“As reitorias nunca tiveram vontade de expulsar as
praxes ou de as domesticar sequer”
SAMUEL SILVA 25/01/2014 – in Público
A socióloga Rita Ribeiro
mergulhou no universo das praxes académicas. Fala em casos de tribunal, em
responsabilidade individual e diz que um dos problemas é que "isto são
brincadeiras de crescidos".
O episódio é contado na investigação académica da socióloga
Rita Ribeiro sobre praxes académicas. Um grupo de alunos estava à volta de um
lago numa praxe quando os colegas mais velhos dão a ordem de saltar. Em vez de
molharem os pés e saltitarem, os mais novos atiraram-se para dentro de água. “É
o exemplo do clima de intimidação e de quem está sempre à espera do pior”, diz
a professora da Universidade do Minho (UM).
Foi este o ambiente que encontrou no trabalho de campo que
fez, inicialmente sob o ponto de vista da antropologia, olhando as praxes
enquanto ritual de passagem. Foi também autora – juntamente com outro sociólogo
da mesma universidade, Carlos Gomes – de um relatório sobre as praxes na UM,
encomendado pela reitoria da instituição. “A intenção nunca foi julga-las,
antes entendê-las”.
O que explica esta necessidade de os jovens estudantes
enfatizarem esta etapa da sua vida?
Por um lado, há uma questão histórica e uma ideia de
tradição, que é sempre usada como discurso legitimador. Depois, as praxes
funcionam como um sinal da elevação estatutária que significa a entrada para o
ensino superior. Para todos os efeitos, este ainda é um sector minoritário na
sociedade portuguesa. Essa dimensão elitista leva a que se valorize a entrada
na universidade. O traje e todos os signos da praxe são formas de os alunos
sentirem um reconhecimento estatutário por parte da sociedade.
Mesmo para aqueles que são praxados?
Talvez até mais para esses, porque é um momento em que isso
é visível para todos. Quando vão na rua com a cara pintada e não se importam
com isso é porque estão a dizer aos outros: “Eu entrei para a universidade”. As
praxes eram uma prática da Universidade de Coimbra e entraram em declínio nos
anos 1960, por questões políticas. Emergiram no final dos anos 1980 e ganharam
força nos anos 1990, precisamente quando o ensino superior se democratiza.
Não seria expectável que fosse ao contrário: a partir do
momento em que alarga o espectro dos que entram na universidade, o peso
simbólico é menor?
Podia ser assim, mas, apesar dessa massificação, só uma
percentagem muito restrita da população entra na universidade. Sobretudo
naquela altura [anos 1990], em que havia uma forte pressão de procura e muitos
dos que se candidatavam não entravam.
O possível embaraço público pesa menos do que o sentimento
de orgulho por pertencer a esta comunidade?
Tirando aqueles alunos que participam porque não têm
capacidade para se escusar a fazê-lo, na grande maioria das situações que pude
recolher é isso que acontece. As pessoas sentem-se [impelidas] a participar de
livre vontade. Muitas vezes, esse embaraço nem sequer é sentido, porque o lado
provocatório que a praxe tem estimula-os. Estão a fazê-lo em grupo, a coberto
de uma tradição, e isso funciona para alimentar essas práticas.
Qual é o papel das reitorias ou das direcções das faculdades
neste processo?
Nunca tiveram muita vontade de expulsar as praxes ou de as
domesticar sequer. Há aqui questões políticas, porque os reitores precisam de
ter os alunos do seu lado. E, para muitos alunos, uma posição mais forte contra
as praxes pode ser vista como uma afronta. A solução também não está numa
rejeição completa, até porque as praxes parecem-me mais perigosas quando estão
fora das universidades do que quando estão dentro. Algum equilíbrio da
domesticação destas práticas é o ideal, mas não é fácil de se conseguir.
Dizia que a tradição aparece muitas vezes como discurso
legitimador da praxe. Mas em universidades como a do Minho ou a de Aveiro, que
são recentes, que tradição existe?
É uma tradição inventada, como são quase todas. O que há é
uma recuperação de práticas históricas que são mobilizadas para aquilo que são
os interesses dos estudantes. Estas tradições existiam em algumas universidades
antigas – no caso português, Coimbra. O que as universidades novas fizeram foi
apropriar-se destas práticas e, simultaneamente, dar-lhes uma tonalidade local,
recuperando histórias mais ou menos mitificadas acerca daquilo que os
estudantes liceais de cada cidade faziam ou das instituições eclesiásticas que
tinham uma componente de ensino superior. Isso é também uma forma de
legitimação, sobretudo numa universidade nova que precisa de criar uma
identidade.
