domingo, 25 de setembro de 2016

O livro de Saraiva e a hipocrisia dos jornalistas


O livro de Saraiva e a hipocrisia dos jornalistas

José Manuel Fernandes
26/9/2016, OBSERVADOR

O livro de Saraiva tem pouco valor histórico e comete pecados graves, mas se queremos falar de jornalismo não devíamos estar antes a discutir como o DN, o JN e a TSF são hoje usados por José Sócrates?

Não faço parte daquele grupo de activistas das redes sociais (e de colunistas de jornal) que se não se envergonha de escrever “não li esse livro, mas…”, desatando a seguir a proferir a maiores inanidades sobre o que não se conhece. Tratei por isso de ler Eu e os Políticos, de José António Saraiva (com quem trabalhei nos anos em que estive nos Expresso, já lá vão três décadas), antes de escrever fosse o que fosse. E devo dizer desde já que não alinho com a turba ululante. Passo a explicar.

Eu e os Políticos é um livro de memórias. Na verdade, é o terceiro livro de memórias do antigo director do Expresso e do Sol. Antes escreveu Confissões de um Diretor de Jornal [2003] e Confissões – Os Últimos Anos no Expresso, o Nascer do Sol e as Conversas com Políticos à Mesa [2006]. Também li esses dois livros. E, por isso, só posso ficar espantado pelo escândalo que agora se levantou em torno de José António Saraiva ter revelado conversas privadas, pois já o tinha feito nesses dois livros anteriores. Não o desculpo por isso, mas interrogo-me: será que a turba de indignados só agora o descobriu? Por outro lado, será que os políticos, que continuaram a almoçar com ele, não estavam avisados?

Matéria diferente são as passagens sobre a vida privada, até íntima, de alguns dos protagonistas. Nalguns casos, são inúteis e de evidente mau gosto – que adiante para a História, que Saraiva diz querer servir, saber que uma antiga secretária viu o rabo de Medina Carreira quando este levava uma injecção ou que um antigo namorado de Fernanda Câncio gostava de fotografias supostamente eróticas? Noutros são muito discutíveis, e quando digo discutíveis não o faço gratuitamente. Por exemplo: a orientação sexual de um dirigente partidário deve continuar a ser um tabu em Portugal, como é na generalidade dos países latinos, ou deve ser revelada (como Saraiva faz) como sucede na generalidade dos países anglo-saxónicos? Onde está a hipocrisia? E onde está o voyeurismo?

De resto, não se aprende muito com este livro, sobretudo para quem leu os anteriores, até porque alguns dos episódios são apenas contados de novo. Aprende-se sim com a indignação selectiva que ele suscitou. Por exemplo: ao lê-lo fiquei a saber que o jornalista do Expresso que cobria a Câmara de Lisboa era, numa determinada fase, quase íntimo do então presidente da autarquia; assim como soube que um outro jornalista do mesmo Expresso tinha relações de grande cumplicidade com um dos mais controversos políticos portugueses. Nada disso parece ter excitado os nossos “indignados”, porventura por esses dois jornalistas já se terem reformado. Ou talvez não, pois infelizmente conheço demasiado bem o corporativismo da minha classe para saber que também nela uma mão costuma lavar a outra.

Expurgado de uma dúzia das suas mais de 200 páginas o livro de Saraiva não teria levantado ondas e serviria apenas, como ainda serve, para acrescentar pormenores ao retrato de alguns políticos e da sua forma de actuar. Aí mantém algum interesse, nomeadamente quando recorda a forma como há quem minta com a mesma tranquilidade com que respira.

Mas adiante, que a onda de indignação suscitada pela obra tem uma vantagem: revela como a hipocrisia é moeda corrente entre nós. E como é fácil fazer tiro ao alvo contra alguém que já não tem poder e ficar calado quando as coisas são muito mais graves mas pode-se incomodar colegas e amigos.

