So
long, Mariana Mortágua
MANUEL CARVALHO
25/09/2016 – PÚBLICO
Se
o anti-capitalismo do Bloco vingasse, se o Governo desatasse a
tributar a eito fortunas, a opção do país por um regime que o
vincula à Europa, à democracia e à modernidade estariam em causa.
As milícias que
fazem a guarda do Governo tiveram esta semana uma lista de alvos
políticos para abater com a facilidade com que se caçam os patos. A
polémica desencadeada pelo anúncio de um novo imposto sobre o
património imobiliário deu lugar a uma emboscada que fulminou sem
piedade os delírios dos partidos da direita e concedeu ao tripé que
sustenta o Governo um novo fôlego para camuflar as suas divergências
internas. Nesta escaramuça liderada por Mariana Mortágua houve de
tudo: de devaneios à demagogia ou da dissimulação à meia-verdade,
pelo que sobrou pouco espaço para três questões essenciais: porquê
um imposto sobre os que têm mais riqueza patrimonial num país onde,
diz o Governo, não há austeridade? O que levou o Bloco a cavalgar o
imposto e a convocar o PS na sua luta contra o demónio do capital?
Por que razão reagiram o PSD e o CDS como se em causa estivesse o
fim do mundo?
Comecemos pelo fim.
Pela reacção destemperada da direita. As profecias sobre um novo
“saque” fiscal, sobre a chegada de um novo PREC ou os pavores
panfletários sobre o fim da economia de mercado são estúpidas e
risíveis. Cedo se percebeu que um imposto sobre o património dos
mais ricos faz afinal parte dos compromissos social-democratas que (o
perigoso estalinista) Pedro Passos Coelho tinha defendido no último
Congresso do PSD. De imediato se constatou que, afinal, Portugal está
entre os países da OCDE que menos tributam o património. No auge da
crise, em 2011, (o perigoso trotskista) Miguel Cadilhe propôs “uma
contribuição de 3 ou 4% sobre o património líquido” dos
portugueses mais ricos sem que os fundamentos da civilização
ocidental tivessem abalado. Ou seja, como se escrevia nesta coluna no
último domingo, num quadro de crise “vale mais taxar património
imobiliário acima do meio milhão de euros do que voltar a
sobrecarregar o IRS ou o IVA” ou de que “cortar nas prestações
sociais”.
Perante um cenário
destes, o discurso da direita sobre o advento dos papões atravessou
a tal linha vermelha a partir da qual os políticos tentam “fazer
de nós parvos”, como escrevia esta sexta-feira David Pontes no JN.
A parvoíce tem, no entanto, uma origem e uma explicação. Que nos
obriga a regressar ao início da polémica. Ao modo como o imposto
foi anunciado e ao contexto que o anúncio criou. Primeiro, ninguém
consegue entender por que há-de o Governo inventar impostos quando
se mantém firme e hirto nas suas convicções sobre o cumprimento do
défice este ano e no próximo e quando recusa dar ouvidos ao
Conselho das Finanças Públicas, à Unidade Técnica de Apoio
Orçamental, à Comissão Europeia ou ao FMI sobre a necessidade de
adoptar medidas adicionais para controlar o monstro. A menos que…
haja por aí uma armadilha. Uma manobra de propaganda que rende de
impostos talvez 60 milhões mas traz dividendos políticos muito mais
valiosos. É aqui que entra a estrela da semana. Mariana Mortágua.
O facto de ser uma
deputada de um partido que não integra o Governo a anunciar o
imposto é o mal menor da história - bem sabemos que o Governo é
uma construção sobre estacas cuja consistência exige a partilha de
protagonismo. O que é notícia é o que se segue, quando Mariana
Mortágua contextualiza o super-IMI num discurso que nos faz
regressar aos esplendorosos devaneios da extrema-esquerda. Ao dizer
que, "do ponto de vista prático, a primeira coisa que temos de
fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular
dinheiro", Mariana Mortágua recupera o facciosismo da luta de
classes e regressa ao doentio nós contra eles – “os ricos que
paguem a crise”, dizia-se no auge do PREC. Depois, ao convocar o PS
para pensar “até onde está disposto a ir para constituir uma
alternativa global ao sistema capitalista", desenterrou os
espantalhos de uma esquerda petrificada e enterrada pela História –
e pelos votos dos portugueses. Não havendo nem a China de Mao nem a
URSS de Estaline a servir como modelo, não se sabe bem o que é essa
“alternativa global”. Há quem diga, com maldade, que o modelo é
a Venezuela. Não será com certeza uma alternativa onde a democracia
liberal se possa encaixar.
O Bloco sempre
defendeu estas posições e as suas teses nunca tiraram o sono a
ninguém. Com a apologia de Mariana Mortágua, as coisas mudaram um
pouco. A sua inteligência aguda e a sua competência embrulhada numa
pose blasée tornaram-na numa qualificada herdeira de uma ortodoxia
anticapitalista bafienta que pode encontrar na crise terreno fértil
para medrar – como na Grécia ou na Espanha. Quando alguém com
este perfil anuncia um novo imposto em nome de um Governo ao qual não
pertence e depois o enquadra numa mundividência que a maioria
esmagadora dos portugueses recusa, temos um caso. Podemos recear a
contaminação do Governo que, sejamos justos, tem governado o país
com o programa eleitoral do PS. O Bloco (e o PCP) limitou-se a
aparecer na sua história a protagonizar o lobo que veste a pele do
cordeiro e agora tirou a pele.
É neste mapa que se
montou a cilada à direita. Mariana Mortágua lança o engodo com o
imposto e desata a dar porrada nos malandros dos ricaços instalados
nas sinecuras do capitalismo. Quem a escuta recebeu na última semana
notícias sobre a desigualdade dos rendimentos, ouviu falar sobre o
acréscimo da carga fiscal aos mais desfavorecidos e nem lhe passa
pela cabeça pagar mais IRS ou mais IVA. O discurso de Mariana faz
todo o sentido. Funciona. Para sorte do Governo e para azar da
direita, a maioria dos portugueses quer lá saber das ameaças
jacobinas e esquerdizantes. Como disse o Presidente numa notável
repetição do seu antecessor, a ideologia acaba onde começa a
realidade. Se um dia o Bloco chegar ao poder, lá terá de meter o
rabo entre as pernas como o Syriza. A única forma de combater as
fantasias do Bloco é através da racionalidade e da inteligência,
bens que, como se sabe, escasseiam na direita. A direita poderia
insistir que, no momento actual, o país precisa desesperadamente de
um discurso amigo das empresas e do investimento. Mas não. O PSD e o
CDS falaram do papão do comunismo.
Mariana ouviu de
tudo, não tremeu e consolidou-se como a nova musa do delírio
esquerdizante. O povo adora ilusões ciciadas em voz doce. O vazio da
oposição ajuda-a. Se o anti-capitalismo do Bloco vingasse, se o
Governo desatasse a tributar a eito fortunas, a opção do país por
um regime que o vincula à Europa, à democracia e à modernidade
estariam em causa. Mas isso pouco importa. Num país onde a riqueza é
um pecado, tirar aos ricos para dar aos pobres é uma mensagem
condenada ao sucesso. Daí o incómodo do PCP. Daí a irritação do
PS moderado. Daí o sucesso de Mariana. A patuleia com a fibra de
Maria da Fonte e a ousadia de Zé do Telhado sabe o que quer e sabe o
que faz. Enquanto o PS bater palmas, esperem por muito mais. So long,
Mariana.
Sem comentários:
Enviar um comentário