadãos de outras culturas
e outros costumes. François Hollande agarra-se, também ele, à
noção de identidade (que, na França, não tem o mesmo sentido que
na Alemanha, assentando na igualdade republicana de todos os
cidadãos), para encontrar uma plataforma eleitoral que não o
condene a ser um Presidente de um só mandato e lhe permita uma
resposta consistente a Marine Le Pen. No Reino Unido é o que se tem
visto. Na Polónia, oito anos de governo da Plataforma Cívica com
resultados visíveis (o país passou a pesar de forma real e positiva
no concerto europeu e conseguiu passar a crise com crescimento e
emprego) parecem não servir de nada. Os polacos vão hoje às urnas
para dar à vitória ao Partido nacionalista e eurocéptico Justiça
e Liberdade. Este é talvez o maior desafio que a Europa enfrenta e
nem vale a pena erguer fronteiras ou preferir uma Europa homogénea e
cristã, pela simples razão de que o mundo não se pode rebobinar.
Bem ou mal, as sociedades europeias vão ter de saber integrar muita
gente que vem de fora, sob pena de se transformar num belíssimo
museu.
4. Habituámo-nos a
confiar que o vendaval político não nos atingiria, garantindo a
razoável resistência do sistema partidário à crise. Mero engano.
A geração que tomou conta do PSD em 2010 era, por ideologia, muito
mais à direita do que o velho PSD, de matriz social-democrata. Como
se viu nos últimos quatro anos, essa viragem ajudou a bloquear
qualquer entendimento com o PS. Por sua vez, a dose de austeridade
que tivemos de suportar acabou por empurrar o PS para a esquerda, na
busca de uma alternativa dentro do euro, deixando vazio um espaço
central que sempre sustentou um entendimento estratégico entre PS e
PSD. A crise pós-eleitoral veio abrir ainda mais o fosso que os
separa. Mas isso não quer dizer que o PS não continue a ser um
partido profundamente empenhado na Europa e que não seja sua
intenção respeitar as regras do jogo em Bruxelas. É o PS garantia
suficiente? Em matéria europeia, sem qualquer dúvida. São os seus
parceiros totalmente confiáveis? Não. Falta ainda ao líder
socialista apresentar, preto no branco, um programa que dê garantias
assentes em “boas contas”, independentemente das cedências que
teria sempre que fazer aos seus parceiros de extrema-esquerda
(algumas bastante lamentáveis no que respeita por exemplo à reforma
das leis laborais). Falta um pequeno pormenor: vai o Presidente
dar-lhe posse? Ninguém sabe.
Nunca deveríamos
ter chegado aqui. Não me lembro, depois do PREC, de uma crise tão
profunda e tão angustiante como esta que hoje vivemos. Se as coisas
correrem mal, todos serão culpados.
Jornalista
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