O
crime de José António Saraiva
Nunca
antes, à exceção de um episódio com imagens vídeo de sexo dadas
à estampa há 30 anos, se foi tão longe na deliberação da devassa
gratuita da intimidade, sem outro objetivo que não o de devassar,
ferir e lucrar com isso
16 DE SETEMBRO DE
2016
16:58
Fernanda Câncio
Chamaram-lhe "o
livro proibido". O epíteto indicia mais que ironia: se o autor,
eventualmente incapaz, não sabe que o que escreveu e deu à estampa
é criminoso e portanto proibido, a editora, decerto juridicamente
acolitada, não pode ignorar. E se mesmo assim avançou foi porque,
sopesando riscos e vantagens, achou que compensava.
Entendamo-nos: há
muita gente que está a afetar muito escândalo e choque com o crime
de Saraiva e da Gradiva mas vai salivar a ler. É da natureza humana,
como quando há desastres e gente atropelada por comboios e se formam
filas de curiosos; é como as encostas repletas de mirones à espera
dos afogados depois da queda da ponte de Entre-os-Rios. Desde que
sejam de outros a dor, os mortos e as vísceras até dá para tirar
fotos e partilhar no Facebook.
É com isso que
Saraiva e a Gradiva - a Gradiva, editora que acreditava séria, tendo
feito nome a publicar ensaios e livros técnicos - contam: com o
impulso voyeurista e necrófilo. E, claro, com a ideia de que "os
políticos" e "as figuras públicas" têm de se
submeter a todas as devassas. Com a ideia de que "merecem",
"se puseram a jeito"; com a ideia "que mal tem?"
ou "já toda a gente sabia."
As pessoas foram-se
habituando a pensar assim: é isso a cultura tabloide, a cultura do
boato e da insinuação, das revistas ditas "cor-de-rosa",
a cultura que faz crer que toda a gente tem "o direito" de
saber da vida privada e íntima dos "poderosos",
comentá-la, ter opinião sobre ela, numa espécie de vingança, de
compensação, de ajuste de contas. O terreno estava preparado. Tão
preparado que um ex primeiro-ministro aceitou - e reiterou a
aceitação, mesmo depois de confrontado pelo DN com algumas das
passagens mais repelentes - apresentar o crime. Dar a cara por ele.
Ser cúmplice, coadjuvante, membro da quadrilha.
Como combater isto?
Como reagir? O mais terrível é que para denunciar o crime é
preciso dizer, nem que seja de raspão, porque é que é crime. O que
lá está. Porque é que é nojo, pestilência, asco. E isso penaliza
aqueles - ou a sua memória, no caso dos mortos, e portanto os seus
próximos sobrevivos - de cuja vida íntima se fala, cujas alegadas
confidências se revelam. Até ao proceder nos tribunais contra este
atentado será preciso invocar o que sobre si ou sobre o familiar
morto se diz - estão a ver a perversidade? É que é esta a natureza
deste crime: não há forma de combatê-lo que não passe por
difundi-lo, por repeti-lo, e assim reiterá-lo e permitir-lhe o
triunfo. Como se quem denuncia o roubo da sua casa fosse obrigado a
abri-la a toda a gente e a dessa forma permitir que lhe tirem o que
os primeiros ladrões não levaram. Como se alguém que foi violado
fosse forçado, para fazer queixa, a novas e sucessivas violações.
Todos os que até
agora denunciaram, com as melhores da intenções e imbuídos da mais
justa indignação, o crime de Saraiva e da Gradiva tiveram de dar
elementos para que quem lê possa ter uma ideia da gravidade do
crime. Para convencer, sensibilizar, alertar. Posso escrever este
texto sem detalhes nem exemplos porque houve quem o fizesse. Mas sei
que, mesmo sem eles, poderá ainda assim ser publicidade. Serve para
quê, então, escrever isto? Não era melhor o silêncio? Não era
melhor a indiferença? A dúvida é legítima. Só posso dizer o que
me leva a escrever: quero estar do lado certo da batalha. Quero
frisar, anunciar, bradar que isto que Saraiva e a sua editora fizeram
é crime. E que é, apesar de tanto do género já ter sido
publicado, o passar de uma fronteira. Nunca antes, à exceção de um
episódio com imagens vídeo de sexo dadas à estampa numa revista de
número único, há uns 30 anos, se foi tão longe na deliberação
da devassa gratuita da intimidade, sem qualquer outro objetivo que
não o de devassar, ferir e lucrar com isso.
Escrevo para dizer
isto: não se enganem, ou estão contra eles ou estão com eles. Esta
é uma daquelas situações em que há mal e bem, claramente
definidos, e é preciso escolher. Cada livro comprado é uma vitória
do mal; como cada história partilhada, cada sorrizinho com as
'revelações', cada piadola sobre o que ali vem. Tentem imaginar que
é com vocês; que é a vossa mãe cujas alegadas revelações
íntimas ali foram vertidas, que foram inconfidências de um amigo,
de um irmão, que ali foram parar. Há naquele livro revelações
sórdidas sobre pessoas que desprezo, que desconsidero, que acho até
execráveis. Mas nisto, aqui, quero estar, estou, do lado delas.
Neste combate, estarei sempre do lado de quem é exposto na sua
intimidade, enxovalhado, de quem vê palavras suas em alegadas
conversas privadas reproduzidas para lucro - não esquecer, estes
calhordas querem ganhar dinheiro -, de quem é ferido pela venalidade
amoral das 'revelações'.
Esta publicação
pôs-nos no limiar de uma nova era. É connosco se damos o passo em
frente ou defendemos, até ao último, a muralha. Para que as trevas
não vençam.
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