sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O crime de José António Saraiva / Fernanda Câncio

Passos Coelho vai apresentar livro de José António Saraiva que conta segredos de políticos
Publicado a 13 Setembro 2016 por Miguel Dias em Destaque, Panorama

José António Saraiva, ex-director do Expresso e fundador do Sol, vai apresentar brevemente um “livro proibido” que vai relatar as suas conversas com vários protagonistas politicos portugueses. O escolhido para apresentar a obra foi o líder do PSD, Pedro Passos Coelho, e José António Saraiva garante que ninguém o leu até ao momento.

José António Saraiva

O lançamento do livro está agendado para o dia 26 de Setembro e vai contar com a presença de Pedro Passos Coelho e Mário Ramires, actual director do jornal i e do Sol. A obra assinada por José António Saraiva vai relatar conversas entre o ex-director dos dois semanários portugueses e 42 protagonistas politicos nacionais.

“Eu e os Políticos – O Livro Proibido” vai ser publicado pela Gradiva e vai contar com protagonistas como Marcelo Rebelo de Sousa, Cavaco Silva, Álvaro Cunhal, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Pinto Balsemão, José Sócrates, António Costa, António Guterres e também com algumas personalidades do mundo empresarial como António Horta Osório, Jardim Gonçalves e Hélder Bataglia, segundo avança o Observador.

Ao mesmo jornal, José António Saraiva explica que o livro vai contar “muitos episódios relevantes para a história dos últimos 40 anos”, acrescentando que pensou ou em “não escrever nada” ou fazê-lo a título póstumo, mas afirmando que poucas diferenças existiam, visto que “as revelações eram as mesmas. Só eu não estaria cá para arcar com as criticas…”
Descomplicador:

O ex-director do Expresso e fundador do Sol, José António Saraiva, vai criar publicar no final de Setembro um livro onde vai revelar conversas com 42 protagonistas politicos portugueses. A apresentação estará a cargo do presidente do PSD, Pedro Passos Coelho.

O crime de José António Saraiva
Nunca antes, à exceção de um episódio com imagens vídeo de sexo dadas à estampa há 30 anos, se foi tão longe na deliberação da devassa gratuita da intimidade, sem outro objetivo que não o de devassar, ferir e lucrar com isso

16 DE SETEMBRO DE 2016
16:58
Fernanda Câncio

Chamaram-lhe "o livro proibido". O epíteto indicia mais que ironia: se o autor, eventualmente incapaz, não sabe que o que escreveu e deu à estampa é criminoso e portanto proibido, a editora, decerto juridicamente acolitada, não pode ignorar. E se mesmo assim avançou foi porque, sopesando riscos e vantagens, achou que compensava.

Entendamo-nos: há muita gente que está a afetar muito escândalo e choque com o crime de Saraiva e da Gradiva mas vai salivar a ler. É da natureza humana, como quando há desastres e gente atropelada por comboios e se formam filas de curiosos; é como as encostas repletas de mirones à espera dos afogados depois da queda da ponte de Entre-os-Rios. Desde que sejam de outros a dor, os mortos e as vísceras até dá para tirar fotos e partilhar no Facebook.

É com isso que Saraiva e a Gradiva - a Gradiva, editora que acreditava séria, tendo feito nome a publicar ensaios e livros técnicos - contam: com o impulso voyeurista e necrófilo. E, claro, com a ideia de que "os políticos" e "as figuras públicas" têm de se submeter a todas as devassas. Com a ideia de que "merecem", "se puseram a jeito"; com a ideia "que mal tem?" ou "já toda a gente sabia."

As pessoas foram-se habituando a pensar assim: é isso a cultura tabloide, a cultura do boato e da insinuação, das revistas ditas "cor-de-rosa", a cultura que faz crer que toda a gente tem "o direito" de saber da vida privada e íntima dos "poderosos", comentá-la, ter opinião sobre ela, numa espécie de vingança, de compensação, de ajuste de contas. O terreno estava preparado. Tão preparado que um ex primeiro-ministro aceitou - e reiterou a aceitação, mesmo depois de confrontado pelo DN com algumas das passagens mais repelentes - apresentar o crime. Dar a cara por ele. Ser cúmplice, coadjuvante, membro da quadrilha.

Como combater isto? Como reagir? O mais terrível é que para denunciar o crime é preciso dizer, nem que seja de raspão, porque é que é crime. O que lá está. Porque é que é nojo, pestilência, asco. E isso penaliza aqueles - ou a sua memória, no caso dos mortos, e portanto os seus próximos sobrevivos - de cuja vida íntima se fala, cujas alegadas confidências se revelam. Até ao proceder nos tribunais contra este atentado será preciso invocar o que sobre si ou sobre o familiar morto se diz - estão a ver a perversidade? É que é esta a natureza deste crime: não há forma de combatê-lo que não passe por difundi-lo, por repeti-lo, e assim reiterá-lo e permitir-lhe o triunfo. Como se quem denuncia o roubo da sua casa fosse obrigado a abri-la a toda a gente e a dessa forma permitir que lhe tirem o que os primeiros ladrões não levaram. Como se alguém que foi violado fosse forçado, para fazer queixa, a novas e sucessivas violações.

Todos os que até agora denunciaram, com as melhores da intenções e imbuídos da mais justa indignação, o crime de Saraiva e da Gradiva tiveram de dar elementos para que quem lê possa ter uma ideia da gravidade do crime. Para convencer, sensibilizar, alertar. Posso escrever este texto sem detalhes nem exemplos porque houve quem o fizesse. Mas sei que, mesmo sem eles, poderá ainda assim ser publicidade. Serve para quê, então, escrever isto? Não era melhor o silêncio? Não era melhor a indiferença? A dúvida é legítima. Só posso dizer o que me leva a escrever: quero estar do lado certo da batalha. Quero frisar, anunciar, bradar que isto que Saraiva e a sua editora fizeram é crime. E que é, apesar de tanto do género já ter sido publicado, o passar de uma fronteira. Nunca antes, à exceção de um episódio com imagens vídeo de sexo dadas à estampa numa revista de número único, há uns 30 anos, se foi tão longe na deliberação da devassa gratuita da intimidade, sem qualquer outro objetivo que não o de devassar, ferir e lucrar com isso.

Escrevo para dizer isto: não se enganem, ou estão contra eles ou estão com eles. Esta é uma daquelas situações em que há mal e bem, claramente definidos, e é preciso escolher. Cada livro comprado é uma vitória do mal; como cada história partilhada, cada sorrizinho com as 'revelações', cada piadola sobre o que ali vem. Tentem imaginar que é com vocês; que é a vossa mãe cujas alegadas revelações íntimas ali foram vertidas, que foram inconfidências de um amigo, de um irmão, que ali foram parar. Há naquele livro revelações sórdidas sobre pessoas que desprezo, que desconsidero, que acho até execráveis. Mas nisto, aqui, quero estar, estou, do lado delas. Neste combate, estarei sempre do lado de quem é exposto na sua intimidade, enxovalhado, de quem vê palavras suas em alegadas conversas privadas reproduzidas para lucro - não esquecer, estes calhordas querem ganhar dinheiro -, de quem é ferido pela venalidade amoral das 'revelações'.

Esta publicação pôs-nos no limiar de uma nova era. É connosco se damos o passo em frente ou defendemos, até ao último, a muralha. Para que as trevas não vençam.

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