“Dizendo
que Deus é bom mas o Diabo também não é mau, António Costa vai
navegando à bolina, mesmo sabendo o final do filme.”
“ A menos que o PCP e o
Bloco abdiquem do seu programa e entrem de alma limpa na defesa do
projecto europeu, do rigor orçamental e de uma economia social de
mercado, o PS está condenado a ser o que sempre foi. E o Bloco e o
PCP também.”
Manuel Carvalho
António
Costa e o milagre da transfiguração da esquerda
“O
PS teria 32,5% dos votos se os seus eleitores soubessem que o partido
iria governar em aliança com o PCP ou o Bloco?”
Manuel Carvalho /
11-10-2015 / PÚBLICO
Os partidos com
representação parlamentar dedicaram-se por estes dias a um dos
divertimentos que mais apreciam, melhor praticam e mais gozo lhes dá:
a dissimulação. Nesse jogo, tanto vale a insinuação como a
verdade, o altruísmo ou o instinto de sobrevivência, a sinceridade
ou a hipocrisia. O pano de fundo de um Parlamento sem maioria
absoluta dá-lhes azo a devaneios, torna os partidos da coligação
em apóstolos do consenso e transfigura de tal forma o PCP e o Bloco
que, de um momento para outro, parecem ter deixado de ser os mais
ferozes inimigos do PS para se tornarem pombas prontas a cair no colo
de António Costa.
O que por estes dias
vai passando nas televisões e nos jornais vale por isso mais pela
encenação do que pela substância, até porque todos sabemos como
vão acabar as manobras de diversão: ou os partidos da coligação e
o PS se entendem para se criar condições mínimas de
governabilidade, ou o país está condenado a viver um hiato de
turbulência e incerteza durante os próximos meses.
Não se trata de uma
fatalidade, apenas de uma leitura do que foi a campanha eleitoral e
dos programas que cada um dos partidos apresentou aos cidadãos. O
cumprimento desses programas não é apenas uma responsabilidade de
quem vai governar, mas também de quem fica na oposição, e basta
ler na diagonal o que o Bloco e o PCP propuseram para se perceber que
este suposto diálogo com o PS soa a falso. Claro que ninguém fala
disso, por óbvio incómodo, até porque é mais sonante dizer que “a
esquerda ganhou” as eleições ou que o país votou contra a
“austeridade”. Só que reduzir a “esquerda” a uma fórmula
rígida é um absurdo que desconsidera as diferenças de programas e
a história dos partidos. Alguém acredita que o PS teria 32,5% dos
votos se os seus eleitores soubessem que o partido iria governar em
aliança com o PCP ou o Bloco? E os eleitores do PCP manteriam a sua
fidelidade se soubessem que o partido abdicaria da renegociação da
dívida?
O Governo de uma
maioria de esquerda é um projecto do desejo, não uma expressão
mensurável da realidade política do país. O PS sabe disso e sabe
também que a sua posição de ponte entre as alas da direita e da
esquerda tanto lhe confere uma confortável posição de poder como
lhe impõe um risco que, em última instância, pode estilhaçar a
sua identidade e a sua força. Num atestado perfeito dos dilemas com
que se debate a social-democracia europeia, os seus militantes
hesitam entre assumir regras básicas de governação que partilham
com o programa da direita (o controlo orçamental acima de todas) e
um apelo para o regresso ao progressismo e ao frentismo que fazem
parte do imaginário histórico da esquerda. Muito mais do que no
congresso, o PS vai viver nas próximas semanas o seu momento
clarificador.
