OPINIÃO
Praxes: igual à máfia?
VASCO PULIDO VALENTE 25/01/2014 in Público
Os seis mortos da praia do
Meco (e o único sobrevivente dessa excursão nocturna) frequentavam a
Universidade Lusófona. Todo o mal vem daí.
As dúzias de instituições que se declararam “universidades”
não tinham qualquer espécie de semelhança com a verdadeira coisa. Os
professores eram, de maneira geral, pequenas personagens do antigo regime,
muitas sem qualificação bastante e quase todas para além da idade de aprender e
mudar. A maioria do chamado “corpo estudantil” fora antes rejeitado pelo Estado
e pagava uma exorbitância pelo “ensino” que recebia. Cada “universidade
privada”, fosse de que forma fosse, acabava por se tornar um negócio, a favor
de obscuras direcções que não dependiam de nenhuma autoridade idónea. Mas, no
meio disto, precisavam de prestígio.
Para o “prestígio” escolheram usualmente três caminhos:
grandes cerimónias, imitadas de universidades medievais; trajos de professores
de grande pompa e circunstância; e uma total liberdade para as “praxes”. Numa
altura em que pelo Ocidente inteiro se abandonavam as “praxes” pela sua
brutalidade e pela sua absoluta falta de sentido no mundo contemporâneo,
Portugal adoptou com entusiasmo essa aberração. Tanto as direcções como os
professores não abriram a boca e menos puniram os delinquentes, que de resto não
se escondiam e até se gabavam. Do Minho ao Algarve nasceu assim uma nova
cultura, cada vez mais sádica e tirânica, que variava na proporção inversa da
qualidade académica da instituição em que se criara. Nas cidades chegou ao seu
pior.
Parece (não garanto) que a PJ descobriu que os mortos do
Meco estavam a cumprir um ritual “praxístico”, sob a direcção de um dux (um
nome roubado a Coimbra), quando foram arrastados por uma onda. Parece também
que nenhum deles trazia consigo um telemóvel, provavelmente para impedir que
pedissem protecção, se o dux ultrapassasse as marcas. Entretanto, corre por aí
que essa personagem sofre de uma “amnésica selectiva” e que nenhum aluno da
Lusófona revelou ainda à polícia as regras secretas da “praxe” local (“Grande
Conselho” incluído). Pior do que isso, na Internet já apareceram ameaças a quem
“falar”, tal e qual como na máfia. O sr. ministro da Educação, depois de tantas
trapalhadas, devia agora tratar da sua enegrecida reputação com um gesto limpo:
fechar a Lusófona e punir os responsáveis que deixaram crescer a barbaridade
das “praxes”.
A abjecção das praxes
JOSÉ PACHECO PEREIRA 25/01/2014 – in Público
A praxe mata, às vezes o corpo, mas sempre a cabeça.
É-me pessoalmente repugnante o espectáculo que se pode ver
nas imediações das escolas universitárias e um pouco por todo o lado nas
cidades que têm população escolar, de cortejos de jovens pastoreados por um ou
dois mais velhos, vestidos de padres, ou seja, de “traje académico”, em
posturas de submissão, ou fazendo todo o género de humilhações em público, não
se sabe muito bem em nome de quê.
Há índios com pinturas de guerra, meninas a arrastarem-se
pelo chão, gente vestida de orelhas de burro, prostrações, derrame de líquidos
obscuros pela cabeça abaixo, e uma miríade de signos sexuais, e gestos de
carácter escatológico ou coprológico, que mostram bem a fixação dos rituais da
praxe numa idade erótica que o dr. Freud descreveu muito bem.
Talvez pelas alegrias de ser vexado, o objectivo do coma
alcoólico é muito desejado e o mais depressa possível. De um modo geral está
quase tudo em adiantado estado de embriaguez, arrastando-se ao fim do dia pelos
sítios mais improváveis, bebendo aquelas bebidas como os shots que são o
atestado de que não se sabe beber, um álcool forte seja ele qual for, absinto,
vodka ou cachaça e um licor ou sumo ultradoce para ajudar a engolir. Os nomes
dos shots, do popular “esperma” ao “orgasmo”, passando pelo B-52, “bomba atómica”,
"vulcão”, “bomba”, “Singapura”, “broche”, “inferno”, “chupa no grelo”,
"Kalashnikov”, “levanta-mortos” ao “vácuo” (muito apropriado), fazem parte
da cultura estudantil da Queima e da praxe. Por cima disso tudo, hectolitros de
cerveja, a bebida que o nosso diligente ministro da Economia conseguiu retirar
da proibição de servir bebidas alcoólicas a menores, um exemplo do que valem as
ligações políticas de um gestor no seu sucesso como empreendedor.
