Arquitecto do Rossio vê justiça feita 11 anos depois de ter sido dispensado.
Por Ana Henriques in Público
01/06/2013
Trabalhou quatro anos de borla para a câmara sem qualquer espécie de contrato, apesar das funções de relevo que exercia. Rui Valada vai ser integrado nos quadros da autarquia por ordem do tribunal
Aos 33 anos, o futuro sorria-lhe. Tinha sido encarregado por João Soares, em 1995, de um projecto único: reabilitar a Praça do Rossio, em Lisboa. Os anos que se seguiram foram uma autêntica epopeia, para devolver a um dos principais espaços públicos da cidade a sua antiga majestade. Escolheu a equipa que iria levar a cabo a missão, mandou desenhar candeeiros e quiosques para os jornais e para as floristas, escolheu a pedra para os lambris dos passeios, cuja largura duplicou. O padrão "Mar Largo" voltou a encher a calçada portuguesa, como em meados do séc. XIX.
Quando a obra foi inaugurada, a um escasso mês das eleições autárquicas de 2001, o arquitecto paisagista Rui Valada estava há quatro anos a trabalhar de borla para a Câmara de Lisboa. Tinha representado a autarquia em cerimónias, dado entrevistas, espalhado plantas pelo chão do gabinete de João Soares para lhe dar a conhecer os seus planos, mas vínculo contratual com a câmara não possuía nenhum - nem já sequer o de tarefeiro que nos primeiros anos tinha tido.
Ainda hoje, com 50 anos e uma carreira pouco conhecida, Rui Valada não sabe explicar lá muito bem como se trabalha quatro anos em funções públicas de destaque em semelhantes condições. "Ao longo desses quatro anos, sempre pensei que a situação se viesse a resolver. Mas os vereadores empurravam o problema uns para os outros", recorda. Nunca passou mal: graças ao dinheiro da família, pôde dar-se ao luxo de não abrir mão do projecto da sua vida. O seu empenho nele havia, no entanto, de o fazer cair em desgraça. Uma rodela que se erguera na placa central do Rossio, com uns míseros 40 centímetros de altura, estava no centro da controvérsia.
Em formato de talhada de melancia, a rodela albergava um poço de ventilação do metropolitano. Cioso como era da sua obra, o arquitecto exigiu que o obstáculo desaparecesse dali, como lhe prometera João Soares antes de perder as eleições para Santana Lopes por escassa margem. Bateu o pé, acenou com um parecer vinculativo do Instituto do Património Arquitectónico a dar-lhe razão. Quem o avisou de que ia por mau caminho sabia do que falava. "Vá para casa até a poeira assentar", lembra-se de lhe ter ordenado, no Verão de 2002, a vereadora do Urbanismo, Eduarda Napoleão (PSD).
Lá foi, para não mais ser chamado. Perante a polémica que gerou o seu afastamento, Santana Lopes emitiu um comunicado a explicar que não encontrava na câmara nenhum contrato em seu nome, "apesar de o arquitecto ter estado quatro anos à frente do gabinete do Rossio".
Negando que o afastamento estivesse relacionado com a excrescência do metropolitano, o autarca anunciou então que apresentara uma queixa-crime contra o paisagista por causa de um alegado abuso de poder na encomenda de umas travessas de madeira à Rede Ferroviária Nacional em nome da câmara, mas destinadas a uso particular - um caso que havia de terminar com a sua absolvição em tribunal.
Apesar dos elogios que o seu trabalho no Rossio suscitou - Siza Vieira chegou a referir-se-lhe como um exemplo a seguir -, Rui Valada não voltou a ter encomendas de projectos para espaços públicos senão há poucos anos, quando trabalhou para a Sociedade Frente Tejo. À câmara só voltou durante dois breves anos, quando trabalhou no gabinete de Manuel Maria Carrilho.
Santana em silêncio
O processo que desencadeou para ver reconhecidos os seus direitos arrastou-se em tribunal uma década, com a Câmara de Lisboa a reconhecer-lhe a qualidade do trabalho desenvolvido, mas a alegar que ele "sempre tinha sabido o que significava" o regime de prestação de serviços a que se encontrava sujeito. Para se descartar de responsabilidades, a autarquia chegou a questionar a sua formação académica: como vários dos seus colegas, Rui Valada adiou durante anos a entrega do trabalho de fim de curso.
