EDITORIAL/ Público
Pelo fim das praxes
28/01/2014 – in Público
Quem praxa com violência não
tem lugar na universidade, pública ou privada.
Uma coisa já se percebeu:
serão os estudantes o principal obstáculo a uma mudança de fundo nas praxes.
Ao longo dos séculos, foram eles que repetidamente as
fizeram renascer das cinzas. Foi assim a seguir à República, quando o ensino
superior estava reservado às elites, e foi assim nos anos 1990, quando nasceram
universidades privadas por todo o país e a academia se democratizou.
Mas os estudantes não estão sozinhos. Fortificando a sua
posição a favor das praxes, está o silêncio ou a anuência do ministro, dos
reitores, dos conselhos gerais, dos conselhos de veteranos, das associações e
das federações académicas.
No vaivém de comentários que distraem o país, abafam o
debate sobre os cortes nas universidades e abordam o que importa discutir sobre
as praxes, duas fantasias são diariamente repetidas.
Uma é que não se pode acabar com as praxes porque são uma
“tradição com séculos”. Outra é que o que aconteceu no Meco não foi uma praxe,
"praxe não é aquilo, nem nunca o foi", como disse ontem o secretário
de Estado Emídio Guerreiro, ele próprio ex-presidente da Associação Académica
de Coimbra.
De facto, há séculos que existem praxes, em Portugal como em
Inglaterra ou em França. Mas cá eram vistas como uma “coisa de Coimbra”, não
“uma coisa portuguesa”, e até “um pouco antiquada e parola” (para citar José Pacheco
Pereira) que só os “tolos” gostavam de fazer (para citar uma participante do
fórum da TSF de ontem).
Depois de terem ficado coladas à obediência ao Estado Novo,
desapareceram até serem redescobertas pelas novas universidades privadas e
politécnicos há 15-20 anos. Ou seja, se pensamos em “cultura portuguesa”, é
mais forte a tradição antipraxe do que as praxes propriamente ditas.
Começou pelo menos em 1727, quando D. João V determinou que
“a qualquer estudante que ofender outro com o pretexto de novato, ainda que
levemente, lhe sejam riscados os cursos”. Por essa altura, já Harvard tinha
expulso, 50 anos antes, um estudante por causa de uma praxe.
Do mesmo modo, também é uma fantasia a ideia de que as
praxes não são violentas. Não são todas, mas muitas são e sempre foram. Há
episódios de incidentes graves e mortes ao longo dos séculos e por toda a
Europa. Porque pretendem apenas humilhar e demonstrar poder, porque não servem
em nada a integração dos caloiros e porque terminam muitas vezes em tragédia,
as praxes têm de ser punidas de forma rápida e dura pelas próprias
universidades – sejam praxes praticadas dentro ou fora do seu perímetro físico.
Quem praxa com violência não tem lugar na universidade,
pública ou privada. A lei já existe e proíbe “a prática de actos de violência
ou coacção física ou psicológica sobre outros estudantes” durante as praxes.
Não são precisos tribunais. Basta que as universidades a apliquem. Sem medo de
perderem a simpatia de alguns alunos, ou mesmo alunos e propinas. É o mínimo
que um Portugal moderno e civilizado deve aos familiares dos jovens que
perderam a vida no Meco.
OPINIÃO
A casa dos animais
JOÃO MIGUEL TAVARES 28/01/2014 – in Público
A irresponsabilidade do universitário que aprecia a praxe
tem muitos anos e uma razão de ser: a perpetuação de um espírito de casta.
Parece-me muito bem que universidades e ministro estejam
preocupados com a violência das praxes, mas talvez comece a ser altura de
envolver as famílias no assunto. É que os estudantes universitários são
adultos, mas não são independentes, e diferente seria se os pais tomassem
consciência das figuras tristes que os seus filhos andam a fazer, em vez de se
comoverem de cada vez que os vêem de capa e batina.
Deixemo-nos de paninhos quentes: nenhum jovem bem formado
aceita participar na humilhação organizada de alguém que é mais fraco do que
ele. Ponto final. E em relação às tretas da “tradição” e da “integração”, os
dux e as “papisas” que criem os seus próprios grupinhos fetichistas e deixem os
desgraçados dos caloiros em paz.
Aliás, confesso a minha dificuldade em continuar a escutar a
palavra “integração” saída da boca dos defensores das praxes, como se eles
fossem os filantropos do excremento e da roupa interior. Se só querem estender
os braços aos novos alunos e promover um momento divertido, organizem um
beberete. Parece-me uma forma mais higiénica de ajudar jovens de 18 anos a
conhecerem-se, até porque eles costumam ter muitas dificuldades nisso.