Um bom exemplo daquilo a que me refiro é o que se passa no grupo Global Media, um dos maiores do país e proprietário do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF. A “indignação” de alguns dos jornalistas-colunistas desse grupo com o livro de Saraiva foi imensa. O que dá para ficar espantado, por causa dos telhados de vidros daquela casa. Por isso desculpem-se ser desmancha prazeres, mas num fim-de-semana marcada pelo protagonismo político de José Sócrates não é possível continuar a ignorar a passadeira vermelha de que continua a beneficiar naquele grupo de comunicação. Mas vamos a factos.

Primeiro facto. Sabemos hoje, graças à Operação Marquês, que José Sócrates teve um papel determinante na transferência de propriedade daquele grupo em 2014, poucos meses antes da prisão do ex-primeiro-ministro. A sua preocupação era controlar as direcções dos dois jornais, tendo, através do seu amigo e advogado Proença de Carvalho, defendido a nomeação de Afonso Camões para esses lugares. Esse jornalista, amigo de Sócrates, chegou mesmo a definir-se como um “general prussiano” que “não se amotina”, podendo ser um “joker” em qualquer posição de direcção. O actual director do Jornal de Notícias é, de resto, um amigo de longa data de José Sócrates, que o colocou em lugares tão importantes como a direcção da Lusa e que contou com a sua colaboração noutras “operações” (aí, refira-se, o livro de Saraiva revela alguns episódios curiosos sobre a acção de Camões que eu desconhecia).

Mas sabemos mais. Sabemos que Proença de Carvalho é hoje o homem forte da administração do grupo e que os órgãos de informação da Global Media têm sido utilizados, com pouco ou nenhum escrutínio, por José Sócrates para difundir as suas mensagens. Correndo o risco de me falhar alguma intervenção, fiz um pequeno levantamento – pequeno mas significativo:

27 de Novembro de 2014: Primeira mensagem de Sócrates depois da prisão, divulgada pela TSF (e pelo Público);
4 de Dezembro de 2014: Carta publicada no Diário de Notícias;
5 de Março de 2015: Carta escrita a partir do estabelecimento prisional de Évora e entregue ao Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, com críticas a Passos Coelho;
4 de Abril de 2015: Texto de opinião publicado no Jornal de Notícias;
8 de Junho de 2015: Declaração exclusive ao Jornal de Notícias sobre a recusa de pulseira electrónica;
12 de Junho de 2015: Declarações enviadas por escrito à TSF e ao Diário de Notícias;
30 de Junho de 2015: Entrevista conjunta ao Diário de Notícias e à TSF;
19 de Agosto de 2015: Carta enviada ao Jornal de Notícias (e à SIC);
19 de Junho de 2016: Texto de opinião publicado ao mesmo tempo no Jornal de Notícias e na TSF;
26 de Junho de 2016: Texto de opinião na TSF (não se encontram no site da TSF textos de opinião de mais nenhum político);
10 de Setembro de 2016: Texto de opinião no Diário de Notícias.
16 de Setembro de 2016: Entrevista à TSF sobre o juiz Carlos Alexandre.
Se a consulta dos arquivos não me pregou nenhuma partida, para além destas intervenções José Sócrates só deu mais uma entrevista nestes quase dois anos, a famosa (e controversa) entrevista em duas partes à TVI.

No que diz respeito ainda ao grupo Global Media refira-se ainda que os órgãos de informação que o integram recusaram publicar a publicidade do Correio da Manhã em que se criticava uma decisão judicial que, durante alguns meses, impediu aquele jornal de publicar informação relevante sobre a Operação Marquês.

Estes dados indicam que aquele grupo de comunicação tem servido ao ex-primeiro-ministro como plataforma para defender as suas posições, com privilégios de acesso únicos, quase absoluta ausência de escrutínio, tudo isto quando se sabe que ele interferiu, em 2014, na escolha das direcções editoriais e que tem o seu amigo e advogado como presidente do Conselho de Administração.


Contudo parece haver uma espécie de “conspiração do silêncio” que não questiona esta situação, isto enquanto fervem as indignações por causa de um livro que, na verdade, só põe por escrito aquilo que todos sabem sobre a vida privada de algumas figuras públicas. O povo pode gostar muito de mexericos (enquanto diz mal deles), mas certo, certo, é que falar de mexericos é muito útil para não se falar de coisas realmente importantes. E para mascarar a hipocrisia reinante.

Sem comentários: