Metamorfose
do modelo político
SÃO JOSÉ ALMEIDA
24/09/2016 – PÚBLICO
A
questão central é a de saber que PS vai sobreviver e resultar
quando terminar esta metamorfose da política portuguesa.
Se alguém tinha
dúvidas do quanto mudou o modelo político depois das legislativas,
as últimas semanas desfizeram--nas. A metamorfose do modelo político
ficara já patente com a forma como o PS de António Costa buscou e
conseguiu negociar entendimentos como o BE, o PCP e o PEV de modo a
que estes apoiassem parlamentarmente o seu Governo e chegasse a
primeiro-ministro, mesmo tendo ficado em segundo lugar nas urnas.
Perante o ineditismo
dos acordos de poder, muitos consideraram que se estava face a uma
jogada política oportunista de António Costa, para conseguir
concretizar o seu projecto de chefiar o Estado. Mas não era isso.
Por mais que Costa seja um político pragmático, o seu projecto de
poder incluía a demanda de mudar os azimutes da orientação
estratégica e de programa político do PS, mudança indiciada de
forma mais ou menos vaga nas moções às primárias internas, assim
com na ao Congresso de 2014 e nos programas eleitoral e de governo.
Essa mudança de
orientação político--programática foi expressa primeiro na
rejeição do modelo de austeridade que tinha imperado no final do
Governo PS de José Sócrates, e depois consubstanciado com o Governo
de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. Uma alteração que foi então
vista, de forma simplista, como uma mera mudança propagandística.
Mas era mais que isso, como se tornou patente. Concretamente, com a
notícia de que o Governo se prepara para avançar com um novo perfil
de impostos sobre os bens imóveis. Mas também a aprovação
anterior do diploma, à espera de promulgação do Presidente da
República, que acaba com o sigilo bancário quando as contas
acumulam mais de 50 mil euros.
O problema que se
coloca não é — ou não é apenas — o de saber se o PS está a
enganar o seu eleitorado. Um programa de governo não tem de
antecipar à partida o perfil de impostos a aplicar. E não é
inédita uma mudança no sistema fiscal não anunciada antes das
urnas. A questão central é a de saber que PS vai sobreviver e
resultar quando terminar esta metamorfose da política portuguesa,
bem como que correlação de forças quer à esquerda, quer também à
direita existirá em Portugal.
É certo que muito
do que tem sido dito e proclamado em relação ao próximo Orçamento
do Estado faz parte do jogo de sombras próprio de qualquer
negociação entre partidos. E muito do que se semeia como ideia não
é mais do que um teste e uma etapa de um jogo de forças negocial.
Faz, aliás, parte das regras proclamações públicas
grandiloquentes para tentar forçar a prevalência de propostas
negociais. Daí que seja até compreensível a razão por que o PS
deu espaço a que, quer o BE, quer o PCP defendessem aquilo que é
normal passar por propostas de partidos mais à esquerda.
O que resta perceber
é até onde irá o PS nesta negociação. Se irá mesmo avançar com
a versão mais radical do novo imposto, ou se ficará por alterações
ao IMI. Até porque não é de admitir que esta medida seja pacífica
ou aceitável pelo PS, que até hoje nunca questionou o modelo
económico, que, aliás, ajudou a construir. Nem nunca pôs em causa
o modelo fiscal. Nem sequer o modelo de poupança ou de acumulação
de riqueza por meios lícitos. Como vai agora o PS aceitar como
limite para a propriedade o valor de um milhão de euros? Irá o PS
considerar mesmo que a partir desse valor falamos de luxo e de
acumulação parasitária?
Por agora, o cimento
do poder tem mantido calados os socialistas. À excepção das
críticas de Sérgio Sousa Pinto — que desde o início teve a
clarividência de perceber a mutação profunda que se ia operar no
PS —, vimos já o membro do secretariado do PS e presidente da
Câmara de Lisboa, Fernando Medina, distanciar-se. Assim como os
deputados Helena Roseta e Paulo Trigo Pereira.
Mas talvez mais
profundo do que a alteração de modelo proposto para a recolha de
tributação destinada a garantir a redistribuição de riqueza que o
novo imposto poderá trazer é o diploma que introduz o fim do sigilo
bancário. É tão brutal a alteração que o próprio PCP já veio
questionar a sua constitucionalidade. E aqui, mais uma vez, a questão
é a de saber se os militantes, dirigentes e eleitores do PS
consideram mesmo que ter mais de 50 mil euros no banco pode ser
riqueza suspeita. Mesmo para quem poupou uma vida de trabalho ou
herdou dinheiro que já foi e é tributado pelo fisco.
A mudança será
então surpreendente, já que o PS durante duas décadas tem
rejeitado medidas mais duras em relação ao sistema bancário como
forma de combater a corrupção. Contrariou primeiro as propostas
sobre enriquecimento ilícito do ex-dirigente, ex-ministro e
ex-deputado do PS João Cravinho, e depois votou contra os diplomas
apresentados pela deputada do PSD e ex-ministra da Justiça Paula
Teixeira da Cruz. Até que ponto estará o PS e o seu eleitorado
disponível para aceitar que seja posto em causa o princípio da
liberdade individual da propriedade privada, que é estruturante das
democracias liberais?
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