Portanto, caros praxistas, tentem arranjar uma desculpa menos parva para aquilo
que verdadeiramente vos põe a adrenalina a correr – aquela sensação, velha como
o mundo, de exercer um poder discricionário sobre um grupo de miúdos indefesos
e assustados. Sim, há aqui uma antiquíssima tradição. Bárbara e repugnante, mas
uma tradição, ainda assim.
Claro que o assunto das praxes é como os fogos de Verão: vai
e vem consoante os anos, e aquilo que arde e morre em cada estação. Nada irá
mudar por causa das mortes do Meco, porque as praxes – lá está – existem desde
que alguns seres humanos descobriram ser divertido humilhar outros seres
humanos. E isso foi há muito tempo. Mas a investigação de Ana Leal, na TVI,
teve o mérito de revelar algumas práticas dos membros do Conselho de Praxe da
Lusófona, cuja descrição me parece aproximá-las mais dos rituais das famosas
fraternities com nome de letras gregas das universidades da Ivy League do que
propriamente de alguma coisa portuguesa. Portanto, neste caso, a tradição é,
além de bárbara e repugnante, americana e muito queque.
Isto não é uma coisa de universidades fajutas e mal
frequentadas. Os excessos das repúblicas da Ivy League, cujas práticas fazem
muitas vezes parecer as da Lusófona uma brincadeira de crianças, também ocupam
espaço nos jornais americanos, até porque todos os anos costuma morrer alguém.
John Landis já fez o favor de retratar tais ambientes há 35 anos, num filme de
culto de 1978 sobre a fraternity Delta Tau Chi, sintomaticamente intitulado
Animal House. Em Portugal ele chamou-se (ainda mais sintomaticamente) A
República dos Cucos, uma tradução pueril para um filme cuja máxima nada tinha
de inocente: “We can do anything we want. We’re college students!”
OPINIÃO
As “praxes” e o poder
ELÍSIO ESTANQUE 28/01/2014 – in Público
Ao fim de décadas de debate,
torna-se patente que a acção pedagógica promovida pelas entidades do mundo
estudantil não tem surtido efeitos palpáveis.
Não sei se é ou não verdadeira a afirmação de Vasco Pulido
Valente de que a cultura “praxista” varia “na proporção inversa da qualidade
académica da instituição” (PÚBLICO, 25/1/2014), mas, como é de regra, a
imitação é sempre pior do que o original e é talvez por isso que os casos mais
graves de abusos neste domínio têm surgido em instituições privadas e com pouca
tradição académica (no verdadeiro sentido da expressão).
Sabemos bem que “o original” – no caso, a Universidade de
Coimbra – não é exceção na tendência geral de massificação dos consumos
estudantis. Mas foi sobretudo a partir do boom de institutos e universidades
privadas de ensino superior (na década de 1980) que começaram a florescer pelo
país as cenas caricatas e comportamentos humilhantes exercidos pelos mais
velhos sobre os “caloiros”, onde se confunde o ritual de passagem com a
masoquista submissão ao abuso, onde se confunde “tradição” com o despotismo pessoal
mais arbitrário. Os observadores e analistas têm sido unânimes a condenar esse
processo de adulteração e de excesso onde o mote é a violência e que tem
suscitado diversos casos lamentáveis e algumas mortes, de um modo ou de outro,
relacionadas com a “praxe” académica. Com maior ou menor gravidade, os casos
sucedem-se anualmente.
Há cerca de dois anos, publiquei neste jornal: “Nos últimos
dias, foi notícia mais um caso, em Coimbra, envolvendo duas jovens estudantes
de Psicologia, que terão sido agredidas por recusarem alinhar nos castigos da
‘praxe’ e a assinar uma declaração antipraxe. Na sequência da denúncia, o
Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra declarou a suspensão da ‘praxe
académica’ por tempo indeterminado. Porém, logo no dia seguinte assisti, junto
a uma cantina, a mais um exercício humilhante em que um estudante mais velho
aplicava a praxe a duas raparigas, estendidas no chão a fazerem flexões de
braços (2/4/2012). As alarvices e os abusos começam na semana de receção ao
caloiro, passam pela Festa das Latas e vão até à Queima das Fitas, o seu pico
mais alto. Em qualquer lugar público, as cenas sucedem-se: as/os ‘doutoras/es’
a dar ordens a grupos de ‘caloiras/os’ que se perfilam como na tropa, olhando
para o chão em obediência servil; depois, colocam-se ‘de quatro’ e gritam em
coro ‘sou caloira e sou burra!’ (cena em Coimbra, 1/3/2012). Em Leiria, no
centro da cidade, uma fila de caloiras deitadas no chão rebola-se perante os
gritos militaristas das suas superioras (cena observada a 7/3/2012). A postura
machista, marialva e de subalternização da mulher é, aliás, um traço marcante
da atual cultura estudantil, para a qual eles e elas contribuem alegremente,
exaltando a hierarquia e naturalizando as mais diversas formas de arrogância e abuso
de poder” (PÚBLICO, 6/4/2012).
