“Percebe-se que Cavaco
Silva não tenha muitas opções e que, se Passos Coelho não quiser
ficar num governo de gestão, o poder terá de ser entregue à
maioria de esquerda no Parlamento. Só que este tipo de acordo, a ser
verdade, é de uma tamanha irresponsabilidade e precariedade. É como
se o PS e o PCP-BE se casassem e jurassem fidelidade eterna, mas só
na alegria. Na tristeza, é cada um por si e Deus por todos. Faz
sentido que um governo que já não pode usar a política cambial e
monetária ainda tenha de abdicar de toda a política orçamental
como instrumento de política económica? Neste acordo à esquerda,
quando houver uma crise económica e for necessário apertar o cinto,
o governo cai, porque deixará de ter o apoio da esquerda radical: ou
seja, se houver uma crise económica, fica desde já combinado que
haverá simultaneamente uma crise política.
Tenham paciência, mas, a
confirmarem-se estas duas cláusulas, este relacionamento à esquerda
não é amor, é paixão pelo poder. Claro que há sempre a
possibilidade de a direita, que agora ganhou as eleições mas que
ficará na oposição, poder num cenário de dificuldades vir a dar a
mão ao PS. Mas isso, sendo uma atitude responsável, seria o cúmulo
do cinismo do nosso sistema democrático.”
Amor
com amor se paga. Se houver dinheiro
PEDRO SOUSA CARVALHO
30/10/2015 - PÚBLICO
Desde
4 de Outubro perdemos muito daquilo que era a nossa ingenuidade e a
nossa inocência democrática.
Hoje, ao meio-dia,
toma posse o XX Governo Constitucional no palácio com o sugestivo
nome de Ajuda. Não será o "Governo dos Cinco Minutos" de
Francisco Fernandes Costa na I República, mas será o "Governo
dos 11 dias" de Pedro Passos Coelho na III República. Haverá
com certeza muitos ministros que hoje, tal como terá feito Dias
Loureiro em 1987, vão telefonar para casa a dizer: “Mãe, já sou
ministro!” Mesmo que seja por 11 dias. O pai e a mãe, lá em casa,
também ficarão orgulhosos, pois sabem que nos dias que correm não
é fácil arranjar um emprego, mesmo que seja altamente precário.
Os jornais dizem que
Passos Coelho terá recebido muitas negas, o que é natural, dadas as
elevadas qualificações que eram exigidas para o cargo:
“Disponibilidade imediata, fluente em português, domínio do Word
e Excel e valoriza-se experiência em governos de curta duração.”
Fernando Negrão, Morais Leitão, Costa Neves e Aguiar-Branco, todos
ministros ou secretários de Estado no Governo relâmpago de Santana
Lopes, nem precisaram de fazer a entrevista de emprego. Foram
imediatamente aceites. Depois há outros, como Calvão da Silva, que
entram no Governo por mérito próprio: se o novo ministro da
Administração Interna conseguiu atestar a idoneidade de Ricardo
Salgado e justificar a prenda de 14 milhões de euros que o banqueiro
recebeu de um construtor amigo (e, conta-se, sem desatar às
gargalhadas), é porque Calvão da Silva será um ministro de grande
competência e capaz de grandes feitos.
Dizem que Passos
Coelho inventou ainda à última hora dois novos ministérios, o da
Cultura e da Modernização Administrativa, para piscar o olho ao PS
de António Costa. Mas os socialistas por estes dias já estarão
comprometidos com os seus dois novos amores, um da esquerda radical e
o outro da extrema-esquerda. E Costa nem sabe de qual gosta mais. São
ambos extremamente amorosos e generosos: um pede que se reponha os
salários e o outro pede que se acabe imediatamente com a sobretaxa.
Um pede que se aumente o salário mínimo para os 600 euros e o outro
pede que se baixe o IVA na electricidade para os 6%. Um pede a
reposição das 35 horas e o outro a reposição dos feriados. Diz-se
que amor com amor se paga; mas tanto amor à esquerda é capaz de ser
difícil de pagar.
Ainda não se
conhecem os pormenores do acordo à esquerda, mas daquilo que se
sabe, e que já foi confirmado por Carlos César, é que o acordo PS,
PCP e Bloco terá duas cláusulas gerais: a primeira diz que o PCP e
o BE aceitam que podem vir a ser necessárias medidas (de
austeridade, entenda-se) que não estão previstas no actual acordo;
e a segunda diz que essas medidas, a serem necessárias, não podem
ser aumento de impostos ou mexer nos salários, pensões ou no nível
de rendimento dos portugueses.
Percebe-se que
Cavaco Silva não tenha muitas opções e que, se Passos Coelho não
quiser ficar num governo de gestão, o poder terá de ser entregue à
maioria de esquerda no Parlamento. Só que este tipo de acordo, a ser
verdade, é de uma tamanha irresponsabilidade e precariedade. É como
se o PS e o PCP-BE se casassem e jurassem fidelidade eterna, mas só
na alegria. Na tristeza, é cada um por si e Deus por todos. Faz
sentido que um governo que já não pode usar a política cambial e
monetária ainda tenha de abdicar de toda a política orçamental
como instrumento de política económica? Neste acordo à esquerda,
quando houver uma crise económica e for necessário apertar o cinto,
o governo cai, porque deixará de ter o apoio da esquerda radical: ou
seja, se houver uma crise económica, fica desde já combinado que
haverá simultaneamente uma crise política.
Tenham paciência,
mas, a confirmarem-se estas duas cláusulas, este relacionamento à
esquerda não é amor, é paixão pelo poder. Claro que há sempre a
possibilidade de a direita, que agora ganhou as eleições mas que
ficará na oposição, poder num cenário de dificuldades vir a dar a
mão ao PS. Mas isso, sendo uma atitude responsável, seria o cúmulo
do cinismo do nosso sistema democrático.
É verdade que desde
4 de Outubro perdemos muito daquilo que era a nossa ingenuidade e a
nossa inocência democrática. Frases como "Por um voto se
ganha, por um voto se perde" deixaram de fazer grande sentido. A
coligação PSD-CDS ganhou e vai para oposição e o PS sofreu uma
derrota estrondosa e vai governar. Já aqui, neste espaço, tentei
desdramatizar, e até defender, a ausência de uma maioria absoluta,
porque era a forma de aumentar a fiscalização e a responsabilização
de um governo. Mas isso funciona em países onde os partidos colocam
os interesses do país à frente dos interesses partidários. Não é
o nosso caso.
No caso português,
tal como já acontece na Grécia e em Itália, talvez faça sentido
introduzir o sistema do prémio de maioria, em que o partido mais
votado ganha automaticamente um bónus de n deputados que lhe permita
chegar à maioria absoluta. Sendo um sistema que distorce a
representação proporcional, é útil para gerar estabilidade
governativa em sistemas em que existe alguma dispersão de votos, ma
non troppo. No caso italiano, coloca-se uma fasquia mínima de 40%
dos votos (para garantir a proporcionalidade) para que se consiga o
tal jackpot de votos. Caso nenhum partido a alcance, há uma segunda
volta entre os dois partidos mais votados e o que ganha fica com 50
ou 55 deputados de prémio. Estes deputados-bónus podem contar para
viabilizar a governação, mas não para processos de revisão
constitucional, precisamente para evitar que a democracia descambe em
regimes autoritários.
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