Na sua investigação, escreve que as regras da praxe são
“implícitas” e “informuladas”. Como é que isso se explica?
Num ritual, sabe-se o que se deve fazer, mas muitas vezes o
sentido das coisas está implícito. Por isso é que eles são polissémicos, servem
para muita gente. E agregam vontades devido a essa plasticidade. Quando lemos o
código de praxe, está lá um conjunto de limitações, mas não diz como fazer. O
como fazer é uma prática que se constrói e que se reproduz num certo contexto
institucional.
Mas há regras mais óbvias?
Embora operando numa lógica do implícito, estruturalmente,
estão lá os significados. No caso da praxe, elas são interessantes do ponto de
vista do estudo dos rituais devido a duas dimensões. Os pilares em que assentam
são a hierarquia e o igualitarismo entre aqueles que são praxados. A praxe
desenvolve-se nesta tensão permanente de reprodução das estruturas hierárquicas
da sociedade de uma forma muito linear. E, ao mesmo tempo, do lado dos que
estão a ser iniciados, é promovida a sua homogeneização, o seu nivelamento, a
sua desinvidualização.
Essa é uma das críticas mais frequentes à praxe: o
nivelamento e esta reprodução da hierarquia. No trabalho de campo, isso é uma
coisa óbvia?
Está no nível estrutural daquilo que são os rituais
associados à praxe, mas está. Há uma violência hierárquica muito forte,
sobretudo nos primeiros tempos de praxe. Ao mesmo tempo que há uma completa
formatação daqueles que estão a ser praxados e um apagamento das
individualidades. Esta é uma prática comum a todas as instituições em que estão
muitas pessoas juntas durante muito tempo, como as forças armadas ou os
mosteiros.
Quando alguma coisa corre mal, é comum que as estruturas
associadas à praxe não falem. O silêncio também é uma das regras implícitas?
Tal como outros rituais desta natureza, as praxes servem
para constituir aquilo a que alguns autores chamam o espírito de corpo. Isso
significa sempre que estamos a criar uma certa identidade entre nós e a afastar
os que não têm o direito a passar pelo mesmo. Esse pacto de silêncio que às
vezes se percebe tem a ver com isso: há uma protecção dos nossos. Se a praxe
consegue alguma coisa é isso, é criar um espírito de corpo, uma identificação
com a universidade, com um curso, com um grupo de pessoas. Do ponto de vista
sociológico ou antropológico, quando os grupos se formam passando por este tipo
de práticas violentas, reforçam ainda mais esse espírito.
Como é que se conciliam estas regras implícitas com o
anúncio feito em Agosto de 2012, por nove estruturas académicas, de criação de
um código de praxe comum para o país todo?
Provavelmente, estamos apenas no domínio da intenção. Não
vejo que seja muito possível essa cooperação tão estreita entre diferentes
universidades, que criaram “tradições” de praxes diferentes. Até pode ser que
se chegue a esse código, mas será sempre suficientemente vago e pouco
operativo.
Onde é que a praxe se cruza com a lei?
Essa é uma zona de sombra. Todas as sociedades acabam por
ter esta capacidade de acomodar certas práticas que estão contra os valores
explícitos ou a lei. Qualquer juízo baseado na nossa lei condena muitas das
coisas que se passam na praxe e muitas delas são efectivamente situações de
tribunal. Mas o significado que nós atribuímos de fora não é o significado que
está a circular dentro do grupo que está a ser praxado e está a praxar. Temos
que ver as praxes como uma dramatização feita por um grupo. É esse jogo de
papéis que está ali a acontecer. Fora deste contexto específico, aquilo são
situações intoleráveis.
Mas há espaços para a lei eventualmente intervir?
Apesar de as ver nesta óptica da dramatização, é evidente
que não deixamos de estar numa sociedade onde há regras muito explícitas acerca
dos direitos das pessoas. Essa subversão é calendarizada, sabe-se quando e onde
pode acontecer e também se sabe quando e onde não pode acontecer, e é este
contexto específico o que leva as instituições universitárias e a sociedade em
geral a tolerarem as praxes. Mas não deixam de ser cidadãos que estão
envolvidos. Há aqui também uma questão que é muito importante: a
responsabilidade individual tanto de quem praxa como de quem é praxado. Quem é
praxado também tem responsabilidade, porque está ali porque quer.
É, de facto, possível dizer que não à praxe?
Dependerá muito das universidades, dos cursos, de quem está
a dirigir as comissões de praxe, mas é possível dizer que não. E há também
estruturas institucionais que são capazes de ajudar, como o provedor do
estudante, que é uma figura relativamente nova.
