EDITORIAL/ Público
A prioridade perdida
19/01/2014 -
O Governo quer tornar a
ciência mais competitiva, retirando-lhe as bases para ela poder competir
Até à chegada de Mariano Gago ao poder, em 1995, e das
políticas que então começou a implementar terem produzido resultados, a ideia
de que Portugal algum dia viesse a ter uma política científica digna do nome
pertencia ao domínio do impensável.
Ao longo de quase
duas décadas (e mantendo-se uma continuidade de políticas, apesar da
alternância de partidos no poder), houve investimento e talento para construir
um edifício que hoje pode estar em risco.
Há algumas décadas, contavam-se pelos dedos os cientistas
portugueses que estavam lá fora. Agora, exportamos cérebros e investigadores
qualificados, que o país não consegue enquadrar.
Começou a diminuir o investimento público em ciência, quando
estamos a afastar-nos da meta dos 3% do PIB que a própria FCT diz querer
alcançar no futuro.
E não há só um problema de crise. Há um problema ideológico
em relação à ciência. O Governo, como explica o presidente da FCT, Miguel
Seabra, em entrevista publicada no dossier que hoje dedicamos à crise na
ciência, quer que a investigação dependa cada vez menos do Orçamento do Estado
e defende uma cultura de exigência contra a comodidade dos apoios garantidos.
Esta ideologia da competitividade contra o peso excessivo do
Estado acaba no entanto por ser um tiro no pé da própria competitividade do
país no futuro, para o qual a ciência é pura e simplesmente decisiva.
A excelência não nasce nas árvores, é o resultado de um
trabalho contínuo e implica uma base quantitativa. Isso, aliás, a política dos
últimos anos já demonstrou, com resultados concretos. A competitividade enquanto
miragem ideológica começa por penalizar as condições para a ciência portuguesa
poder competir. Fortalece-se a ideia de que só os investigadores que obtêm
resultados devem ser apoiados.
O liberalismo, enquanto doutrina, transforma-se no supremo
estatismo, ao subordinar a liberdade de investigar a uma ideia vaga de
produtividade, como se estivéssemos na União Soviética. O enjoo perante o “peso
do Estado” deste Governo não tem tradução prática. O que ouvimos no discurso,
duríssimo, dos investigadores, são as críticas à falta de regras e à burocracia
em excesso. Reduzir o peso do Estado é começar por limar o funcionamento do
Estado e torná-lo eficaz, não é cortar despesa.
Esperava-se do Governo uma política estruturada para a
ciência, com metas, objectivos e prioridades, que fosse além da vulgata
ideológica. Esperava-se do Governo a percepção de que há sectores onde é
preciso investir para garantir uma porta de saída para a crise. É preciso mais
investimento e mais eficácia, em vez de desinvestir e pôr em causa uma política
que ao longo de duas décadas deu resultados. Em tempo de crise, a ciência, que
não é assim tão cara, devia ser uma prioridade para um país que deseja a ousadia
de ter um futuro.
“Todos partem e nenhum fica”
TERESA FIRMINO e SAMUEL SILVA 18/01/2014 – in Público
Da Noruega à África do Sul, multiplicam-se os destinos que
acolhem os investigadores portugueses. Mas a história de todos e de cada um é a
de quem teve de partir por não encontrar espaço para trabalhar no seu país.
Quantos se vão embora ao certo? Quantos vêm para o país? Em
que condições trabalham? Números exactos, que permitam ter um retrato real do
que se passa com os cientistas em Portugal, não existem. Ficam os relatos de
quem vive uma diáspora científica em tempos de crise.
Era um dos 20 membros do Conselho Nacional de Ciência e
Tecnologia, criado em 2012 por Pedro Passos Coelho para aconselhar o Governo.
Ironia: disseram-lhe que não conseguiriam renovar o contrato que tinha como
investigadora auxiliar num centro de investigação em Lisboa e teve de fazer as
malas e deixar o país. Foi em Setembro do ano passado. Aos 35 anos, Filipa
Marques tornou-se emigrante científica.
