OPINIÃO
Que os partidos se abram ao mundo: voto preferencial
já
PAULO RANGEL 14/01/2014 in Público
1.Tenho escrito aqui, a respeito dos mais vários episódios
da vida política, que o regime está em crise. Importa tomar consciência que a
crise que vivemos não é tão-só económica e financeira. É também uma crise
política e, bem mais do que isso, uma crise de valores de escala “societal”.
Mostra-se, por isso, crucial perceber que a resolução de alguns dos mais graves
problemas das finanças e da economia passa por uma “reabilitação” do sistema
político e, em especial, do sistema partidário. A crónica ausência de consenso
quanto aos temas estratégicos fundamentais – e, em especial, de consenso
operacional, prático, executado no terreno – é um exemplo óbvio da mirração na
nossa esfera política-partidária.
Este sentimento agudo de crise está directamente relacionado
com o enquistamento e fechamento progressivo dos partidos políticos. Os
partidos políticos e os seus protagonistas – aqueles a que se chama
habitualmente, e numa amálgama, a “classe política” – são percepcionados, cada
vez mais, como entidades e personalidades “desfasadas” e “divorciadas” do quotidiano
e da realidade dos cidadãos. Trata-se, com efeito, de uma quebra de
credibilidade e de uma falha da confiança. Ora, esta quebra de confiança põe em
xeque a viabilidade do valor da representação, valor este que é absolutamente
indispensável à democracia (tal como a entendemos e praticamos no mundo
ocidental).
2. Muita gente – dentro e fora da bacia partidária – tem
consciência deste problema. A verdade, porém, é que a experiência das últimas
décadas prova e comprova que os partidos dificilmente são capazes de se
reformar por sua própria iniciativa. Existe uma inércia interna, feita de uma
cultura de aparelho de poder, que os torna hostis e renitentes a qualquer
mudança. Eis o que explica que não adoptem espontaneamente práticas de
equilíbrio de género, não promovam motu propriu a limitação e renovação de
mandatos executivos, sejam relapsos a qualquer esquema de selecção de
candidatos que possa envolver não militantes. Em parcas palavras, o vírus
partidário é multi-resistente. O restabelecimento da ligação entre os partidos
políticos e os cidadãos tem de passar por um câmbio desta cultura partidária. E
este câmbio só pode ser imposto de fora, só pode ser originado por um factor
externo (ainda que ele passe por uma decisão interna de adesão a essa mudança).
Esse factor é naturalmente a legislação eleitoral. Legislação que há-de ser
reformada procurando reforçar designadamente o poder dos eleitores na escolha
concreta dos seus representantes.
3. De há muito que circulam nos meios académicos e outrossim
na esfera pública (e até especificamente política) as mais diversas propostas
de reforma das leis eleitorais. Recentemente, todavia, o debate foi relançado
pela proposta do politólogo Pedro Magalhães de introdução do voto preferencial.
Proposta secundada pelo Director do Expresso, Ricardo Costa, e logo superada
por um antigo Director, Henrique Monteiro. Este foi mais longe e sugeriu a
introdução do chamado “sistema eleitoral misto” alemão, que, sem afectar a
proporcionalidade, elege metade dos deputados em círculos uninominais. Faz
largo tempo que defendo que, nas eleições por lista, deveríamos acolher o voto
preferencial, dando finalmente uma oportunidade aos eleitores de imporem a sua
vontade aos directórios partidários nacionais e distritais e forçando a
abertura dos partidos à dinâmica da sociedade. E, se isso for possível, nas
eleições para a Assembleia da República, preferia mesmo a adopção do sistema
misto. Não tenho qualquer ilusão sobre medidas com eficácia mítico-mágica para
a refundação do sistema político e da sua infraestrutura partidária. Mas não
tenho também sombra de dúvida que a adesão ao voto preferencial e a instituição
de uma rede de círculos uninominais contribuirá relevantemente para alterar a
cultura “endogâmica” dos partidos e para abrir o sistema político aos cidadãos.
Diminuirá o peso dos aparelhos e da nomenclatura e aumentará a influência e a
voz dos eleitores.
4. Os partidos da maioria – e, em particular, o PSD, de que
sou militante – têm-se reclamado de uma agenda reformista para o país. Mas têm
centrado a execução dessa agenda nos domínios económico e financeiro,
subordinando a dimensão político-institucional à sua relevância
económico-financeira. Não pode recriminar-se o sobrepeso do Estado na vida
económica e financeira e ignorar o excesso de peso dos partidos (e do seu
aparelho de poder) na vida política. Não pode querer-se, em nome das gerações
futuras, libertar a sociedade civil e manter, em estado de menoridade, os
cidadãos das gerações presentes. De resto, não é de excluir que uma parte
daquele peso excessivo do Estado anda associado ao peso excessivo das máquinas
partidárias.