Em Março deste ano um tribunal de primeira instância veio dar razão ao paisagista. "Foi mantido instrumentalmente numa situação precária e irregular por parte do município, que se foi refugiando em argumentos de carácter formal para recusar a reconhecer uma situação que lhe foi útil e conveniente", observa o juiz Frederico Branco, explicando que nos seus primeiros anos na câmara o arquitecto "foi celebrando contratos de prestação de serviço que iam dando cobertura a necessidades permanentes de serviço", em vez de ver a sua situação regularizada, como se impunha. Condenada a integrar Rui Valada nos seus quadros e a pagar-lhe os quatro anos de trabalho gratuito no Rossio - 236 mil euros - mais os salários que teria auferido até hoje caso não tivesse sido indevidamente despedido, a autarquia anunciou ao tribunal a sua intenção de recorrer desta sentença, mas desistiu entretanto de o fazer.
Questionada pelo PÚBLICO sobre este e outros aspectos relacionados com o caso, uma porta-voz do município, Maria Rui, limitou-se a responder que a sentença será integralmente cumprida.
Nem Santana Lopes nem Eduarda Napoleão se mostraram disponíveis para prestar declarações. Já Rui Valada diz que hoje "provavelmente faria o mesmo" que fez na altura.
Quatro perguntas a Rui valada
O que é que pode melhorar hoje em dia o Rossio?
Face ao plano de redução do tráfego na Avenida da Liberdade, a placa central pode ser ainda mais alargada do que em 2001, suprimindo faixas de rodagem, como sempre defendi mas não consegui levar por diante na altura. E é preciso reabilitar os edifícios.
Como vê a montagem de feiras no centro da praça?
Não devemos desvirtuar espaços nobres como este com semelhante tipo de abarracamento. É exagerado e há espaços com maior aptidão para esse tipo de coisa.
Como vê hoje tudo o que se passou ?
Se calhar levei ao extremo o assumir de um projecto. Mas acabei por ser totalmente ostracizado. No Verão de 2002 apareceu uma equipa da câmara no gabinete do Rossio que encaixotou todos os nossos pertences, incluindo os pessoais, a que ficámos sem acesso durante 15 dias. Portaram-se muito mal comigo e as coisas podiam ter-se resolvido há mais tempo.
Vê-se a trabalhar outra vez na Câmara de Lisboa?
Eu gostaria de voltar a trabalhar na cidade e a sério, em prol do espaço público, como tenho feito na Estação Sul e Sueste e no Cais do Sodré, no âmbito da Sociedade Frente Tejo.
Rui Valada em 2002 ...
Arquitecto responsável pelo Gabinete do Rossio admite ter errado.
LUSA 02/09/2002 - 23:17 in Público
O arquitecto responsável pelo Gabinete do Rossio, alvo de um processo instaurado pela câmara de Lisboa, admite ter errado, mas defende que a autarquia está apenas a reagir às críticas que exprimiu sobre uma obra municipal no Rossio.
A Câmara Municipal de Lisboa (CML) instaurou um processo contra o arquitecto responsável pelo projecto de reabilitação do Rossio, Rui Valada, por este ter solicitado material para uma obra particular utilizando papel timbrado da presidência da autarquia.
Rui Valada está a ser alvo de um processo que "já foi remetido para a Polícia Judiciária", adiantou um assessor do presidente da câmara lisboeta.
O arquitecto responsável pelo Gabinete do Rossio — criado pelo anterior executivo camarário para reabilitar a praça da capital e extinto no final do ano passado depois de terminadas as obras e inaugurada a Praça do Rossio — utilizou papel timbrado da presidência da CML para solicitar à Refer a entrega de 26 travessas para uma obra em Vila Nova de Ourém de um colega seu.
Rui Valada admite "ter errado ao ter utilizado papel do gabinete", mas afirma que "estava apenas a tentar resolver a situação de um colega". "As travessas dos comboios só são vendidas em grandes quantidades e por isso falei com um engenheiro que disse para eu mandar um fax. Pedi 26 travessas, estamos a falar de 39 contos (cerca de 170 euros), e no fax fiz referência à hipótese de a Refer ceder ou vender as travessas. O lapso foi ter usado o papel do gabinete", admitiu.
No entanto, o arquitecto afirma que esta situação foi "apenas um pretexto", estando em causa o facto de se ter "oposto à decisão camarária de fazer uma obra ilegal na Praça do Rossio". Rui Valada criticou recentemente a decisão camarária de construir um banco de pedra a rodear o poço de ventilação do metropolitano.
"A praça está classificada e é um espaço em que todos os lisboetas se revêem, mas o actual executivo avançou com a obra desvirtuando o projecto de requalificação e indo contra o parecer do Instituto Português do Património Arquitectónico", disse.
Sem comentários:
Enviar um comentário