Dieudonné, que se defende com o direito à liberdade de
expressão, é filho de um camaronês e de uma francesa. Foi condenado várias
vezes por incitação ao ódio racial e está habituado a provocar polémica com
declarações sobre os judeus, Israel e os Estados Unidos. Mas a polémica nunca
foi tão grande como agora, alimentada pela popularidade que ganhou a quenelle,
que organizações judaicas interpretam como uma saudação nazi invertida.
As judiarias de Dieudonné M'bala M'bala
Por Sara Sanz Pinto
publicado em 11 Jan 2014 in (jornal) i online
O espectáculo do humorista agendado para quinta-feira foi
cancelado por intervenção do governo francês pouco antes de subir ao palco em
Nantes
"Quando ouço o Patrick Cohen [jornalista judeu]
falar... penso para mim mesmo... câmaras de gás... que pena!" Foram piadas
deste tipo que fizeram com que Dieudonné M'bala M'bala não pudesse actuar na
quinta-feira à noite em Nantes. O espectáculo que iria inaugurar a sua Tour de
France foi cancelado poucas horas antes de começar, no mesmo dia em que um
tribunal local tinha anulado a decisão que o proibia de continuar com as suas
controversas actuações.
O limbo judicial fez com que a confusão se instalasse à
porta do teatro Zenith, com a polícia a bloquear a entrada do edifício e as
pessoas que tinham comprado os ingressos (segundo o "Independent",
cerca de 6 mil, ao preço de até 43€, já tinham sido vendidos para a sua
performance na cidade no oeste de França) a protestarem.
Condenado várias vezes por incitar ao ódio racial ou ao
anti-semitismo durante os seus espectáculos, o comediante de 47 anos também
popularizou o gesto conhecido por "quenelle", que segundo o ministro
francês do Interior, Manuel Valls, é uma "saudação nazi invertida". A
tensão criada no país com as provocações de Dieudonné tem dominado a
comunicação social francesa, levantando questões polémicas em torno da
liberdade de expressão e do anti-semitismo no país. O dia de quinta-feira é uma
boa prova disso: a proibição da actuação envolveu várias autoridades, que vão
desde o Conselho de Estado (o mais alto órgão administrativo do país), passam
por Nantes e um tribunal da cidade e chegam a Valls, que quer que o cómico seja
afastado de todos os palcos de França, denunciando o que classifica de
"mecanismos de ódio" transmitidos ao público.
Na quinta-feira à tarde, apoiando-se no "risco para a
segurança pública" e depois de o ministro do Interior ter pedido
"firmeza e determinação" face à polémica, o Conselho de Estado
decidiu cancelar o espectáculo que iria ser mais um "ataque grave"
aos valores fundamentais franceses. Por seu turno, Dieudonné - que horas antes,
quando conhecida a decisão do tribunal em Nantes de não proibir a sua actuação,
escreveu na sua página de Facebook "Ganhámos!" - não se pronunciou e
apenas pediu aos fãs para evitarem confrontos e irem para casa a cantar a
Marselhesa, o hino nacional francês. Ontem interpôs um recurso após a proibição
do executivo.
Segundo a Constituição francesa, o governo não pode (pelo
menos em teoria) proibir performances teatrais. Esse tipo de questões é da
responsabilidade das câmaras municipais e as decisões são tomadas com base em
considerações locais. Além da passagem por Nantes, vários espectáculos estavam
agendados para outras cidades do país. No entanto, uma circular emitida na
segunda-feira pelo ministro do Interior deixou os autarcas com pouca margem de
manobra e, no dia seguinte, o espaço que restava foi ocupado pelo presidente
francês, François Hollande, que pediu a todos os responsáveis para serem
"vigilantes e inflexíveis" na implementação das directrizes.
Para Valls, as actuações de Dieudonné, que ridicularizam o
Holocausto e acusam os judeus de controlarem o mundo, deixaram de ser
artísticas e cómicas e passaram a representar uma manifestação política de
extremismo.