Quem participa também assumiu que aquelas eram as regras do
jogo?
Mas a qualquer momento tem que poder dizer que não. O mais
importante no trabalho pedagógico junto dos alunos é que, a qualquer momento,
devem poder parar o jogo. Essa responsabilidade individual não pode ser
esquecida.
Nos dois casos mais mediáticos que chegaram a tribunal – a
Universidade Lusíada foi condenada a pagar uma indemnização à família de um
aluno que morreu na sequência de uma praxe, em 2001, e o Instituto Piaget
também teve que compensar uma aluna que se queixou da violência da praxe, em
2002 –, a condenação recaiu sobre a instituição e nunca sobre os indivíduos. É
difícil que o ascendente que alguém tem sobre outro no âmbito deste jogo possa
ser entendido como estando para lá da fronteira da lei?
Não sei como é que os processos foram tratados do ponto de
vista judicial, mas imagino que, tal como em muitas outras situações que cruzam
o domínio da lei, seja possível atribuir responsabilidades e culpas que vão
para além desta forma quase abstracta de condenar uma instituição. Se sabemos
que acontecem situações muito graves, elas têm protagonistas. A cumplicidade
que a sociedade portuguesa tem com as praxes está em todo o lado.
O álcool e as drogas também fazem parte da praxe?
Em relação às drogas, não me deparei com nenhum caso. Mas o
álcool faz parte. Algumas praxes ocorrem à noite e ocorrem quase sempre tendo o
álcool também como actor. Os estudantes passam pelos bares e muitos deles são
constrangidos a beber.
O que é que justifica que um país que se mobiliza com o
bullying no ensino obrigatório tolere estas práticas no superior?
Há uma razão muito simples: estamos a falar de adultos. Não
podemos esquecer isso. É difícil fazer uma intervenção quando estamos a falar
de pessoas que estão ali de livre vontade. Seria preciso provar que estão na
praxe fortemente coagidos e intimidados e isso não acontece, na maior parte dos
casos. Isto é uma brincadeira de gente crescida.
Praxe, polémica e violência, uma história com séculos
ANDREIA SANCHES 25/01/2014 – in Público
Foi proibida pelo rei. Foi
debatida nos jornais, de forma apaixonada, em diferentes momentos. Caiu com a
crise académica. Emergiu com a massificação do ensino. Que praxe é esta?
Há algumas ideias feitas sobre a praxe dos estudantes. Por
exemplo: que os abusos são coisas da História recente; que ela é igual em todas
as universidades; que o termo se refere apenas aos “castigos” aplicados aos
alunos do 1.º ano. Não é bem assim.
Os castigos sobre os mais novos, como os “canelões” (os mais
velhos davam pontapés nas canelas dos recém-chegados a Coimbra), eram
praticados já no século XVII. Não se fala, então, de “praxe”, antes de
“investida”. E esta podia incluir “insultos”, “troças” ou castigos, como
obrigar o jovem aluno a prestar serviços aos mais velhos (limpando-lhes os
sapatos, por exemplo).
Por vezes, as “investidas” degeneravam. “Não havia defensa
daquelas bárbaras e indecentes investidas, feitas com violência e desacatos,
armados os agressores como para assaltar um castelo: e destes excessos resultaram
mortes, incêndios e sacrilégios”, escreveu o médico e filósofo Ribeiro Sanches
(1699-1783).
Em 1727, D. João V determina o seguinte: “Mando que todo e
qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de
novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos.” Mas a praxe
resiste. É de 1765 a
Macarrónea Latino-Portuguesa, “conhecida pelo título da primeira composição,
publicada em 1746 – o Palito Métrico”, onde se “descreve e prescreve”, nas
palavras da socióloga Maria Eduarda Cruzeiro, a relação com os “caloiros”. No
século XIX, os novatos são “tosquiados”, obrigados a cantar e a dançar. Em
1873, um estudante, depois de ver o cabelo cortado à força, mata um dos
agressores.
António Manuel Nunes explica, em 2004, nos Cadernos do
Noroeste, que alguns rituais envolviam também alunos mais velhos, caso do
hábito de “rasgar as vestes e ser violentamente sovado com palmadas no momento
em que se acabava o curso”. Por meados do século XIX, o termo “praxe” substitui
“investidas”, “caçoadas” e “troças”. “Desde essa data, a Praxe Académica reúne
numa mesma unidade semântica os comportamentos característicos, e até
dispersos, do universo académico”, diz Aníbal Frias, num artigo publicado na
Revista Crítica de Ciências Sociais, em 2003. E “emerge devido a um aumento da
concorrência entre a velha Universidade de Coimbra e outros estabelecimentos de
ensino superior, técnico-científicos, então criados em Lisboa e no Porto. Uma
competição que se acentua (...) com a criação das universidades de Lisboa e do
Porto em 1911, e, sobretudo, depois do 25 de Abril de 1974, com a multiplicação
das universidades novas e dos institutos politécnicos, em busca de uma
legitimidade e de uma ‘alma’.”
