terça-feira, 20 de setembro de 2016

La comandante Mariana


La comandante Mariana

João Miguel Tavares
20/09/2016 – PÚBLICO

Algo está a mudar na política portuguesa. E não é para melhor.

Mariana Mortágua foi a uma daquelas actividades de propaganda que o PS organiza todos os sábados para encher os telejornais do fim-de-semana. Pareceu-me excelente: o único benefício que retiro da actual solução de governo é o aumento do tempo de antena de Mariana Mortágua, cuja presença anima qualquer televisor. (Para os que consideram que constatar que uma deputada é gira é uma forma de menorização intelectual, quero declarar publicamente que também acho giro o deputado João Galamba.) Mariana não é só popular cá em casa – é popular em todo o lado, e em especial entre socialistas, que muito apreciaram ouvi-la dizer, num debate dedicado às esquerdas e à igualdade, uma frase que é toda ela Cuba 1959: “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro.”

Esta declaração revela mais do que qualquer programa de governo. Analisemo-la, ponto por ponto. “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha”, diz Mariana, na esteira de António Costa, que a primeira coisa que fez após as eleições foi efectivamente perder a vergonha e fazer a negociata com uma esquerda radical que – pormenor despiciendo – não acredita no capitalismo nem na economia de mercado. Aquilo a que Mariana chama “perder a vergonha” é a destruição de um consenso quanto a um modelo de regime centrado no respeito pela livre iniciativa, pela propriedade privada, pela intervenção limitada do Estado e pelo projecto europeu. Coisa pouca. Mesmo o consenso em torno do Estado Social era enquadrado pela famosa máxima atribuída a Olof Palme: “Nós queremos acabar com os pobres, não com os ricos.” Ora, o Bloco e o PCP estão muito mais interessados em acabar com os ricos do que com os pobres, até porque foi nessa actividade que a ideologia que perfilham se especializou sempre que alcançou o poder.

Segundo ponto: perder a vergonha de quê? “De ir buscar dinheiro”, diz Mariana. Infelizmente, não se trata de ir buscar dinheiro à sua carteira – trata-se de ir buscar dinheiro à carteira dos outros. Os impostos nascem de um contrato social, em que cada cidadão contribui para o bem-comum, recebendo de volta benefícios como a segurança, a justiça ou a saúde, ao mesmo tempo que apoia com parte dos seus rendimentos aqueles que menos têm. Mas esta ideia de contrato está a ser substituída por uma ideia de colectivização do dinheiro de cada um, como se o esforço do nosso trabalho fosse em primeiro lugar do Estado, cabendo-lhe distribuir-nos uma mesada a que chama “ordenado”. Não, Mariana. É ao contrário: o Estado deve ter mesmo vergonha de ir buscar o nosso dinheiro, porque só assim pode gerir bem a coisa pública e manter a consciência de que os impostos são uma dádiva de alguns para todos, e não propriedade colectivizada de um Estado abstracto e gargantuesco.

Terceiro ponto: Mariana Mortágua quer ir buscar dinheiro “a quem está a acumular dinheiro”. Eu diria que “acumular dinheiro” tem nomes mais simpáticos, como poupar ou investir. Nem por acaso, dois dos mais graves problemas da economia portuguesa, que não poupa nem investe o suficiente. Também pode ter outro nome: enriquecer. Em tempos, era uma virtude. Parece que agora estão a querer transformá-lo em pecado. Não há aqui nada de novo: os radicais da igualdade acabaram sempre a oprimir a liberdade e os inimigos dos ricos acabaram sempre a fazer mais pobres. Que o PS aprecie este discurso é sintomático. Algo está a mudar na política portuguesa. E não é para melhor.

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