É no Centro para a Geobiologia da Universidade de Bergen, na
Noruega, que agora trabalha como geóloga marinha, exactamente na mesma área a
que se dedicava em Portugal, no Centro de Recursos Minerais, Mineralogia e
Cristalografia (Creminer) da Universidade de Lisboa, onde depois do
doutoramento tinha continuado como investigadora. Em termos de investigação, o
que agora trocou foram os campos hidrotermais oceânicos dos Açores pelos campos
do Árctico. “Por parte das pessoas do Creminer sempre fui bem acolhida. A minha
revolta – e vejo que é partilhada por outras pessoas – é com o Governo. Fizemos
tudo o que nos foi pedido – estudos, graduações… – e, no final, dizem-nos:
‘Temos pena, vão para outro lado, não há condições para vocês.’”
Ainda é cedo para tirar grandes conclusões, mas para já
Filipa Marques está feliz. “Adoro o estilo de vida nórdico. A sensação que
tenho é a de passar do caos e da desorganização para um sítio onde, de repente,
tudo funciona”, conta numa conversa telefónica, enquanto se reunia com colegas
num final de tarde para uma iniciativa de “knit and drink”, ou seja, conversar,
beber um copo e tricotar.
Não existe um estudo oficial digno desse nome sobre a
emigração científica portuguesa, vulgo "fuga de cérebros". “Não temos
números que nos indiquem fielmente quem está a sair do sistema”, admite o presidente
da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Miguel Seabra. “Obviamente que
tenho tido conhecimento de pessoas que se vão embora. Tentámos quantificar isso
minimamente. Não sei se os números são fiáveis, mas são surpreendentemente
poucos para as queixas que temos”, acrescenta o presidente da principal
instituição financiadora do sistema científico português e responsável pela
definição e execução das políticas de ciência.
Ainda que sem números fiáveis de quem parte, a seta também
está a vir no sentido de Portugal, sublinha Miguel Seabra, como diz mostrarem
os novos contratos, a cinco anos, com doutorados no concurso Investigador FCT.
“O Investigador FCT é uma imigração de alto nível, de competitividade a nível
internacional e que quer vir para Portugal.”
Entre os 369 investigadores FCT contratados, em 2012 e 2013,
48 estavam no estrangeiro: “Não estando em Portugal, foi-lhes oferecido
contrato para trabalhar cá. Metade destas pessoas que vem trabalhar para
Portugal não é portuguesa e fez carreira fora. Sem este mecanismo do
Investigador FCT é que não tínhamos sequer possibilidade de trazer estas quase
50 pessoas”, defende Miguel Seabra. “Mesmo que o vector seja ainda no sentido
de sair de Portugal, há pelo menos uma seta no caminho inverso.”
Cerca de 25 mil precários?
Também não são muitos os dados sobre os percursos
profissionais dos investigadores portugueses – se estão a trabalhar em
investigação, que vínculos laborais têm, se deixaram a ciência, se estão no
desemprego ou emigraram. O último inquérito à situação dos doutorados em
Portugal é de 2009 e refere-se apenas aos doutorados a trabalhar em Portugal.
Feito pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEG),
juntamente com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE) e o Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat), estimava uma
diferença de 373 pessoas entre o total de doutorados (19.034) e o número dos
que estão empregados. Não se sabia assim o que aconteceu a esses 373: se
estavam desempregados, se saíram do país ou já não eram cientistas.
Para lá do desemprego, a precariedade de emprego científico
é um problema em Portugal, que atingirá cerca de 25 mil investigadores a tempo
integral, segundo estima Frederico Carvalho, físico aposentado do Instituto
Tecnológico e Nuclear, em Sacavém, e presidente da associação Organização dos
Trabalhadores Científicos. “Praticamente metade da força trabalhadora
científica é precária”, frisa. “Os bolseiros na sua maioria não têm nenhum
contrato de trabalho. Pelo menos, os estudantes de doutoramento e os
investigadores em pós-doutoramento deveriam ter contratos de trabalho, com
direito a reforma e a apoio na doença. Existe alguma coisa para os bolseiros,
mas é muito fraca.”
