Editorial
Uma
extraordinária falta de ética
Direcção Editorial
/ PÚBLICO
23/09/2016 – 00:05
Ao quebrar o acordo
tácito com as suas fontes, José António Saraiva violou a ética do
jornalismo.
Primeiro, pomos de
parte a extrema soberba e o auto-deslumbramento que faz corar o mais
vaidoso dos humanos. A seguir, pomos de parte a chocante devassa da
vida privada de pessoas vivas e mortas. Depois, pomos de parte o rol
de mexericos irrelevantes. E, finalmente, ignoramos as observações
ridículas, como a de Passos Coelho dar apertos de mão que
transmitem “confiança” apesar das suas “mãos muito brancas e
quase femininas”.
Cumprido o
exercício, o que fica para ser debatido? A extraordinária falta de
ética jornalística de um homem que foi director do semanário
Expresso durante 22 anos.
Na capa do seu novo
livro Eu e os Políticos, José António Saraiva anuncia em
subtítulo: “O que não pude (ou não quis) escrever até hoje”.
De imediato, não se compreende o que terá mudado em relação a
“poder” escrever. É verdade que JAS já não é director do Sol,
apenas conselheiro editorial. Mas isso não altera em nada a sua
relação com a ética da profissão. Restará, então, o “querer”.
E disso estamos certos: JAS quis escrever este livro e a sua editora,
a Gradiva, quis publicá-lo.
Passos Coelho, como
é sabido, sentiu-se “desobrigado” em relação ao compromisso de
o apresentar. Terá tomado a decisão ao ler o livro e perceber que
JAS se desobrigou em relação ao código deontológico do
jornalista.
De uma assentada,
JAS viola pelo menos metade dos artigos do código da sua profissão:
1) o jornalista deve escrever sobre “factos comprovados”; 2)
“deve combater o sensacionalismo”; 3) deve “proibir-se de
abusar da boa-fé de quem quer que seja”; 4) “deve proibir-se de
humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor”; e 5) “deve respeitar
a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o
interesse público”.
O Livro de Estilo do
PÚBLICO sublinha ainda três aspectos relevantes para esta polémica:
proteger as fontes; rejeitar o boato e o sensacionalismo, a calúnia
e a intromissão na esfera privada dos cidadãos; e usar o bom senso
e o bom gosto. Por fim, a nossa “bíblia” defende que os
jornalistas tenham com as fontes uma “relação com base na
responsabilização, confiança e respeito mútuos”.
Sem moralismos nem
vontade de dar voz aos zelotas da privacidade, o que importa nesta
polémica é o facto de nenhuma das 42 pessoas com direito a capítulo
neste livro ter falado com JAS imaginando que um dia leria as suas
conversas de bastidores publicadas e com aspas. As cruas e
embaraçosas opiniões de Passos Coelho sobre Dilma Rousseff foram em
on? A “confissão” de que o governo português “inventou uma
cimeira que não existia” para Rousseff foi em on? Rui Machete
contou a JAS, quando era ministro da Justiça, os segredos de uma
operação contra as FP25 em on? Manuela Eanes, “quase sempre às
escondidas do marido”, “deu várias notícias em primeira mão”
a JAS em on? Miguel Portas falou sobre o irmão em on? Os exemplos
são inúmeros. Como é óbvio, todas estas pessoas conversaram com
JAS sabendo que ele é jornalista. Mas também com uma razoável
expectativa de que a conversa era privada e não seria reproduzida.
Nem em on nem em off, nem com aspas nem sem elas.
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