Populismo,
ou o Frankenstein da democracia
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 12/09/2016 – PÚBLICO
O
populismo é uma criação, ainda que indesejada, dos partidos de
governo, à direita e à esquerda. Germinou ao longo de décadas.
1. Se Mary Shelley
(Mary Wollstonecraft Godwin) escrevesse hoje o Frankenstein, ou o
Prometeu Moderno, provavelmente o livro não reflectiria as angústias
de 1816. Escrito há duzentos anos, na Villa Diodati, em Cologny, nos
arredores de Genebra, em frente ao lago Léman, continua a
impressionar pela sua imaginação. A autora, uma jovem escritora
britânica com menos de vinte anos, concebeu uma obra invulgar e em
circunstâncias assaz curiosas. Um Verão anormalmente frio e
chuvoso. Uma proposta, de Lord Byron, para passar o tempo, durante
uma permanência forçada de três dias em casa: a escrita e leitura
recíproca de contos sobre fantasmas. Foi assim que o imaginário —
o sonho-pesadelo — de Mary Shelley passou ao papel. Deu lugar um
livro que rapidamente se tornou um clássico do romantismo e do
romance gótico. Todas as criações são, de alguma forma, reflexo
de uma vivência pessoal, mas, também, do espírito de uma época. A
época em que Mary Shelley imaginou o Frankenstein estava imbuída do
espírito do Iluminismo e da Revolução Industrial, bem como dos
avanços da ciência e da tecnologia. No início do século XIX, as
sociedades europeias viram os seus modos de vida tradicionais,
enraizados durante séculos, serem profundamente transformados. A
perversão da humanidade pela tecnologia, a desumanização provocada
pela maquinaria, os limites éticos à ciência foram os fantasmas
imortalizados na Villa Diodati por Mary Shelley. Naturalmente que
continuam a fazer sentido no século XXI, pela intensificação dos
avanços da ciência e tecnologia.
2. Numa versão
pós-moderna, os fantasmas de Mary Shelley poderiam ser outros. O
populismo seria um sério candidato a substituir o monstro criado
pela sua personagem, Frankenstein, enquanto estudante da Universidade
de Ingolstadt, na Alemanha. Agora é o espectro da democracia. (Para
uma análise comparativa do populismo, nas suas diferentes versões,
ver o livro editado por C. Mudde e C. R. Kaltwasser, Populism in
Europe and the Americas: Threat or Corrective for Democracy?,
Cambridge University Press, 2012). Claro que este imaginário é
irónico. Genebra é tanto a cidade do ficcional Victor Frankenstein
como do filósofo Jean-Jacques Rousseau, um dos pensadores que abriu
caminho às modernas ideias de democracia e soberania popular. Mas
podemos imaginar um novo enredo. O mundo feliz da democracia
representativa que se enraizou no pós-II Guerra Mundial, com o fim
dos totalitarismos fascista e nazi — assentando na alternância de
dois grandes partidos de poder, à esquerda e à direita —, foi
perturbado. Saídos das trevas, irromperam os partidos populistas. Na
Europa, não faltam candidatos a este Frankenstein que perturba a
democracia do establishment, com rostos masculinos e femininos.
Afinal estamos numa era de igualdade de género. A Frente Nacional
(FN) de Marine Le Pen, a Alternativa para a Alemanha (AfD) de Frauke
Petry, entre outros — ou ainda, num registo masculino, alternativo
e à esquerda, o Podemos de Pablo Iglesias —, são as novas
criações de um Frankenstein pós-moderno. Aterrorizam os “bons”
líderes e os seus “respeitáveis” partidos políticos. A esta
galeria de “indesejados” junta-se o populista-mor, Donald Trump,
nos EUA.
3. Até um passado
recente, o populismo não era um problema da Alemanha. O tradicional
sistema rotativo de partidos de poder mantinha-se impecável, com a
CDU / CSU (o centro-direita) e o SPD (o centro-esquerda), a captaram
a grande maioria do eleitorado. A implosão tinha ocorrido sobretudo
nos países mais duramente atingidos pela crise da Zona Euro —
especialmente a Sul mas também a Leste. Um pouco por todo o lado o
sistema ruía, mas isso era um problema dos outros. Nos últimos
meses tornou-se claro que a Alemanha não é uma excepção. O
Frankenstein do populismo despertou apenas um pouco mais tarde. Mas
veio para ficar. Primeiro, foram as eleições em Baden-Württemberg,
Renânia-Palatinado e Saxónia-Anhalt, no passado mês de Março, que
mostraram a irrupção eleitoral da AfD. Mais recentemente, foi a
eleição em Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. Nesse Estado
federado, a CDU passou para terceira força política, atrás da AfD.
Foi ultrapassada pela (extrema) direita populista. A decisão de
Angela Merkel, de abertura de fronteiras a refugiados / migrantes em
massa, iniciada no Verão de 2015 é, sem dúvida, louvável do ponto
de vista humanitário. Mas a política é um terreno complexo onde as
decisões podem ter múltiplas consequências, em diferentes áreas
da sociedade. Inadvertidamente, pode ter criado as condições
políticas para a implosão do sistema partidário da Alemanha do
pós-II Guerra Mundial.
4. A relação do
populismo com os partidos de governo faz lembrar a relação do
monstro com o seu criador no conto clássico de Mary Shelley. Victor
Frankenstein, imbuído de uma convicção da superioridade absoluta
da ciência moderna, julgou ter superado todos os ensinamentos do
passado. Idealizou a criação de corpo e mente humanas que seriam o
melhor, o mais perfeito ser. Acabou por criar um monstro. Não era
essa a criação pretendida, mas foi esse o resultado. Ao longo das
últimas décadas os partidos de governo imbuídos de uma ideologia /
utopia globalizadora e multicultural, convenceram-se da superioridade
absoluta da sua ideologia e valores. Estavam no caminho da sociedade
perfeita. Hoje, os resultados contradizem-nos. Criaram sociedades
mais desiguais, com a prosperidade material ameaçada, cheias de
conflitos culturais e cada vez mais inseguras. Surgiram, assim, as
condições políticas que põem em causa a sua tradicional
hegemonia. Incapazes de lidar com o seu falhanço, apontam o
populismo como causa maior da crise democrática. É, na melhor das
hipóteses, uma meia verdade. Esquecem a sua própria cegueira.
Esquecem que, muitas vezes, as suas decisões ignoraram a vontade da
maioria da população, em nome de uma ideologia e valores
apresentados como superiores. Se a população não os partilhava,
pouco importava. Corromperam, eles próprios, a lógica democrática.
Esquecem, por isso, a sua responsabilidade na criação do
Frankenstein populista. O populismo é uma criação, ainda que
indesejada, dos partidos de governo, à direita e à esquerda.
Germinou ao longo de décadas. Hoje tem vida própria e ameaça os
seus criadores.
Investigador
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