Creio que é tempo de o PSD – em pleno ciclo eleitoral
interno – liderar uma agenda de renovação do sistema eleitoral, lançando pontes
para todos os outros partidos (em especial, para o PS e o CDS). As eleições
para o Parlamento Europeu revestem características únicas para se testar o voto
preferencial. Apesar da proximidade de calendário, não vejo nenhuma razão para
não se lançar este repto, abrindo os critérios da escolha partidária às
preferências sociais, reforçando o poder dos cidadãos na escolha dos seus
deputados e criando um novo e enorme incentivo à participação. Avancemos, pois,
nesta ofensiva política. Para que os partidos se abram ao mundo. E para que o
mundo não se feche aos partidos.
Sistema eleitoral: desfocar o debate entre Ricardo
Costa e Henrique Monteiro
Daniel Oliveira
Terça feira, 14 de janeiro de 2014 in Expresso online
Chego tarde à discussão mas também quero meter a colher no
debate entre Ricardo Costa e Henrique Monteiro sobre sistemas eleitorais. Para
desfocar um pouco. Ricardo Costa apresentou aqui , na semana passada, uma
proposta que incomodaria os partidos e que vinha de Pedro Magalhães (num trabalho
de Henrique Monteiro, no Expresso): listas abertas, cujo ordenamento de nomes
pudesse ser alterado pelos eleitores. Pedro Magalhães dá, no seu blogue , o
exemplo da Finlândia.
No entanto, confesso que prefiro aquele que julgo ser o
sistema holandês (esquecendo, por agora, o facto de ter um círculo único), de
listas semiabertas, em que o ordenamento existe e pode ser alterado ou aceite
tacitamente, se os eleitores nada indicarem. É esse sistema que defendo já há
alguns anos. Seria uma excelente forma de, mantendo a proporcionalidade e o
papel dos partidos políticos, disciplinar o seu próprio autismo. E garantiria
uma das principais correções de que a democracia representativa portuguesa
precisa: quebrar a obediência cega dos deputados ao líder, que acaba por
resultar na submissão do Parlamento ao governo, em vez de suceder, como prevê a
Constituição, o contrário.
O sistema holandês é, na minha opinião, melhor do que uma
lista completamente aberta (sem qualquer ordenação, como acontece para a Câmara
de Deputados, no Brasil), que transforma os partidos em meras federações de
candidatos e em que cada candidato tem no seu colega de filiação o principal
adversário. Em democracias pouco maduras pode ser completamente destrutivo das
organizações partidárias. A esta proposta acrescentaria a possibilidade de
listas de cidadãos apresentarem-se às eleições legislativas. Não tenho ilusões
que o resultado fosse muito diferente do que é conseguido em autárquicas. Mas,
ao menos, impediria que as direções partidárias pura e simplesmente retirassem
das listas os candidatos menos disciplinados ou menos ligados às estruturas
internas.
Em resposta a Ricardo Costa, Henrique Monteiro veio
apresentar uma proposta alternativa, de autoria de Rui Oliveira e Costa, que,
usando o título escolhido por Ricardo, assustaria ainda mais os partidos : o
sistema misto, com círculos uninominais e um circulo nacional, semelhante ao
alemão. Confesso ter dificuldade em perceber porque acha o Henrique que a sua
proposta incomoda "ainda mais" os partidos. Henrique faz a distinção:
irrita as distritais. Mas, diga-se em abono da verdade, deixa os dois
principais partidos bastante satisfeitos. A prova disso é dada por ele mesmo,
no seu artigo: António Vitorino e Marques Mendes, os dois mais acabados
exemplos do espírito partidocrata, concordam com a ideia. E é natural que
concordem. Ela garantiria uma representação partidária ainda mais significativa
ao PS e ao PSD. Para regenerar a política, não me parece o melhor começo.
Dirão que o sistema proposto é misto e isso resolve o
problema. Tenho muitas dúvidas. Os sistemas eleitoral não se limitam a mudar a
forma de eleger deputados. Círculos únicos nacionais favorecem o voto em
pequenos partidos, círculos uninominais favorecem o voto nos maiores partidos,
círculos de média dimensão (como temos) favorecem o voto em partidos médios.
Não apenas pela forma como se elegem os deputados, mas pelas dinâmicas
políticas que cada sistema alimenta. E o sistema misto entre círculos
uninominais e um circulo nacional, não levando diretamente ao bipartidarismo,
cria uma dinâmica política que tendencialmente o favorece. Porque o voto no
círculo uninominal, fortemente bipartidário, acaba por contaminar toda a
eleição, determinando o voto no circulo nacional.