A trabalhar em Portugal havia 50.694 investigadores em tempo
integral, segundo os últimos dados, ainda preliminares, do Inquérito ao
Potencial Científico e Tecnológico Nacional relativo a 2012. No inquérito de
2011, referia-se que entre os mais de 50 mil cientistas no país havia 26.175
doutorados.
Os últimos números permitem também perceber que, nos últimos
dez anos, 2012 foi o ano em que menos empregos científicos se criaram no país.
O número de investigadores contratados cresceu apenas 1% face a 2011,
contrastando com os 8% que tinha subido no ano anterior. Os melhores anos já
estão, porém, mais longe: de 2005 para 2006, os cientistas empregados
aumentaram 17%, e de 2007 para 2008 quase duplicaram (43%).
O abrandamento dos empregos criados para investigadores é
coerente com os retratos conhecidos e fazem antecipar resultados mais negativos
nos próximos anos. Quem não tem emprego acaba por escolher mais facilmente o
caminho da emigração. Histórias como estas chegam com muita frequência ao
conhecimento de André Janeco, presidente da Associação dos Bolseiros de
Investigação Científica (ABIC), através de emails ou nas reuniões feitas com os
núcleos de investigadores a nível nacional. “Uma bolsa devia ser um patamar
para um novo emprego, mas não é.”
Como investigadora do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, Ana Delicado lamenta que, depois do inquérito de 2009
da DGEEG, não tenha sido feito um novo estudo sobre o percurso profissional dos
cientistas portugueses. “Podia ter havido a vontade de voltar a fazer um
inquérito, que nem sequer é uma coisa muito cara. Mas também me parece que não
há grande interesse em monitorizar a situação”, diz a investigadora que, em
2009, terminou o pós-doutoramento acerca da mobilidade internacional dos
cientistas portugueses. Na altura, concluiu que havia em Portugal 80 doutorados
no desemprego.
Ana Delicado inquiriu investigadores portugueses que estavam
no estrangeiro e concluiu que a maioria tinha “expectativas de voltar ou tinha
acabado de voltar” ao país. Mas esses eram tempos de crescimento no sector
ainda. Hoje, a situação é diferente, antecipa. “Algumas pessoas que entrevistei
já se foram embora para o estrangeiro e outras estão desempregadas.”
Diáspora científica
Não se conhece assim a situação real de quantos partiram do
país e de quantos vieram para cá, portugueses ou estrangeiros. Mas há sempre
alguém que conhece alguém que já partiu. Só Filipa Marques enumera, de uma
assentada, mais de uma dezena de partidas só nos últimos dois anos. Uma colega
geóloga do Creminer foi para Macau, com o marido, biólogo, e os filhos. Outra,
do Centro de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
(FCUL), foi para o sultanato de Omã com o marido, também geólogo (“Acabou o
doutoramento, candidatou-se no ano passado a um pós-doutoramento, não teve
bolsa, o marido teve uma proposta interessante em Omã e lá foram os dois mais
os catraios”). Ainda outra colega geóloga, depois de umas quantas bolsas de
investigação da FCT para trabalhar em projectos da FCUL, partiu para o Reino
Unido (“Não via cá qualquer perspectiva”). Vários do Departamento de Geologia
da FCUL tiveram Angola como destino e um outro, “depois do doutoramento, sem
perspectivas cá”, rumou para a Austrália.
Da equipa que trabalhava com o robô submarino português, o
ROV Luso, como aliás Filipa Marques, houve também três saídas, de engenheiros e
biólogos, para o estrangeiro. Fala ainda de um biólogo doutorado do Centro de
Oceanografia da FCUL que abalou para França. “E tinha dois colegas Ciência 2008
[contratos a cinco anos para doutorados, que terminam agora], um catalão e uma
francesa, que rumaram aos seus países depois de perceberem que não havia
perspectivas de futuro”, remata Filipa Marques.