Moca, colher e tesoura
No início do século XX, há histórias célebres de tentativas
de suavizar as praxes, como a do jovem Aristides de Sousa Mendes, futuro
cônsul, e do seu irmão gémeo César, que promoveram as “Festas de recepção aos
novatos” na Universidade de Coimbra, onde estudavam Direito em 1905. Com José
d’Arruella e outros “rapazes cheios de intenções generosas”, o grupo recebeu os
caloiros com poesia, música e teatro, numa tentativa de pôr fim à “velha usança
das troças” que, por vezes, se tornavam “sumamente agressivas”, conta Lina
Alves Madeira, na revista Rua Larga, da UC. Na altura, a iniciativa foi saudada
por Guerra Junqueiro, Gomes Leal e Bernardino Machado. Com a proclamação da
República, a praxe quase desaparece. Mas, em 1916, “uma representação assinada
por 825 estudantes” reclama-a. E estala o debate, de novo. “Abaixo as praxes
ridículas e inoportunas!”, lê-se num artigo de 14 de Dezembro desse ano,
publicado no bissemanário A Resistência.
A primeira tentativa de codificação da praxe de Coimbra no
século XX é também de 1916, segundo Maria Eduarda Cruzeiro. Chama-se Leis
Extravagantes da Academia de Coimbra ou Código das Muitas Partidas e tem na
capa “a triologia simbólica da perseguição aos caloiros” – a moca, a colher e a
tesoura, símbolos que resistem até hoje – “e ainda uma figura de veterano
aplicando com uma colher a sanção de unhas a um caloiro”. A colher, por
exemplo, é, segundo Frias, um símbolo dos castigos escolares – remete para a
palmatória dos professores, que “aponta as letras do alfabeto no quadro, que
apruma os corpos e os espíritos, que marca o ritmo dos exercícios”.
Em 1957, o Código da Praxe Académica de Coimbra, então aprovado,
define praxe como “o conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes
entre os estudantes de Coimbra e os que forem decretados pelo Conselho de
Veteranos”, definição que permaneceu até hoje. O debate pró e contra a praxe
volta às páginas dos jornais. O Diário de Lisboa publica durante dias a fio
cartas e artigos em tom inflamado. “Se há caloiros que tudo suportam, há os que
não sofrem sem raiva no coração as humilhações impostas por indivíduos tantas
vezes intelectualmente coxos”, lê-se num deles. Responde outro: “O que se
pretende com as inofensivas brincadeiras a que os caloiros são submetidos é ver
como estes reagem a elas e, se for caso disso, tentar demonstrar-lhes que a
excessiva arrogância e o amor-próprio em demasia ser-lhes-ão prejudiciais na
sua vida futura.”
No jornal República, a associação académica faz saber que a
praxe é um “assunto da exclusiva competência dos estudantes de Coimbra [...] e
só a eles cabe (se o entenderem!) actualizá-la”.
Esta visão da praxe como algo que escapa ao controlo do
exterior é recorrente. Miguel Cardina, num número da Revista Crítica de
Ciências Sociais, de 2008, diz que a praxe é “uma reminiscência” do tempo em
que existia em Coimbra um “foro académico” – ou seja, uma jurisdição
universitária (com tribunal, prisão e polícia próprios).
Ainda na década de 1960, com a crise académica, a praxe é
abolida. E uma reportagem de 1973, no República, descreve uma Coimbra sem capa
nem batina, onde os estudantes haviam perdido o seu “estatuto especial”. Mas
havia saudosos da praxe.
“Entre 1978 e 1980, alguns elementos da Praxe Académica
foram reactivados” na cidade, conta Frias. Esta “restauração” desenvolveu-se em
várias etapas: em 1978, assistiu-se “à ressurreição do fado”, o qual “havia
sido parcialmente destronado” pelo canto de intervenção; em 1979, com o apoio
da direcção social-democrata da Associação Académica de Coimbra, organiza-se
uma “Queima das Fitas disfarçada”; em 1980, regressam a Queima das Fitas, a
capa e a batina... e as praxes.
