Berlim
ainda não percebeu como se exerce uma liderança
TERESA DE SOUSA
28/09/2016 – PÚBLICO
Angela
Merkel garantiu ao Governo de Lisboa que "nunca se oporia"
à candidatura de Guterres. Não cumpriu a promessa.
Há quase sete anos,
pouco depois de um novo embaixador da Alemanha chegar a Lisboa, fui
convidada por ele para um almoço que me pareceu ser de simples
cortesia. Cheguei ao almoço, e foi uma daquelas vezes em que não
tive resposta imediata ao que ele me queria comunicar. Diria mesmo
que fiquei, na minha ingenuidade, de boca aberta. O embaixador, com o
qual mantive depois uma excelente relação de cooperação, aliás,
muito útil, tinha apenas uma coisa para me dizer de forma
absolutamente explícita, sem qualquer linguagem diplomática.
Portugal tinha de retirar a sua candidatura ao lugar não permanente
no Conselho de Segurança que, tal como era hábito, já estava ser
preparada praticamente desde a anterior eleição. A razão era
óbvia: a Alemanha acabava de apresentar a sua, cerca de um ano antes
da votação e o lugar era por direito dela. A argumentação era
absolutamente clara. A Alemanha já deveria ter o seu lugar
permanente no Conselho de Segurança, apenas adiado pela pouca
vontade americana (em boa verdade, de todos os outros membros
permanentes). Era, além disso, uma grande potência europeia, um
contribuinte generoso para os cofres do sistema das Nações Unidas
com um peso internacional incomparavelmente superior ao de Portugal.
A candidatura
portuguesa já tinha feito o seu caminho, reunindo apoios em todo o
mundo sem grande dificuldade. Precisamente porque somos um país
pequeno mas com uma longa história, sem conflitos ou anticorpos de
maior na cena internacional, capaz de construir pontes (era esse o
lema), mas que contrabalançava a sua dimensão com a pertença à
União Europeia (vide Timor). Isso e a persistência e eficácia da
diplomacia portuguesa tinham-nos garantido sempre cumprir os
objectivos fixados para o Conselho de Segurança. Não seria morte de
homem se não ganhássemos, mas já era tarde demais para desistir. A
não ser na cabeça do embaixador alemão. Conhecemos o desfecho
desta história. Apesar de haver um terceiro concorrente muito forte,
o Canadá, ganhámos folgadamente o nosso lugar e a Alemanha o seu.
Pouco depois, na decisão sobre a intervenção na Líbia, o voto
alemão alinhou com os países emergentes (China e Brasil) e não com
os países ocidentais, provando que Berlim ainda não tinha
clarificado a sua inserção internacional pós-unificação. Essa
clarificação já aconteceu em grande medida. A Alemanha já se
realinhou com os seus principais parceiros europeus e com os Estados
Unidos. A Rússia e a desordem internacional ensinaram muita coisa à
chanceler sobre defesa e segurança. Mas faltou, nessa aprendizagem,
um pormenor: perceber que o facto de ser poderosa na Europa não lhe
dá o direito de se comportar desta forma arrogante e unilateral.
Angela Merkel
garantiu ao Governo de Lisboa que “nunca se oporia” à
candidatura de Guterres, porque lhe devia um apoio incondicional na
questão dos refugiados e via como muito útil o seu conhecimento de
África, que alimenta e continuará a alimentar a fuga para a Europa
de milhares e milhares de pessoas. Não cumpriu a promessa. Apoiou
Kristalina Georgieva, que saiu direitinha do Berlaymont à última
hora, mas com a mesma lógica: o que Berlim apoia é o que interessa
e o que a Comissão fabrica é o que vale. A vice-presidente da
Comissão pode ser a melhor pessoa do mundo, mas o mundo não teve
oportunidade de saber. Uma das suas "qualidades" públicas
é pertencer ao PPE para um cargo em que a cor política interessa
muito pouco. O que é que Berlim ganha com isto? É difícil de
entender a não ser compromissos anteriores, que conhecia antes de
transmitir ao Governo português a sua “não oposição”, ou uma
forma de manter os seus vizinhos de Leste satisfeitos. Haveria sempre
outra dificuldade para Guterres, essa sim com alguma lógica, mesmo
que não contribua para uma ONU mais aberta e mais transparente. A
sua candidatura teria de passar o crivo de uma relação cada vez
mais complexa entre Washington e Moscovo por causa da Síria no
quadro de uma situação internacional verdadeiramente perigosa e da
tragédia humana que se vive na região. Era provavelmente a isso que
Marcelo se referia quando falou em crises internacionais
imprevisíveis que ainda poderiam dificultar a vida ao candidato
português. Afinal bastou a eurocracia e a displicência como em
Berlim se olha para o Sul para colocar uma séria dificuldade a
Guterres e à diplomacia portuguesa. Quem quer anular a sua
candidatura sabe que o preço a pagar contra a transparência, o
mérito, a capacidade e o currículo de António Guterres será
rapidamente esquecido. Mas que seja a Europa, com a sua sempre tão
proclamada “superioridade moral”, que queira torpedear um
processo muito mais transparente e interessante dá-nos a triste
medida da forma como as coisas funcionam.
Não há documento
de política externa emitido em Bruxelas (o último sobre a
estratégia de segurança europeia, preparado por Mogherini) que não
fale na importância da ONU e que não defenda um “multilateralismo
eficaz”, seja o que for que isso queira dizer. Querer eliminar um
candidato europeu que, em cinco votações, esmagou os adversários é
a negação de tudo isso. Quanto aos argumentos, como escrevia um
diário britânico, falar de Europa do Leste deixou de fazer qualquer
sentido desde a reunificação europeia. O conceito geopolítico
desapareceu, como pretendiam os países do Leste que aderiram ao que
designavam como “Europa”. O critério do género é apenas uma
desculpa. E os cozinhados europeus deixam cada vez mais a desejar,
numa altura em que a cozinha está a ser aberta ao público. O caso
Neelie Kroes (a anterior comissária holandesa da Concorrência) é
um escândalo sem nome vindo de um país europeu que olha para o Sul
com um desprezo considerável. O caso Barroso não é propriamente
exemplar. A Alemanha ainda não sabe como utilizar o seu imenso
poder, o que é lamentável. Não foi só Merkel que tentou jogar com
um pau de dois bicos. Teve outros companheiros que um dia viremos a
saber quem foram. Mas desta vez, como aconteceu no Conselho de
Segurança há sete anos, também pode, não digo perder, mas pelo
menos “empatar”
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