“Tenho muitos amigos na mesma situação, é só abrir a lista
telefónica”, comenta, por sua vez, José Carlos Fonseca. Doutorado há um ano e
meio pela Universidade de Cambridge, este físico está a ultimar a saída do
país. Conversou com o PÚBLICO num intervalo da “epopeia” para a obtenção do
visto que lhe permitirá a entrada na África do Sul, a partir de Março.
Depois do doutoramento no Reino Unido, tentou regressar a
Portugal. Candidatou-se a uma bolsa de pós-doutoramento da FCT. Há um ano soube
que não foi aprovado, mas não ficou frustrado. “Admito que a proposta não era
suficientemente boa.” Este ano aconteceu o mesmo, mas o sentimento é diferente.
“Agora acho que fui injustiçado.”
A proposta que a FCT decidiu não apoiar é a mesma que duas
outras instituições na África do Sul entenderam merecedoras de uma bolsa de
pós-doutoramento. Com “o mesmo orientador e o mesmo tipo de trabalho”. Mas o
que em Portugal não vingou foi disputado pelos sul-africanos, ao ponto de José
Carlos Fonseca ter podido escolher entre as duas bolsas a que lhe dava melhores
condições. “É irónico”, comenta.
Já Alexandra Cunha está no Reino Unido desde Novembro de
2012, onde é consultora da Comissão Conjunta para a Conservação da Natureza,
que coordena este trabalho e aconselha o governo do país. Mudou-se para
Peterborough, a norte de Londres. Parece que voltamos a ouvir Filipa Marques:
“Gosto muito do que faço, do ambiente de trabalho e de estar num local onde as
coisas estão organizadas e funcionam. Apesar de estrangeira, fui recebida de braços
abertos e rapidamente integrada.”
Formada em Biologia na Universidade de Aveiro, Alexandra
Cunha tem uma experiência larga em investigação e conservação de habitats
marinhos. Foi técnica superior do Parque Natural da Ria Formosa, ao mesmo tempo
que fazia um mestrado em Gestão Costeira na Universidade do Algarve, onde se
especializou em pradarias marinhas.
Depois foi para os Estados Unidos, onde fez o doutoramento
em Gestão da Floresta e da Vida Selvagem, antes de regressar a Portugal. Voltou
em 2000, para trabalhar no Centro de Ciências do Mar, como pós-doutorada. Teve
uma bolsa de pós-doutoramento durante seis anos. Trabalhou mais cinco anos em
investigação, conservação e gestão de pradarias marinhas: foi ainda convidada
para coordenar um projecto europeu LIFE Biomares de gestão e recuperação do
habitat do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha (Arrábida), também com uma
bolsa.
“Estive 12 anos em Portugal e nunca houve abertura para
concorrer a lugar nenhum que desse continuidade ao meu trabalho. Isto, claro,
por melhor que fosse o meu trabalho”, desabafa. Há dois anos, depois de ter
concorrido a vários projectos e bolsas que não foram financiados, desistiu.
“Dado o panorama em Portugal, decidi procurar emprego fora.” Concorreu para a
Austrália, Moçambique, Brasil e Inglaterra, onde acabou por encontrar emprego.
Nesta recente diáspora de cientistas portugueses, o centro
norueguês de investigação onde está Filipa Marques tinha recebido outra
portuguesa um pouco antes da chegada dela, uma bióloga da Universidade dos
Açores especialista em esponjas marinhas. “Veio na mesma situação que eu,
revoltada.”
A diferença entre cá e lá? “No Creminer estava sozinha, era
a única investigadora jovem que não era professora da universidade a trabalhar
nesta área. Aqui faço parte de uma equipa de gente com diferentes backgrounds.
Há sempre alguém que sabe algo que não sei e pode ensinar-me. A Noruega aposta
na investigação do mar”, responde Filipa Marques. Exemplificando: o centro de
investigação onde está obteve financiamento norueguês para comprar um veículo
submarino operado à distância (ROV), para mergulhar a pelo menos quatro mil
metros, e está a preparar-se a próxima missão para ele, em busca de fontes
hidrotermais no Árctico.
