"Há
um bocadinho de cultura low cost no projecto para o Palácio da
Ajuda"
Isabel Salema e
Lucinda Canelas
22/09/2016 –
PÚBLICO
Primeiras
reacções ao novo projecto para este monumento nacional. Ordem dos
Arquitectos contesta a adjudicação directa do projecto de
arquitectura.
O conselho directivo
regional do sul da Ordem dos Arquitectos criticou esta quinta-feira
em comunicado o processo de escolha do novo projecto para o Palácio
Nacional da Ajuda, em Lisboa, lamentado que "não tenha sido
objecto de concurso público de concepção”.
Lembra que a obra,
apresentada na segunda-feira com a presença do primeiro-ministro,
terá um valor de 15 milhões de euros e é "uma intervenção
num património tão relevante na cidade”.
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A secção do sul da
Ordem dos Arquitectos (OA) valoriza “o interesse do Ministério da
Cultura, da Câmara Municipal de Lisboa e da Associação de Turismo
de Lisboa em resolver um assunto há tanto tempo pendente, como é o
remate da fachada e a valorização das áreas poente e norte do
Palácio da Ajuda”, mas sublinha que se trata de um monumento
nacional e de “um dos mais simbólicos e relevantes conjuntos
edificados da cidade de Lisboa”.
Rui Alexandre,
presidente do conselho directivo regional do sul da OA, explica ao
PÚBLICO que decidiram divulgar a sua posição porque a ordem
defende que deve haver preferencialmente um concurso público de
concepção quando há uma encomenda do Estado, sobretudo com esta
importância para a cidade. “Não estamos a falar de ilegalidades”,
reforça, “mas de uma recomendação”. “É muito importante que
haja um debate público relativamente à conclusão do palácio e
isso faz-se através de uma encomenda mais alargada”, explica o
arquitecto, acrescentando que tem havido muitos protestos nas redes
sociais da OA sobre a ausência de concurso. Um concurso que, lê-se
no comunicado, “permite a apreciação de cenários alternativos
para a obra, elaborados a partir de um programa objectivo, e
avaliados por um júri independente e qualificado”.
A Ordem dos
Arquitectos do sul diz ainda no mesmo documento que não está em
causa a qualidade do projecto desenvolvido pela direcção-geral do
Património e o mérito profissional de João Carlos dos Santos, mas
“repudia” as afirmações do ministro da Cultura e do Presidente
da Câmara de Lisboa feitas ao jornal Expresso e a “desvalorização
da ‘necessidade de um concurso de ideias mais amplo ou de um debate
sobre esta escolha’”.
Oportunidade perdida
“O processo [de
selecção do projecto] espantou-me a mim e espantou muita gente,
porque o Palácio da Ajuda é uma das histórias mais fantásticas e
míticas da arquitectura portuguesa", diz Jorge Figueira,
crítico de arquitectura do jornal PÚBLICO. "Resolvê-la com um
arquitecto da casa, como é dito, com uma espécie de expediente
pragmático, parece-me que é perder uma oportunidade. Há aqui um
bocadinho de cultura low cost que parece passar do Turismo para a
própria resolução de problemas míticos da cidade de Lisboa.”
Segundo o crítico,
não era necessário, obrigatoriamente, um concurso público, porque
há “uma miríade de possibilidades” para tornar “a ocasião
num acontecimento público de grande valor cultural para a cidade de
Lisboa e para o país”. Uma oportunidade, por exemplo, para fazer
uma exposição sobre o processo, a arquitectura do palácio, as
hipóteses que foram lançadas, como as de Raul Lino e de Gonçalo
Byrne. “É exactamente o tipo de caso que não deveria ser
resolvido com um arquitecto da casa que aparece com um conjunto de
imagens que proclamam que finalmente o problema vai ser resolvido.”
Numa breve resposta
ao PÚBLICO, o gabinete do ministro da Cultura Luís Filipe Castro
Mendes explicara já na segunda-feira que a escolha do projecto para
a Ajuda não decorreu de um concurso internacional porque, de acordo
com o custo da obra e tratando-se de uma intervenção realizada por
um técnico da casa num imóvel público, a lei não o exige. “De
acordo com a Lei Orgânica da DGPC (DL 115/2012 – 25/Maio - Artº
2, nº2, alínea d)), compete-lhe, através dos seus serviços,
elaborar projectos para a execução de obras em imóveis
classificados de que o Estado é proprietário. A questão de um
concurso só se coloca nos casos em que se externalizam os projectos
(para obras deste valor)”, lê-se no email enviado pela assessora
de comunicação de Castro Mendes.
A conclusão do
Palácio Nacional da Ajuda, obra iniciada em 1796 e cuja conclusão
está adiada há mais de 200 anos, foi objecto de vários projectos
nas últimas décadas. O que foi agora apresentado é a quinta versão
feita pelo arquitecto João Carlos dos Santos, subdirector-geral da
DGPC, organismo encarregue de aprovar as intervenções propostas nos
bens classificados.
