Compreensível e auto-crítica ... mas denotadora da famosa bi-polaridade Lusa, também auto-inibidora.
António Sérgio Rosa de Carvalho.
Por Joana Stichini Vilela 5 de Junho de 2013. / Carrosel Magazine
Sem sócios, sem dinheiro e sem experiência, Ramiro Paulino Pereira lançou uma marca de óculos para o segmento de luxo que já conquistou quatro capitais europeias. Uma história que tinha tudo para dar errado – e está a dar certo.
Uma foto no Facebook, foi quanto bastou. O criador e até ao momento único funcionário da marca de óculos Paulino Spectacles, Ramiro Paulino Pereira (na foto), só teve de pôr na página pessoal uma fotografia do primeiro modelo que produziu para chamar a atenção de uma jornalista inglesa. A partir daí as coisas começaram a acontecer em catadupa. Estávamos em Maio de 2012; a marca só seria lançada em Setembro.
Este arranque tão inesperado como fulgurante é capaz de ser o único ingrediente típico desta aventura. “Típico” no sentido dos “casos de sucesso”, aqueles artigos inspiradores que todos gostamos de ler mesmo que suspeitemos estar só a saber da história pela metade. Tudo o resto teria lugar mais numa humilde divagação em torno de sonhos, afectos e valores do que num best-seller americano sobre os segredos dos negócios.
Os sonhos
Ramiro Pereira tem 48 anos. Sabe que não é a idade mais comum para se estar a lançar no projecto da vida dele. Estas coisas fazem-se na casa dos 20, 30, altura em que nos anos 90 começou a pensar criar uma marca própria. Mas a vida meteu-se pelo meio – a loja de óptica, os filhos… – e o pensamento nunca passou disso mesmo. Até que em Dezembro de 2011 visitou São Paulo com a namorada, a ilustradora Yara Kono. “Fomos até uma rua com lojas de topo. Uma delas era uma óptica à porta fechada onde faziam os próprios modelos. E a Yara sugeriu-me, ‘Porque é que não fazes isto?’”, conta. “A ideia não me largou mais.”
O óptico cresceu rodeado por lentes e armações. Muito antes de ele nascer, nos anos 30, o avô abriu uma loja de óculos em Santarém onde também se vendiam electrodomésticos. Depois foi a vez de o pai abrir uma óptica própria, agora nas Caldas da Rainha, onde chegou a fazer modelos únicos à mão. Até os verbos usados para explicar o processo caíram em desuso: “grozir” as lentes, “esmilhar” o vidro. Nos anos 70 foi a vez de o miúdo começar a aprender e depois, em 89, também ele partir, primeiro para Lisboa, depois para Almada.
Quando se lançou para a marca baptizada com o nome e tradição familiares, Ramiro tinha poucas certezas. Sabia que queria fazer um produto nacional e de grande qualidade. Sabia que o estilo seria vintage, inspirado no cinema americano dos anos 50 e 60. Sabia que não sabia desenhar. E que seria ele a tratar disso.
Em Abril, depois de alguns becos sem saída, incluindo a conhecida feira MIDO de Milão, foi parar a Gondomar, à SOCIEL, a última fábrica de armações em acetato da Península Ibérica. Foi lá que um dos proprietários, José Maria Rodrigues, pegou nas folhas de papel de máquina com desenhos a carvão e começou a fazer os moldes – tudo à mão, um processo de um mês ou mais. “Os modelos tiveram de ser todos revistos”, lembra Ramiro com um sorriso, para logo a seguir fundamentar: é uma questão de conforto. “Dou uma atenção minuciosa à ponte, a parte do nariz. Todas as pessoas que os experimentam têm dito, ‘nunca tive uns óculos assim, que não os sentisse’.”
E assim chegamos aos “Sara”, os tais óculos que chamaram a atenção da jornalista inglesa, os primeiros a serem produzidos e até agora o modelo mais popular.
Os afectos
“Sara – Paulino Spectacles”, destacou logo em Agosto a jornalista do blogue britânico da especialidade EyeStylist.com: “Um super recém-chegado que estou a seguir com cuidado.” Em Novembro, já apresentadas a marca e a colecção, a mesma jornalista publicava uma crítica mais completa, com afirmações como, “O design e as cores usadas mostram uma elegância e sensibilidade gerais e também uma atenção astuta a pormenores, como o uso dos pequenos parafusos vintage que Ramiro encontrou na oficina.”
Em Paris não acreditavam que os óculos, como estes “Sara”, fossem portugueses. Foto: J.S.V. |
A sofisticada Óptica do Sacramento, no Chiado, foi a primeira a vender Paulino Spectacles. A sessão fotográfica para o catálogo fez-se ali ao pé, na loja A Vida Portuguesa, de Catarina Portas. Ramiro sabe que é um negócio para um nicho. Na própria óptica, em Almada, não vende a marca. “Na loja as coisas estão terríveis. Tive quebras de 50, 60 por cento. Não é o mesmo público”, explica. “Houve quem me avisasse, ‘vais meter-te nisso e isto está péssimo’. Não ouvi ninguém. Sabia que pelo menos em Portugal este era um projecto único.”