Pelo menos em Portugal, só uma minoria vota de forma
diferenciada em diferentes boletins de voto. Não é preciso ir longe para
encontrar o indício desse comportamento dos eleitores. Basta acompanhar o voto
dos portugueses em eleições autárquicas para perceber como, tirando fenómenos
locais excepcionais, o voto para a Assembleia de Freguesia e para a Assembleia
Municipal é, na prática, determinado pelo voto para a Câmara Municipal. Melhor:
pelo voto para o presidente da Câmara, já que, apesar da lei, o cargo acaba por
ser, para a maioria dos eleitores, de eleição quase uninominal. Ou seja: com
círculos uninominais a serem, naturalmente, o centro da disputa eleitoral, o
circulo nacional tenderia, apesar de algum desvio, a reproduzir o voto
bipolarizado da eleição local, alterado muito a proporcionalidade atual. E,
para além disso, acentuaria os egoísmos locais que, inevitavelmente, os eleitos
por círculo acabariam por representar.
Mesmo partindo do princípio que este sistema aproximaria os
eleitos dos eleitores (tenho todas as dúvidas e gostaria de ver estudos sobre o
assunto que o comprovem), ele afetaria um bem que, na minha opinião, é
muitíssimo mais relevante para a saúde da democracia: a representatividade
política do Parlamento. Muito mais portugueses se sentiriam excluídos da
representação democrática. E pontos de vista relevantes na sociedade portuguesa
estariam condenados à exprimirem-se exclusivamente fora das instituições
democráticas e, cada vez mais, contra elas. Ora, parece-me que, nas democracias
europeias, não vivemos tanto uma crise de proximidade, mas muito mais uma crise
de representação. Perguntem aos ingleses se se sentem bem representados e se
confiam nos seus deputados, eleitos em círculos uninominais. A crise da
democracia representativa tem a ver com uma efervescência e velocidade modernas
que cada vez mais dificilmente podem ser representadas pelas instituições. Com
a crise das grandes narrativas e das formas intermediação social e política.
Mas, acima de tudo, com a degradação do poder dos Estados Nação e das suas
instituições e com a degradação das condições de exercício da própria
democracia.
Se olharmos para os números da confiança dos cidadãos na
democracia percebemos que o fundamental é outra coisa: a confiança no poder
político é, em geral, maior nos países com altos níveis de igualdade e também
com Estados Sociais mais robustos. Se virmos o recente estudo da Demos,
"Democracy in Europe can no longer be taken for granted..." , com os
melhores indicadores democráticos (respeito pelo Estado de Direito, controlo da
corrupção, respeito pelas liberdades fundamentais, envolvimento cívico e até,
vejam bem, protestos públicos, estabilidade) surgem quase sempre a Finlândia, a
Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Áustria, o Luxemburgo e, por vezes, a Alemanha
e a Bélgica. Em relação às posições dos cidadãos sobre o regime (se querem um
líder forte, se confiam nos outros cidadãos ou se sentem que têm um controlo
sobre as suas vidas), havendo, por razões históricas, alguns países
"intrusos", os melhores são, em geral, também estes. Todos países que
surgem no topo duma distribuição equitativa da riqueza e que são, quase todos,
exemplo daquilo a que chamamos "modelo social europeu".
Porquê? Porque a democracia não é apenas uma forma de
organização institucional. Não há democracia representativa que funcione num
país onde a desigualdade social impede o exercício da cidadania por parte de
todos. A igualdade não chega para a democracia, mas ela é condição para a sua
saúde. Porque a desigualdade destrói o sentimento de pertença a uma comunidade
e a empatia entre os cidadãos, de que a democracia depende. Sem isto, não há
cidadania ativa. E não há Estado transparente onde essa cidadania não seja
exercida de forma efetiva. E não há deputados que realmente representem a vontade
dos cidadãos sem transparência política.
As leis eleitorais podem favorecer a estabilidade ou a
representatividade, a proximidade ou a coesão política. Podem corrigir entorses
no sistema político. Mas não são o coração da democracia. A crise democrática
que vivemos é uma crise social e cultural, não é uma crise institucional.
Devolvam o poder aos Estados e empenhem-se em políticas que fomentem a
igualdade social e verão como os cidadãos terão muito mais confiança nos
deputados, sejam eles eleitos por que círculo forem. Essa confiança não
resultará apenas da sua satisfação pessoal. Resultará do facto de lhe terem
sido devolvidas as condições para exercerem com eficácia os seus direitos
democráticos.
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