UM NOVO ANTI-SEMITISMO A virada de Dieudonné, que começou
cedo a sua carreira com piadas sobre o declínio moral e a alienação social da
sociedade francesa, ao lado de Elie Semoun, um amigo de infância judeu,
aconteceu no início de 2002, em duas entrevistas separadas, quando comentou que
preferia "o carisma de Bin Laden ao de George W. Bush" e que o
judaísmo era "uma farsa".
Inicialmente, os seus comentários foram tidos como uma
sátira bizarra, mas gradualmente foi-se tornando claro que Dieudonné queria
dizer o que dizia. Ninguém sabe por que desenvolveu esta obsessão. Muitos dos
seus críticos especulam que usou o anti-semitismo como uma forma de aumentar a
sua riqueza e fama, mas isso é pouco provável, uma vez que já estava no auge da
carreira antes da sua revelação política e das posições extremas que lhe
custaram muitos papéis convencionais em cinema e televisão.
"Penso que o Dieudonné tem uma intuição bastante
aguçada para os movimentos de opinião pública e procurou de imediato
instrumentalizar este anti-semitismo repugnante na opinião pública ao trazê-lo
para os seus espectáculos, como uma provocação popular e um meio de se conectar
com as pessoas a nível visceral. O Dieudonné é um provocador, ele existe
através da provocação", explicou à "New Yorker" Pierre-André
Taguieff, especialista francês em racismo.
Em Fevereiro de 2007, o humorista passou um
"fim-de-semana de resistência" (resistência à conspiração sionista)
em Teerão, onde disse, em entrevista à televisão iraniana, apoiar o programa
nuclear e a oposição do então presidente do país, Mahmoud Ahmadinejad, à hegemonia
americana. As suas posições políticas têm sido motivo de desilusão para muitos
dos seus colegas que não entendem a razão de tanta polémica. "Não sei
explicar o que aconteceu com Dieudo a não ser problemas psicológicos profundos
combinados com o facto de que, uma vez tendo escolhido ir por este caminho, é
impossível voltar atrás", explicou Ariel Wizman, um DJ francês,
acrescentado que, quando o conheceu, era uma pessoa "muito engraçada,
irónica e inteligente".
O aparecimento do novo Dieudonné coincidiu com o maior
aumento da violência anti-semita em França desde a Segunda Guerra Mundial, país
que conta com a maior comunidade judaica (cerca de meio milhão) depois de
Israel e dos Estados Unidos. Paris teve primeiros-ministros judaicos como Léon
Blum e Pierre Mendès-France e grandes figuras da política francesa incluem
judeus como Dominique Strauss-Kahn, o antigo ministro das finanças, Laurent
Fabius, antigo chefe de governo, ou Nicolas Sarkozy (cujo avô era judeu),
antecessor de Hollande.
"Dieudonné é o porta-voz, o padrinho, o ícone de um
novo tipo de anti-semitismo", defende Alain Finkielkraut, filósofo que se
debruça sobre a identidade judaica. "É um anti-semitismo explicitamente
anti-racista, que inverte o anti-semitismo tradicional ao argumentar que os
nazis de hoje em dia são os judeus. O idioma do anti-semitismo já não é o
racismo, é agora o anti-racismo. Os seguidores do Dieudonné dizem que não
odeiam os judeus, odeiam o racismo dos judeus. Dizem que Israel é como o
nazismo, como o Apartheid", conclui.
Em Dezembro de 2003, o cómico que ataca sobretudo o
capitalismo judeu apareceu no talk-show sobre política "You Can't Please
Everyone", com um casaco camuflado, uma máscara de ski preta e um chapéu
judeu ortodoxo com os dois cachos de cabelos (falsos) laterais característicos
da facção religiosa e convidou a audiência a juntar-se "ao eixo
américo-sionista, o único que oferece felicidade e o único onde há a hipótese
de viver um pouco mais". Concluiu o discurso levantando o braço e gritando
"Isra-heil".
