O
livro de Saraiva e a hipocrisia dos jornalistas
José Manuel
Fernandes
26/9/2016,
OBSERVADOR
O
livro de Saraiva tem pouco valor histórico e comete pecados graves,
mas se queremos falar de jornalismo não devíamos estar antes a
discutir como o DN, o JN e a TSF são hoje usados por José Sócrates?
Não faço parte
daquele grupo de activistas das redes sociais (e de colunistas de
jornal) que se não se envergonha de escrever “não li esse livro,
mas…”, desatando a seguir a proferir a maiores inanidades sobre o
que não se conhece. Tratei por isso de ler Eu e os Políticos, de
José António Saraiva (com quem trabalhei nos anos em que estive nos
Expresso, já lá vão três décadas), antes de escrever fosse o que
fosse. E devo dizer desde já que não alinho com a turba ululante.
Passo a explicar.
Eu e os Políticos é
um livro de memórias. Na verdade, é o terceiro livro de memórias
do antigo director do Expresso e do Sol. Antes escreveu Confissões
de um Diretor de Jornal [2003] e Confissões – Os Últimos Anos no
Expresso, o Nascer do Sol e as Conversas com Políticos à Mesa
[2006]. Também li esses dois livros. E, por isso, só posso ficar
espantado pelo escândalo que agora se levantou em torno de José
António Saraiva ter revelado conversas privadas, pois já o tinha
feito nesses dois livros anteriores. Não o desculpo por isso, mas
interrogo-me: será que a turba de indignados só agora o descobriu?
Por outro lado, será que os políticos, que continuaram a almoçar
com ele, não estavam avisados?
Matéria diferente
são as passagens sobre a vida privada, até íntima, de alguns dos
protagonistas. Nalguns casos, são inúteis e de evidente mau gosto –
que adiante para a História, que Saraiva diz querer servir, saber
que uma antiga secretária viu o rabo de Medina Carreira quando este
levava uma injecção ou que um antigo namorado de Fernanda Câncio
gostava de fotografias supostamente eróticas? Noutros são muito
discutíveis, e quando digo discutíveis não o faço gratuitamente.
Por exemplo: a orientação sexual de um dirigente partidário deve
continuar a ser um tabu em Portugal, como é na generalidade dos
países latinos, ou deve ser revelada (como Saraiva faz) como sucede
na generalidade dos países anglo-saxónicos? Onde está a
hipocrisia? E onde está o voyeurismo?
De resto, não se
aprende muito com este livro, sobretudo para quem leu os anteriores,
até porque alguns dos episódios são apenas contados de novo.
Aprende-se sim com a indignação selectiva que ele suscitou. Por
exemplo: ao lê-lo fiquei a saber que o jornalista do Expresso que
cobria a Câmara de Lisboa era, numa determinada fase, quase íntimo
do então presidente da autarquia; assim como soube que um outro
jornalista do mesmo Expresso tinha relações de grande cumplicidade
com um dos mais controversos políticos portugueses. Nada disso
parece ter excitado os nossos “indignados”, porventura por esses
dois jornalistas já se terem reformado. Ou talvez não, pois
infelizmente conheço demasiado bem o corporativismo da minha classe
para saber que também nela uma mão costuma lavar a outra.
Expurgado de uma
dúzia das suas mais de 200 páginas o livro de Saraiva não teria
levantado ondas e serviria apenas, como ainda serve, para acrescentar
pormenores ao retrato de alguns políticos e da sua forma de actuar.
Aí mantém algum interesse, nomeadamente quando recorda a forma como
há quem minta com a mesma tranquilidade com que respira.
Mas adiante, que a
onda de indignação suscitada pela obra tem uma vantagem: revela
como a hipocrisia é moeda corrente entre nós. E como é fácil
fazer tiro ao alvo contra alguém que já não tem poder e ficar
calado quando as coisas são muito mais graves mas pode-se incomodar
colegas e amigos.
Um bom exemplo
daquilo a que me refiro é o que se passa no grupo Global Media, um
dos maiores do país e proprietário do Diário de Notícias, Jornal
de Notícias e TSF. A “indignação” de alguns dos
jornalistas-colunistas desse grupo com o livro de Saraiva foi imensa.