Mais do que condenar os “abusos” ou apelar à “proibição”
dessas práticas, importa conhecer melhor a razão da sua multiplicação para,
depois, se exercer alguma ação corretiva (pedagógica ou repressiva, ou ambas).
No plano subjetivo, o diagnóstico está feito e o último artigo de José Pacheco
Pereira sintetiza bem a lógica de poder simbólico que anima a cultura praxista:
“Ao institucionalizar a obediência aos mais absurdos comandos, a humilhação dos
caloiros perante os veteranos, a promessa era a do exercício futuro do mesmo
poder de vexame, mostrando como o único conteúdo da praxe é o da ordem e do
respeito pela ordem, assente na hierarquia do ano do curso. Mas quem respeita
uma hierarquia ao ponto da abjecção está a fazer o tirocínio para respeitar
todas as hierarquias. Se fores obediente e lamberes o chão, podes vir a mandar,
quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher um chão ainda mais sujo,
do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois vingas-te” (J.P.P.,
PÚBLICO, 25/1/2014).
Ao fim de décadas de debate e de um constante diálogo que
temos mantido com os estudantes (praxistas e antipraxistas) de Coimbra,
torna-se patente que a ação pedagógica promovida pelas entidades do mundo
estudantil (a começar pelo Conselho de Veteranos) não tem surtido efeitos
palpáveis. Muitos estudantes alegam que os abusos nada têm a ver com a
“verdadeira” praxe, que é integradora e se oferece como oportunidade de
socialização dos caloiros, sendo que muitos destes argumentam que o ritual da
praxe é onde se geram as amizades mais sólidas. Em favor dessas opiniões,
importa reconhecer que nem todas as praxes são violentas e humilhantes, e que
continuam a existir brincadeiras inteligentes, que veiculam uma irreverência
juvenil saudável que importa preservar no meio estudantil. Receia-se, porém,
que esses casos sejam hoje a exceção e que o processo de perversão seja
imparável. Faz sentido uma proibição pura e simples? Creio que não. Seria
possível instituir uma receção amigável ao caloiro? Seria, mas para isso era
preciso que as universidades tivessem disponibilidade e condições para intervir
mais ativamente neste campo; e, acima de tudo, era preciso que as estruturas
associativas dos estudantes trabalhassem nesse sentido e rompessem com a lógica
de poder e de ambição individual que as aprisiona (que no fundo se ligassem à
realidade que representam em vez de se satisfazerem em ser eleitas por dez ou
vinte por cento dos estudantes).
Quando o debate académico é cada vez mais anulado pela
“tecnoburocracia” reinante; quando é a tutela, as universidades e as próprias
associações que promovem a passividade, a concorrência e o carreirismo; quando,
enfim, as instituições e o poder rejeitam a reflexão crítica, a cultura
democrática e ostracizam as ciências sociais (vocacionadas para pensar
criticamente a sociedade), não podemos surpreender-nos perante o triunfo da
mediocridade moral e da vilania mais abjeta. É, pois, nos condicionalismos
estruturais associados ao poder político e ao mercado que reside a génese de
uma mentalidade que perverte a tradicional missão formativa, científica e
cultural da Universidade, e que estimula o hedonismo e a apatia cidadã da atual
geração estudantil, onde proliferam as praxes e as suas perversões.
Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Miguel Sousa Tavares As praxes são “imbecilidades
pró-nazis”
Quando questionado, no seu habitual comentário no Jornal da
Noite da SIC, sobre a situação em que se encontram as praxes académicas depois
do acidente no Meco, Miguel Sousa Tavares afirmou que as praxes são
“imbecilidades pró-nazis” e que, no seu tempo, “era uma vergonha ter 30 anos e
ainda estar a estudar”.
“No meu tempo era uma vergonha. [Estes alunos] são uns
mandriões”, sublinhou.
Para o comentador, as praxes são “imbecilidades pró-nazis
que integram valores de degradação humana e abuso sexual, que não são os
valores que queremos para o País”.
Na opinião do escritor, “é lastimável uma pessoa ir para a
faculdade e ter que passar por isso e é ainda mais lastimável que ainda não se
tenha ouvido uma palavra da parte das autoridades académicas”.
“Claro que os estudantes dizem que ‘não é de proibir’ mas,
havendo crime, e quer se identifiquem os autores ou não, a comissão de praxe
devia ser toda arguida”, afirmou o comentador.
Miguel Sousa Tavares concluiu com a ideia de que, “se esta é
a vocação destes alunos, as universidades podem muito bem dispensá-los”.
In Notícias ao Minuto
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