“Não é um país de luxos, trabalha-se bem e vive-se bem.
Precisava de paz para poder trabalhar e não estar preocupada com contas para
pagar e se no próximo mês vou receber. A insegurança, com que a FCT tinha
tentado terminar, voltou agora. Ninguém confia nos anúncios da FCT, que não os
cumpre. Essa insegurança está a levar as pessoas para fora [do país].”
“Claro que não penso regressar”
Para já, é na Cidade do Cabo que os próximos três anos da
vida de José Carlos Fonseca serão passados, dando seguimento ao seu projecto:
estudar a forma como evoluiu a distribuição da matéria no Universo primordial,
usando a radiação das primeiras nuvens de gases e poeiras.
Para isso vai estar integrado no SKA, o primeiro telescópio
intercontinental cujas antenas vão espalhar-se por África do Sul, Moçambique,
Austrália e Nova Zelândia. “Não sei o que vai acontecer a seguir”, diz,
lamentando “a falta de oportunidades para se fazer ciência em Portugal.”
“Estamos a ser expulsos por falta de opções.”
Sem rodeios, Alexandra Cunha diz o que planeia para o seu
futuro: “É claro que não penso regressar a Portugal. Sinto muitas vezes que fui
posta de castigo e no que terei feito de errado para merecer ter de sair do meu
país.” Não tem interesse em voltar a uma situação de trabalho precário e a
centros e investigação ou a instituições com fortes constrangimentos
financeiros e operacionais. Isto, apesar de trabalhar em biologia marinha e o
mar fazer parte dos discursos políticos como uma das prioridades do país. “Não
passam de intençõe, e não tem sido feito nada para isso. Em Inglaterra investem
muitíssimo no mar. Só na minha equipa somos cerca de 90 pessoas a trabalhar
como assessores só na área marinha offshore.” Parece que ouvimos de novo Filipa
Marques.
“É normal haver mobilidade de cientistas, não é isso que me
choca, mas o que vemos agora é que a mobilidade se faz toda num sentido. Todos
partem e nenhum fica”, lamenta também Filipa Marques. “A média de idade dos
professores do Departamento de Geologia em Lisboa é de 50 e tais. Não há massa
crítica de jovens investigadores do departamento. Os poucos alunos de
doutoramento e pós-doutoramento contam-se pelos dedos da mão. E esses em breve
também vão partir assim que acabarem as bolsas.” Filipa Marques dixit, enquanto
na Noruega continua a tricotar um cachecol bege – “em pura lã norueguesa”. Com
Nicolau Ferreira
Carta aberta ao senhor ministro da Educação e Ciência
19/01/2014 – in Público
O frágil e muito promissor edifício da investigação
científica construído em Portugal nas últimas décadas está em risco. Risco
sério: porque poderemos a breve prazo vir a recuar para ocupar de novo o lugar
na cauda da Europa. Centros, laboratórios, programas de investigação e
candidaturas a bolsas têm sido afectados por cortes brutais de financiamento
público, capazes de provocar descontinuidades e impor bloqueios. Mas o pior é
que este recuo pode não estar associado apenas à crise financeira que o país
atravessa e que obviamente compreendemos, mas a opções numa área que representa
muito pouco na despesa do Estado – e dos fundos estruturais da União Europeia,
sublinhe-se – e é uma alavanca decisiva para a modernização de Portugal.
Em paralelo, os critérios e os processos de avaliação dos
concursos da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) têm-se revelado pouco
claros e transparentes. Sobretudo, a avaliação dos concursos de 2013 causou
situações de uma injustiça gritante que urge resolver. As constantes mudanças
de regulamentos, a falta de planificação, as permanentes alterações dos prazos,
e a confusão burocrática anexa, caracterizam infelizmente os programas que têm
sido lançados, ao que acresce o perigo de regresso a um modelo clientelar e não
meritocrático de avaliação pelo pares.