O que dá para ficar espantado, por causa dos telhados de vidros
daquela casa. Por isso desculpem-se ser desmancha prazeres, mas num
fim-de-semana marcada pelo protagonismo político de José Sócrates
não é possível continuar a ignorar a passadeira vermelha de que
continua a beneficiar naquele grupo de comunicação. Mas vamos a
factos.
Primeiro facto.
Sabemos hoje, graças à Operação Marquês, que José Sócrates
teve um papel determinante na transferência de propriedade daquele
grupo em 2014, poucos meses antes da prisão do ex-primeiro-ministro.
A sua preocupação era controlar as direcções dos dois jornais,
tendo, através do seu amigo e advogado Proença de Carvalho,
defendido a nomeação de Afonso Camões para esses lugares. Esse
jornalista, amigo de Sócrates, chegou mesmo a definir-se como um
“general prussiano” que “não se amotina”, podendo ser um
“joker” em qualquer posição de direcção. O actual director do
Jornal de Notícias é, de resto, um amigo de longa data de José
Sócrates, que o colocou em lugares tão importantes como a direcção
da Lusa e que contou com a sua colaboração noutras “operações”
(aí, refira-se, o livro de Saraiva revela alguns episódios curiosos
sobre a acção de Camões que eu desconhecia).
Mas sabemos mais.
Sabemos que Proença de Carvalho é hoje o homem forte da
administração do grupo e que os órgãos de informação da Global
Media têm sido utilizados, com pouco ou nenhum escrutínio, por José
Sócrates para difundir as suas mensagens. Correndo o risco de me
falhar alguma intervenção, fiz um pequeno levantamento – pequeno
mas significativo:
27 de Novembro de
2014: Primeira mensagem de Sócrates depois da prisão, divulgada
pela TSF (e pelo Público);
4 de Dezembro de
2014: Carta publicada no Diário de Notícias;
5 de Março de 2015:
Carta escrita a partir do estabelecimento prisional de Évora e
entregue ao Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, com
críticas a Passos Coelho;
4 de Abril de 2015:
Texto de opinião publicado no Jornal de Notícias;
8 de Junho de 2015:
Declaração exclusive ao Jornal de Notícias sobre a recusa de
pulseira electrónica;
12 de Junho de 2015:
Declarações enviadas por escrito à TSF e ao Diário de Notícias;
30 de Junho de 2015:
Entrevista conjunta ao Diário de Notícias e à TSF;
19 de Agosto de
2015: Carta enviada ao Jornal de Notícias (e à SIC);
19 de Junho de 2016:
Texto de opinião publicado ao mesmo tempo no Jornal de Notícias e
na TSF;
26 de Junho de 2016:
Texto de opinião na TSF (não se encontram no site da TSF textos de
opinião de mais nenhum político);
10 de Setembro de
2016: Texto de opinião no Diário de Notícias.
16 de Setembro de
2016: Entrevista à TSF sobre o juiz Carlos Alexandre.
Se a consulta dos
arquivos não me pregou nenhuma partida, para além destas
intervenções José Sócrates só deu mais uma entrevista nestes
quase dois anos, a famosa (e controversa) entrevista em duas partes à
TVI.
No que diz respeito
ainda ao grupo Global Media refira-se ainda que os órgãos de
informação que o integram recusaram publicar a publicidade do
Correio da Manhã em que se criticava uma decisão judicial que,
durante alguns meses, impediu aquele jornal de publicar informação
relevante sobre a Operação Marquês.
Estes dados indicam
que aquele grupo de comunicação tem servido ao ex-primeiro-ministro
como plataforma para defender as suas posições, com privilégios de
acesso únicos, quase absoluta ausência de escrutínio, tudo isto
quando se sabe que ele interferiu, em 2014, na escolha das direcções
editoriais e que tem o seu amigo e advogado como presidente do
Conselho de Administração.
Contudo parece haver
uma espécie de “conspiração do silêncio” que não questiona
esta situação, isto enquanto fervem as indignações por causa de
um livro que, na verdade, só põe por escrito aquilo que todos sabem
sobre a vida privada de algumas figuras públicas. O povo pode gostar
muito de mexericos (enquanto diz mal deles), mas certo, certo, é que
falar de mexericos é muito útil para não se falar de coisas
realmente importantes. E para mascarar a hipocrisia reinante.
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