A
farsa no virar da página
Manuel Carvalho
18/09/2016 –
PÚBLICO
Como
não pode ter um discurso ancorado na verdade do problema, o Governo
entra na bravata jacobina e transforma a austeridade numa banal
factura só para alguns.
A história
repete-se, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A
tese de Karl Marx tem um passado de 164 anos, mas aplica-se bem à
nossa aflição do presente. Os apertos da era Sócrates repetiram-se
tragicamente nos dias de Passos Coelho e voltam agora a repetir-se em
jeito de farsa com António Costa e Mário Centeno. A crise persiste
e ameaça agudizar-se, mas apenas na realidade, jamais na
consciência. Tornou-se uma farsa na qual se criam impostos como se
de um capricho se tratasse. Não se diz se é por necessidade, porque
a miragem do “virar de página” persiste. Mas, um imposto é um
imposto é um imposto. Uma violência que só se justifica pela gula,
pela arrogância ou pela necessidade. Criá-los como se nada fosse,
como se em causa estivesse uma simples vírgula no texto do défice
público, é uma artimanha. Que chega ao esplendor quando Mariana
Mortágua rejubila com a salvação da classe média, como se o
significado da carga fiscal, ou da dita austeridade, não fosse um
problema que existe independentemente dos seus alvos civis.
Já vimos este filme
no estertor do Governo Sócrates: afinam-se as palavras e mudam-se os
impostos para que a austeridade continue escondida debaixo da
propaganda. Ao menos, Passos Coelho não se escondia em metáforas
para escamotear a realidade. Assumia os custos dos cortes ou aperto
fiscal em nome da pressão da troika e da sua crença messiânica,
estúpida, no poder redentor do ajustamento. António Costa não tem
a mesma liberdade e disfarça as amarras ao Bloco e ao PCP
tergiversando. Aumentar impostos sobre quem tem património é mais
justo e mais de esquerda do que manter a carga sobre os suspeitos do
costume, os cidadãos da classe média. O pior é que essas
“alterações fiscais” que as Finanças estão a negociar com os
seus parceiros não nascem do reconhecimento de que a situação está
difícil. Não configuram uma terapia para uma cura. São parte da
narrativa da devolução de direitos e de rendimentos em curso. Uma
mentira piedosa para justificar a preocupação do Governo em
controlar o défice. Mas, ainda assim, uma mentira
O Governo faz bem em
reagir. Pior do que não inventar impostos seria negar a seriedade da
situação. Por culpa própria e falhas alheias, a economia encalhou,
a conjuntura externa piorou, os juros da dívida afastam-se dos da
Espanha ou da Alemanha, o investimento trava a fundo, a suspeita de
que o país poderá ter de mendigar um novo resgate cresce (na
economia, bem se sabe, as profecias auto-realizam-se). Os avisos da
UTAO ou do Conselho das Finanças Públicas não deixam dúvidas:
estamos outra vez mais perto do precipício. Não é partidarite, nem
maus fígados, nem uma culpa exclusiva do actual Governo: é a
factura de um país com uma economia encalhada pela falta de
investimento e pela desconfiança. Reconhecendo os perigos do lugar
onde estamos, o Governo tem toda a abertura do mundo para os atacar.
Se não for por reformas estruturais (impossíveis num governo
minoritário), que seja por medidas de emergência, ainda que
qualquer novo imposto seja um insulto para quem trabalha e um perigo
para o investimento.
Se o Governo tivesse
fibra e maioria no Parlamento para assumir decisões duras contra o
perigo (ainda distante, mas real) de um novo resgate, tudo seria
melhor. Há contas a acertar e vale mais taxar património
imobiliário acima do meio milhão de euros do que voltar a
sobrecarregar o IRS ou o IVA. É melhor taxar fortunas ou bens de
raiz do que cortar nas prestações sociais. Mas para que essa
iniciativa seja entendível e aceite, António Costa devia criar um
ambiente que mobilizasse o país para o risco da tempestade. Aí,
teria de reverter a redução do horário da função pública para
as 35 horas, teria de restaurar o IVA na restauração, teria de ser
menos generoso na devolução da sobretaxa do IRS, teria de conter a
narrativa dos tempos idílicos da “reposição de direitos” ou da
devolução de rendimentos. Como não pode ter um discurso ancorado
na verdade do problema, o Governo entra na bravata jacobina e
transforma a austeridade numa banal factura só para alguns.
Pois, o novo imposto
é para os ricos. Como se os ricos fossem párias. Um Governo com a
matriz do PS não pode ser contra os ricos, tem de ser “contra”
os pobres. E mesmo que agora nos venham dizer que os impostos sobre o
imobiliário estejam no programa eleitoral do PS, o que é duvidoso,
o Governo não consegue escapar à suspeita de que se deixou
intoxicar pela aversão da extrema-esquerda à livre iniciativa, à
economia aberta, à democracia liberal, ao sucesso dos que arriscam
e, felizmente para eles e para todos, conseguem enriquecer. Essa
percepção alastra, alimentada também pela aberrante obrigação de
os bancos comunicarem ao fisco movimentos das contas bancárias com
mais de 50 mil euros. E é um perigo, como notou esta semana o
Presidente da República, referindo-se à instabilidade fiscal. Os
que pensam em investir em Portugal, ou os que compram títulos de
dívida pública, serão tentados a pensar que caminhamos
inexoravelmente para um passado à albanesa.
A aprovação do
orçamento de 2017 vai ser um momento definidor do Governo. A pressão
externa, o défice, os mercados, os analistas, a Europa, vão
obrigá-lo a escolhas difíceis e, ao mesmo tempo, a manter o
equilíbrio político que o sustenta. É aí que está o seu Rubicão.
Reverter parte da construção ideológica que projectou é o maior
drama existencial do Governo. Dizer agora que um país periférico,
incapaz de competir, endividado e sem nervo para gerar riqueza está
vulnerável à ingerência externa dos credores é um risco.
Reconhecer que, neste contexto, é indispensável ajustar as contas
do estado pode ser o princípio do fim. Assumir a “austeridade”
levaria à sublevação.
A fantasia que nos
vendem é uma decorrência dessas escolhas dramáticas. A farsa que
tenta conjugar a propaganda sobre o virar página à austeridade com
o lançamento de novos impostos é a cola que mantém o Bloco e o PCP
na órbita do Governo. O Governo tenta ser um Governo do PS sabendo
que tem de ser também um pouco do governo de Catarina Martins e
Jerónimo de Sousa. Se não na prática, ao menos no discurso.
O confronto entre
essas palavras boas do Governo e as notícias más da conjuntura ou
dos mercados começam, porém, a tornar a situação insustentável.
O défice está controlado, mas no futuro imediato, ou a economia
cresce ou vai ser preciso considerar medidas mais duras. Porque
nenhum de nós quer viver nem voltar a ser olhado como um cidadão de
um país falhado, que não se governa nem deixa governar. Está na
hora de começar a chamar os bois pelos nomes. De se dizer que há
mais impostos porque a coisa está preta.
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