A praxe mata, já tem matado, violado e agredido, enquanto
todos fecham os olhos, autoridades académicas, autoridades, pais, famílias e
outros jovens que aceitam participar na mesma abjecção. Já nem sequer é preciso
saber se os jovens que morreram na praia do Meco morreram nalguma patetice da
praxe, tanto mais que parece terem andado a seguir uma colher de pau gigante,
fazendo várias momices, uma das quais pode ter-lhes custado a vida. Eu
escreveria, como já escrevi noutras alturas, o mesmo, houvesse ou não houvesse
o caso do Meco. (Aliás, é absurdo e insultuoso para a dignidade de quem morreu
o espectáculo de filmes de telemóvel e entrevistas que as televisões têm
passado, mas isso é outro rosário, da nossa estupidificação colectiva…)
Tenho contra a praxe todos os preconceitos, chamemos-lhe
assim, para não estar a perder tempo, da minha geração. A praxe quando estava
na faculdade era vista como uma coisa de Coimbra, um pouco antiquada e parola,
de que, felizmente, no Porto e em Lisboa não havia tradição. No Porto, onde
estudava, havia um cortejo da Queima das Fitas e a percentagem de estudantes
vestidos de padres com capa e batina aumentava por uma semana, mas durante o
ano era raro ver tal vestimenta. A situação era variável de escola para escola,
mas a participação em actividades ligadas com a praxe era quase nula. Aliás,
qualquer ideia de andar a “praxar” os estudantes do primeiro ano era tão
exótica como a aparição de um disco voador na Praça dos Leões. Infelizmente
muitos anos depois, apareceu uma verdadeira flotilha. Em Lisboa, muito menos,
nada. Depois, outro enxame de discos voadores com padres de capa e batina.
Quando se deu a crise em Coimbra em 1969, a contestação à praxe
acentuou-se, embora algumas “autoridades” da praxe, como o dux veteranorum,
tenham apoiado a luta estudantil. Se em Coimbra a Queima das Fitas foi
contestada, porque violava o “luto académico”, no Porto, as tentativas de a
manter acabaram em cenas de pancadaria com grelados e fitados até que
progressivamente desaparecerem do mapa. Tornava-se então evidente que o
nascente conflito sobre a Queima no Porto se tinha tornado politizado entre uma
universidade que as autoridades da ditadura cada vez menos controlavam e a
tentativa de encontrar, por via da praxe, uma forma de resistência ao movimento
associativo e estudantil. As últimas lutas mais importantes no Porto, como a
contestação do Festival dos Coros, com as suas prisões em massa, tinham
colocado as praxes e a Queima das Fitas do lado do regime e provocaram um longo
ocaso das suas manifestações. Até um dia.
Eu participei nessas escaramuças políticas, mas também
culturais, e escrevi alguns panfletos, incluindo um, Queimar a Queima, que
circulou pelas três universidades em várias versões e edições. Mas, na luta
contra a praxe, tornava-se cada vez mais evidente já nessa altura que estava em
causa não apenas a conjuntura desses anos de brasa estudantis, mas também uma
recusa da visão lúdica e irresponsável da juventude, e que, se se tratava de um
rito de passagem, era para a disciplina da ordem e da apatia política. Rallies,
touradas, bailes de gala, beija-mão ao bispo na bênção das pastas – tudo
acompanhado pelas autoridades académicas muito contentes com a “irreverência”
dos “seus” jovens, quando ela se manifestava naquelas formas – eram muito mais
uma introdução à disciplina do que o despertar de qualquer consciência crítica.
No fundo, o que se pretendia era que houvesse uma “explosão” de inanidades, a
que depois se seguiria a disciplina da vida adulta, casamento, emprego, família
e filhos, ordem social e hierarquia.
Ao institucionalizar a obediência aos mais absurdos
comandos, a humilhação dos caloiros perante os veteranos, a promessa era a do
exercício futuro do mesmo poder de vexame, mostrando como o único conteúdo da
praxe é o da ordem e do respeito pela ordem, assente na hierarquia do ano do
curso. Mas quem respeita uma hierarquia ao ponto da abjecção está a fazer o
tirocínio para respeitar todas as hierarquias. Se fores obediente e lamberes o
chão, podes vir a mandar, quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher
um chão ainda mais sujo, do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois
vingas-te.
Nos dias de hoje continua para mim evidente o papel deste
tipo de rituais na consolidação de uma vida essencialmente amorfa e
conservadora, desprovida de solidariedade e intervenção social e política,
subordinada a todos egoísmos e disponível para todas as manipulações. Aliás, a
evidente ausência do movimento associativo estudantil da conflitualidade dos
dias de hoje e a fácil proliferação das “jotas” nessas estruturas, tanto mais
eficaz quanto diminui a participação dos estudantes em qualquer actividade que
não seja lúdica (numa recente eleição na Universidade do Porto para um universo
de 32000 estudantes participaram 2000, em contraste com uma muito maior
mobilização dos professores num processo eleitoral do mesmo tipo), acompanham a
generalização da submissão à praxe. De facto, a praxe mata, às vezes o corpo,
mas sempre a cabeça.
Historiador
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