Será necessário perceber se a FCT tem uma estrutura
funcional capaz de dar conta do edifício científico. Para isso, será necessário
pôr o dedo na ferida e perceber até onde vai a falta de recursos, materiais e
sobretudo humanos, e como evitar uma excessiva dependência de calendários
circunstanciais impostos pelo Ministério das Finanças ou das apetências
clientelares pelo fundos estruturais que aí vêm. Ou seja, como pode a FCT criar
as condições de estabilidade para defender a autonomia da ciência?
Preocupa-nos também a desorientação geral com que têm sido
tratadas as candidaturas das mais jovens gerações. Partilham elas expectativas
e compromissos que são defraudados sem complacência. A geração situada entre os
30 e 40 anos – que se tem imposto pelos seus currículos de investigação guiada
pelos melhores padrões – corre o risco de ser varrida, perdendo-se o
investimento realizado nas últimas duas décadas e regressando-se ao atraso
paroquial de onde saímos há ainda muito pouco tempo.
Estamos conscientes que, quando as taxas de sucesso em
concursos públicos para a investigação (bolsas e projectos) baixam para números
risíveis, quase seria preferível não abrir os mesmos concursos. Mantê-los
equivale a continuar um simulacro de “excelência” e “internacionalização”, em
que por vezes o custo dos avaliadores acaba por ser superior ao número de
bolsas atribuídas. Ora, em “casa onde não há pão” e onde as regras deixam de
ser claras, criou-se todo um clima de suspeição, resultado directo do
desinvestimento e do reforço dos poderes das clientelas.
Os apoios à investigação dependem do reforço das boas
instituições e dos bons investigadores e projectos, avaliados correctamente e
por critérios rigorosos (outra conquista recente que nada tem a ver com a
existência de menores recursos). Acreditamos, pois, que seria fundamental, em
relação às instituições, recompensar as melhores e “reformar” as piores.
As carreiras de investigação como as de professor nas
universidades estão fechadas. E o modelo de crescimento das universidades e dos
centros de investigação, se existe, faz-se à custa de trabalho precário,
contratos de poucos anos, chegando até aos cinco meses para cobrir apenas o
semestre. Por sua vez, os riscos de não fomentar a autonomia e a liberdade na
criação da ciência são enormes, se não se respeitarem as diferentes escalas.
Por exemplo, a simples vinculação das bolsas individuais a projectos faz
desaparecer temas e objectos de enorme potencial inovador, que se não fazem
parte da agenda do “grande professor” não existem. A passagem de todas as
bolsas de doutoramento para as universidades elimina a liberdade de alguns
estudantes escolherem instituições internacionais de ponta nas suas áreas.
Também é de recear que as agendas de investigação, progressivamente dominantes
nos centros de investigação, sejam cada vez mais a agenda dos decisores
políticos de circunstância e dos naturais interesses que os apoiam. Por todas
estas razões, impõe-se a defesa da autonomia, da liberdade científica e da
investigação fundamental, guiada pela avaliação rigorosa da qualidade e do
impacto na comunidade e na sociedade.
Porque não aceitamos que se destrua o processo de criação de
um ensino superior feito no contacto permanente com a investigação científica,
lutamos pela autonomia, mas não podemos prescindir dos recursos financeiros que
a sustentam. Tão-pouco podemos aceitar que o futuro das gerações mais jovens de
investigadores altamente qualificados fique hipotecado e seja, pura e simplesmente,
espatifado.
É natural que, num período de crise, os escassos recursos
sejam canibalizados pelos interesses mais poderosos e o próximo exercício dos
fundos da União Europeia vai torná-lo seguramente mais claro. Mas esperamos que
seja respeitado o consenso em torno da ideia de que o investimento em
investigação científica é, de facto, o mais rentável para que o desenvolvimento
do país não seja apenas aparente.
Manuel Sobrinho Simões, António Costa Pinto, Diogo Ramada
Curto
Investigadores e professores universitártios
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