Esfregada com esterco
A década de 1980 e 1990 marca a explosão do ensino superior
em todo o país. Nascem novas instituições, públicas e privadas, para dar
resposta à crescente procura de formação por parte de jovens de diversas
origens. Nos anos 1990, os rituais vulgarizam-se. Frias fala de “praxes
híbridas”, “onde os empréstimos do modelo coimbrão se associam a traços
locais”. Um inquérito aos estudantes de Coimbra conduzido pelo sociólogo Elísio
Estanque entre 1999 e 2000 revela que só 3,3% pensam que a praxe deve ser abolida
por a acharem violenta.
Depois de 2000, vários ministros da Educação mostram-se
preocupados com alguns relatos. O caso de Ana Santos é dos mais mediáticos.
“Obrigaram-me a colocar na posição de ‘Elefante Pensador’ (joelhos, cabeça no
chão e mãos debaixo dos joelhos com as palmas viradas para cima). Fui insultada
por tempo que não consigo quantificar (...). Fui esfregada com esterco – camada
sobre camada, cara, pescoço, peito, costas, barriga, cabelo”, tendo sido
obrigada a ficar “em pé a secar ao sol” – era este o teor da carta da aluna da
Escola Superior Agrária de Santarém ao então ministro Pedro Lynce. Estávamos em
2002.
A aluna contou que a dois caloiros, como ela, foi ordenado
que lhe mergulhassem a cabeça num bacio com excrementos. Tudo começou quando
atendeu um telefonema da mãe. Os caloiros estavam proibidos de falar ao
telefone.
Em 2007, o regime jurídico das instituições de ensino
superior passou a prever sanções para quem, nas praxes, passasse das marcas.
Mas os casos sucederam-se.
“A relativa desvalorização social dos títulos académicos
(que deriva da própria massificação da certificação escolar) e a necessidade de
legitimação de novas instituições foram um poderoso factor do renascimento das
praxes enquanto retórica de tradicionalismo”, lê-se num relatório do
Parlamento, em 2008, cuja relatora foi a deputada Ana Drago.
Nesse ano, o caso de Ana Santos chegou ao tribunal. Durante
o julgamento, um ex-professor declarou que era “preciso desmistificar as fezes”
e o director da escola fez saber que também tinha “recebido bosta no corpo”.
Mas seis jovens que praxaram a aluna acabaram condenados por ofensa à
integridade física qualificada e um sétimo pelo crime de coacção. Tiveram de
pagar multas.
No mesmo ano, o Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros foi
condenado a pagar 40 mil euros a uma estudante vítima de actos “degradantes e
humilhantes”. E, em 2009, foi dado como provado que o aluno Diogo Macedo tinha
morrido, oito anos antes, por causa de uma pancada na nuca, na Universidade
Lusíada de Vila Nova de Famalicão, onde estava a participar num ensaio da tuna.
Apesar de já estar no 4.º ano, Diogo nunca passara de
“tuninho” (o grau mais baixo na hierarquia) e era frequentemente submetido a
praxes. O caso chegou a ser arquivado pelo Ministério Público, em 2004, por
falta de provas, mas a mãe do aluno exigiu uma indemnização, na esperança que
mais dados surgissem sobre o que se passara. Já em 2013, o Supremo Tribunal de
Justiça confirmou a condenação da Lusíada: cerca de 91 mil euros por danos
morais.
Auscultados responsáveis de universidades e politécnicos, o
relatório de 2008 do Parlamento concluiu que imperava “o entendimento de que as
praxes académicas são um universo autónomo e, em certa medida, exterior às
próprias instituições”, que “os órgãos de gestão se devem abster de intervir” e
que cabe “aos organismos da praxe e aos próprios alunos” prevenir e sancionar
as situações de abuso. Mas também houve reitores, como Mário Moutinho, da
Universidade Lusófona de Lisboa, a defender uma proibição que viesse de cima:
“Julgamos que orientações superiores facilitando a sua proibição em muito
ajudariam esta universidade a rejeitar liminarmente a realização de praxes
académicas.” com Sérgio Gomes
Fontes: Aníbal Frias, Praxe académica e culturas
universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias, in
Revista Crítica de Ciências Sociais, 2003; António Manuel Nunes, As praxes
académicas de Coimbra: uma interpelação histórico-antropológica, in Cadernos do
Noroeste, 2004; Miguel Cardina, Memórias incómodas e rasura do tempo:
Movimentos estudantis e praxe académica no declínio do Estado Novo, in Revista
Crítica de Ciências Sociais, 2008; Elísio Estanque, A tradição e o movimento
estudantil na Universidade de Coimbra; Maria Eduarda Cruzeiro, Costumes
estudantis de Coimbra no século XIX, in Análise Social, 1979; Alberto Sousa
Lamy, A Academia de Coimbra (Rei dos Livros, 1990)
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