A obra prevê o
remate da fachada poente do edifício (a que dá para a Calçada da
Ajuda, que continuará a ter carros e eléctricos), a construção de
duas caixas-fortes onde será instalada a colecção de jóias da
casa real portuguesa, dividida em dois núcleos distintos, e a
beneficiação na Calçada entre a Alameda dos Pinheiros e a Rua das
Açucenas.
Não é ilegal,
mas...
João Belo Rodeia,
que em 2003-2005 presidiu ao Instituto Português do Património
Arquitectónico (Ippar), antepassado da DGPC, e que esteve à frente
da Ordem dos Arquitectos durante seis anos (2008-2013), celebra o
remate do palácio há tanto tempo adiado e o facto de finalmente se
ter encontrado uma maneira de o financiar, mas está entre os que
lamentam que o processo não tenha incluído um concurso.
Fazendo questão de
frisar que, tal como o crítico Jorge Figueira, não é a favor de
concursos públicos para tudo, Rodeia defende que este edifício,
pela sua importância história, pelo seu valor simbólico e pelo
papel que tem na cidade, merecia pelo menos que se lançasse o
convite a alguns arquitectos para que apresentassem ideias: “Teria
ficado bem. Este não é um edifício qualquer e, por isso, teria
sido importante ter vários bons projectos de onde escolher." E
acrescenta: "Rematar a Ajuda é de uma enorme complexidade
porque não se trata de encontrar apenas uma solução arquitectónica
– a solução é também urbana. ”
Este antigo
responsável pelo património não conhece bem a proposta de João
Carlos dos Santos, arquitecto com quem aliás já trabalhou, e por
isso prefere não emitir qualquer opinião sobre ela. Diz apenas que
é “um projecto possível, entre muitos”, que tem um “programa
adequado” (a exposição das jóias da casa real portuguesa) e o
mérito de vir pôr fim a uma situação que se arrasta há séculos.
“Não há aqui nenhuma ilegalidade em não lançar um concurso mas
há um aspecto que é preciso ter em conta: João Carlos dos Santos é
subdirector da DGPC, que é a entidade que emite pareceres sobre o
património, que aprova, acompanha e fiscaliza intervenções.
Parece-me que, nessa qualidade, não devia assinar este projecto.
Mais uma vez digo, não é ilegal que o faça, mas é no mínimo
redundante. No meu tempo [à frente do Ippar] não o permitiria.”
João Rodeia lembra
ainda que durante anos o Estado teve um contrato com Byrne, autor de
um projecto para o palácio que implicava já em 1989 a exposição
das jóias, e que a ele pôs fim de forma “pouco digna”: “O
arquitecto Byrne teve o projecto adjudicado 20 anos. Havia um
compromisso do Estado que simplesmente não foi respeitado e, mais
grave do que isso, começou a trabalhar-se numa alternativa sem que
ele fosse informado. Não posso precisar números porque não me
lembro, mas seria um projecto para custar muito mais do que este.”
O dinheiro,
naturalmente, pesou. Na sua intervenção na segunda-feira, na
apresentação do projecto, o ministro da Cultura classificou-o como
“sustentável” e o próprio João Carlos dos Santos explicou ao
PÚBLICO que a sua proposta levou em conta a necessidade de reduzir
os custos. “Esta solução é de compromisso: mexe um bocadinho na
Calçada da Ajuda para que a entrada da exposição das jóias tenha
uma pequena praça, mas não a anula. Os projectos anteriores, como o
do arquitecto Byrne, tinham mais área de construção e mexiam muito
na envolvente, o que tornava tudo muito mais caro.”
Os custos desta
intervenção, que deverá estar adjudicada em Julho de 2017 e
concluída até Dezembro de 2018, são partilhados, de acordo com o
protocolo assinado esta segunda-feira, pelo Ministério da Cultura,
através da DGPC, pela Câmara Municipal de Lisboa e pela Associação
de Turismo de Lisboa, a entidade que gere a taxa turística da
autarquia, que aqui vê aplicadas as suas primeiras receitas (seis
milhões de euros).
Sobre a qualidade do
projecto, Jorge Figueira ressalva que há apenas um conjunto de
imagens disponíveis, que mostram que o arquitecto tenta jogar no
contraste com o edifício, “um truque muito habitual da
arquitectura”.
O projecto reproduz
nas várias lâminas que compõem a nova fachada do palácio um corte
do edifício, como se fosse uma fatia com o perfil da arquitectura
clássica várias vezes multiplicada. “Essa vontade de ser
contemporâneo e jogar com a ruptura, mesmo nesse jogo habilidoso com
o corte, que é aliás uma figura abstracta da arquitectura, é
demasiado evidente. Gostaria que houvesse uma maior ambiguidade.”
Contactada pelo
PÚBLICO, a DGPC remeteu um comentário ao comunicado da OA para mais
tarde.
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