Tirando um amigo que ajudou no site da Paulino Spectacles, é Ramiro que desde casa, em Oeiras, trata de tudo o resto. Da concepção dos modelos aos contactos comerciais, passando pela preparação das encomendas. “Vejo se os óculos têm defeitos, ponho-os nas embalagens, dobro as flanelas… E quero que assim continue”, diz. Também acompanha a produção na fábrica e viaja com as amostras para o estrangeiro. Só não tratou do plano de negócios nem do financiamento por uma razão simples: arrancou sem nenhum dos dois.
“Não tinha capital, mas não pedi um empréstimo; fui conseguindo”, explica. “Tenho tido muito cuidado com o acetato, compro apenas o essencial. Não tenho um armazém. Só há coisa de dois meses é que comecei a ter stock na fábrica para conseguir fornecer os clientes em menos tempo.” Quanto ao plano de negócios, o tal amigo é economista e estão “agora a fazer uma coisa nesse sentido”.
Os valores
A primeira vez que falei com Ramiro Pereira foi em Fevereiro para lhe pedir que enviasse uns modelos para Londres. A revista Monocle com a qual colaboro queria destacá-los numa edição especial. Gentil e descontraído, tratou de tudo num instante. No mês seguinte voltei a contactá-lo para lhe pedir esta entrevista e encontrei um homem diferente. Num tom quase envergonhado, preocupado até, explicava que começava a ser difícil arranjar tempo: “As coisas estão a tomar uma proporção que não me agrada. Estão a ir depressa demais.”
Em Maio, oito meses depois do lançamento, a marca estava à venda em doze ópticas, cinco das quais no estrangeiro: Londres, Paris (duas vezes), Madrid e Barcelona. Se tudo correr bem, em breve chegará à Ásia, à América do Norte e a outros países europeus. Em Portugal também deverá crescer. Em geral, gabam-lhe o design, a qualidade, e o modo de produção artesanal. Nas hastes todos os modelos dizem, “Handmade in Portugal”. E para ele isso é das coisas mais importantes.
Do desenho dos modelos (a lápis, em papel de máquina) à preparação das encomendas, Ramiro faz tudo sozinho. Foto: J.S.V.
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Num contexto comercial, a palavra “valor” costuma ter um significado evidente. Neste caso, seria entre 320 e 375 euros, o preço de venda ao público recomendado. Mas para o fundador da marca, o termo remete para muito mais do que isso. “Se eu produzisse na China conseguia fazer 10, 15 vezes mais barato, mas não teria o mesmo valor”, explica. Uma das suas lutas é a valorização do produto nacional, e os Paulino Spectacles, tirando o acetato italiano, são 100% portugueses. “Em Paris não acreditavam”, acrescenta. Até as carteiras são feitas de cortiça. Ele sabe que já mexeu com o mercado. E, embora não queira reclamar a responsabilidade, até a fábrica de Gondomar vai contratar mais uma pessoa.
Por enquanto, Ramiro não ganha dinheiro com a marca. “Se as coisas continuarem desta maneira, talvez dentro de um ano, ano e meio.” Entretanto, já teve dois investidores interessados, mas recusou as propostas. Esta clarividência, pelo menos aparente, estende-se a outras decisões, como o design e as cores dos modelos, alguns em surpreendentes degradês. “Nunca me preocupei em perceber se eram cores da moda. Preocupei-me em escolher cores de que gosto”, explica. “Se calhar parece demasiado simples. E é.”
Sem sócios, com o dinheiro que vai arranjando e a experiência que tem ganho, Ramiro Pereira junta mais um elemento à equação: paixão. A palavra aparece sorrateira, ele nem dá por isso. Explica que na fábrica, para fazerem os moldes, só precisam de uma metade do modelo, e por isso ele já só desenha essa metade, embora na sua cabeça o veja inteiro. “É como quando as pessoas estão apaixonadas: olho para ele e consigo perceber como fica depois de pronto.”
Num registo mental quase anacrónico – apaixonado, confiante, alheio a fórmulas e segredos do sucesso – Ramiro está cheio de ideias. E quer pô-las em prática. Já começou a criar modelos com uma linguagem mais própria, em que o vintage se encontra com o contemporâneo. A sensação de tudo isto é difícil de descrever mas ele consegue resumir a coisa ao essencial: “Tenho este óculo na minha mão e vejo-o e penso, ‘fui eu que o desenhei’.”
AUTORA
Joana Stichini Vilela é jornalista. Nasceu em 1980, passou pela televisão, passou pelo estrangeiro, até que se fixou em Lisboa e na imprensa. Fez parte da equipa fundadora do jornal i. Publicou em vários jornais e revistas, incluindo o Diário de Notícias, aSábado, a Up e a Monocle. É coautora do livro Lx60 – A Vida em Lisboa Nunca Mais Foi a Mesma.
• jsv@carrosselmag.com
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A história O homem que viu mais longe foi publicada pela primeira vez no Carrossel Magazine, a girar desde Maio de 2013.
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