CONTAS COM O PASSADO "Olá palhaço! Aqui é o pequeno
judeu", escreveu o seu colega Elie Semoun numa carta aberta publicada no
"Libération" em Fevereiro de 2004. "Escrevo-te para te dizer que
gosto de ti e que estás a magoar-me. Não és mais a pessoa que conhecia e com
quem me ria mais do que com qualquer outra pessoa. Tu e eu brincávamos com toda
a gente, as pessoas adoravam... por isso é que me sinto tão traído, não és o
mesmo Dieudo", concluiu.
Dois meses depois, começou um espectáculo intitulado
"Mes Excuses" cujo propósito era tudo menos redimir-se. Já em 2005 e
com o mesmo show na Argélia, Dieudonné deu uma conferência de imprensa onde
afirmou que os que estavam no poder em França (aqui referia-se em particular ao
então primeiro-ministro, Jean-Pierre Rafarrin) eram forçados a "lamber o
cu" da CRFI, a maior organização judaica francesa e chamou ao grupo
"a máfia que controla a república". Também afirmou que "o lobby
sionista cultiva a ideia de sofrimento único" e, segundo um site já extinto,
ProcheOrient.info, referiu-se à Shoah (Holocausto) como "pornografia
fúnebre", o que armou uma confusão.
Dominique Perben, o então ministro francês da Justiça,
ordenou a abertura de um inquérito às declarações do humorista e, quando
regressou a casa, Dieudonné explicou que tinha sido mal interpretado.
"Nunca fiz essa afirmação, que é um insulto para a memória do Shoah e
contra a lei", disse, sublinhando que se referia às comemorações do
Holocausto e não ao Holocausto em si.
IDEOLOGIAS Filho de um pai natural dos Camarões e de mãe
francesa, Dieudonné (nascido em 1966 nos arredores de Paris) começou a sua
carreira a lutar contra a Frente Nacional, partido de extrema-direita
anti-imigração. Mais tarde mudou de ideias e tornou-se próximo de Jean-Marie Le
Pen, fundador do partido, pai de Marine Le Pen, actual líder da FN, e padrinho
de uma das quatro filhas do humorista. "As liberdades dos franceses estão
constantemente a ser atacadas por este governo socialista", comentou Le
Pen esta semana. "Já nem rir nos deixam."
Em declarações à "New Yorker", Philippe Val, herói
da esquerda francesa e editor do semanário satírico "Charlie Hebdo",
disse que Dieudonné "nos leva a transgredir a grande base da nossa cultura
e política - o conhecimento que construímos sobre as ruínas de Auschwitz. Fomos
construídos sobre isso. A democracia moderna europeia começou a partir daí. Se
quiser deitar tudo abaixo, o gesto destrutivo anarquista máximo, não há melhor
sítio por onde começar".
Em Fevereiro de 2006, Ilan Halimi, um rapaz de 23 anos que
vendia telemóveis, foi encontrado nu e algemado, perto de uma estação de
comboios em Paris. O seu corpo apresentava queimaduras e sinais de tortura e
morreu a caminho do hospital. Segundo a polícia, os responsáveis pelo crime
eram membros de um grupo conhecido por "gangue de bárbaros", que
atacou Halimi por ser judeu e que, como disse um deles na hora do
interrogatório, os "judeus têm dinheiro".
Grupos que monitorizam o anti-semitismo disseram que as
palavras "de um alegado comediante" tinham influenciado os homicidas
e um porta-voz do partido socialista francês e fundador do S.O.S. Racisme
afirmou que a morte de Halimi resultou do "efeito Dieudonné". Num
comunicado divulgado pouco depois, o humorista responsabilizou o neoliberalismo
"que estabelece o culto do lucro como valor da sociedade" e à
"influência americana".
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