Até agora, António
Costa está a saber usar a sua experiência política para gerir as
opções com que o PS se confronta. Para começar, não podia fazer
orelhas moucas ao canto da sereia que o Bloco e o PCP lhe entoam, sob
pena de se sujeitar ao prolongamento dos ataques sobre a sua suposta
rendição à direita. Por isso foi ao seu encontro. Costa certamente
não previa encontrar na Soeiro Pereira Gomes o que terá
provavelmente sido a maior abertura negocial do PCP em 40 anos de
regime democrático, permitindo-lhe regressar com a ilusão de que o
PCP saiu das catacumbas e está disposto a assumir a relação com o
“arco da governação” que o eurocomunismo estabeleceu há já 40
anos. A verdade, porém, é que se Jerónimo de Sousa não contestou
os consensos maioritários da sociedade portuguesa, sejam o euro, a
participação empenhada na União Europeia ou o respeito, embora
abstracto, do Tratado Orçamental, também ninguém o ouviu dizer que
está disposto a engolir sapos para os aceitar.
Para António Costa,
o apelo da esquerda através de uma provável (e, sublinhe-se, ainda
remota) reconversão programática tem o mérito de obrigar Passos e
Portas a acelerarem o passo e a assumirem que lhes cabe o “ónus”
de criar condições de governabilidade. O PS tornou-se assim a dama
mais disputada do baile. O patinho feio derrotado nas eleições é
agora um belo cisne que, de repente, e por conveniência, todos
querem. O acordo de Governo entre os partidos da coligação recorreu
a encantos de sedução que encaixam bem no programa socialista —
como a aposta no crescimento, o investimento na ciência, o aumento
do poder de compra, a “defesa e reforço do Estado social” ou a
“promoção da competitividade da economia”. Mas Costa tem razão:
Passos e Portas é que têm de dizer que cartas oferecem para que o
PS entre no jogo da governabilidade.
Dizendo que Deus é
bom mas o Diabo também não é mau, António Costa vai navegando à
bolina, mesmo sabendo o final do filme. Se no futebol são onze
contra onze e no final ganha a Alemanha, na formação de governos é
a esquerda contra a direita e no final quem fica no poder é o PSD, o
CDS e o PS. E não apenas por causa da influência do árbitro Cavaco
Silva, que para evitar entusiasmos à esquerda tratou de divulgar um
caderno de encargos ao próximo Governo que inclui, por exemplo, a
NATO. Quem governar a seguir pode virar a página da austeridade, mas
não pode pegar num livro novo para contar uma história diferente.
Para se enquadrar nessa narrativa, a esquerda à esquerda do PS teria
de sofrer um cataclismo programático. Seria forçada a suspender os
desejos de aumentar salários, de devolver pensões cortadas, de
aumentar o investimento público para criar emprego, de reverter
privatizações, de concordar com o défice abaixo dos 3%...
Face às
circunstâncias, tarde ou cedo o PS estará a negociar acordos de
incidência parlamentar com a coligação — de fora está, e bem,
um acordo de Governo, que colocaria no poder uma força com 70% dos
votos. Claro que não pode impor o seu programa a quem vai mandar,
mas sobram-lhe, ainda assim, imensas condições para ficar bem na
fotografia. Portugal vive bem sem cortes sociais cegos como os que
foram feitos, precisa de uma voz menos submissa na Europa, necessita
de apostar na Cultura e na Ciência, pode prescindir das aventuras
ideológicas na liberdade de escolha das escolas ou de taxas
moderadoras nos abortos. O regresso da política ao Parlamento só é
um mal se os deputados não estiverem à altura das suas
responsabilidades.
Há, assim, um
enorme campo de possibilidades para o PS influenciar com uma marca da
esquerda um Governo minoritário da direita e essa pode ser a
redenção de Costa após o desastre eleitoral. Mas, para o
conseguir, tem de passar do bluff para assumir quem é e para onde
vai. Para um partido com o seu património e a sua história, a
procura da identidade não é, de resto, uma tarefa difícil. Basta
recordar a moção Um Novo Rumo para o PS, apresentada por Mário
Soares em 1980, que previa uma aliança com o PSD. A menos que o PCP
e o Bloco abdiquem do seu programa e entrem de alma limpa na defesa
do projecto europeu, do rigor orçamental e de uma economia social de
mercado, o PS está condenado a ser o que sempre foi. E o Bloco e o
PCP também.
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