segunda-feira, 17 de junho de 2013

Dossier Turquia / 17-6-2013

Um regime muito pouco liberal



A repressão policial em Istambul tem de entrar na agenda negocial para a adesão da Turquia à UE
Editorial / Público

Na Turquia, quem protestar contra uma operação imobiliária na zona sensível de uma cidade histórica, ou quem se manifestar contra o Governo, corre o risco de ser considerado "terrorista". Ataques destes, como o que ontem Recep Erdogan lançou aos manifestantes em Istambul, são sinais de demagogia ou de maniqueísmo próprios de regimes em que a tolerância e o respeito pela pluralidade de opiniões só existem na forma. As batalhas campais que já geraram cinco mortos e mais de 5000 feridos não podiam, por isso, acontecer em Portugal, na Alemanha ou no Reino Unido, onde é frequente haver mobilização dos cidadãos contra grandes obras. Na Turquia, porém, subsiste a convicção de que as eleições democráticas são apenas uma rotina destinada a formar um governo autocrático para o período de uma legislatura. Na Turquia há democracia eleitoral, mas não há democracia liberal. Um governo que tivesse mostrado abertura para perceber a indignação dos cidadãos com a construção de um shopping na zona da Praça Taksim, um governo capaz de dialogar e de negociar poderia ter até, em última instância, necessidade de repor a ordem pública. Mas Erdogan nunca mostrou essa abertura. Pelo contrário, optou por uma permanente atitude de desafio, de humilhação dos manifestantes, que serviu para alimentar o aparato de violência policial e para radicalizar as franjas de contestação ao Governo. Ontem, Istambul transformou-se num palco de guerra civil porque as válvulas de escape das tensões políticas e sociais que normalmente existem nas democracias não existem ou não funcionaram. Neste particular, a Turquia está ainda muito longe do modelo político que inspirou e, apesar de aberrações como na Hungria, vinga na União Europeia. Quando, e se, as negociações para o alargamento da União para lá do estreito do Bósforo se reiniciarem, a brutal repressão do Governo aos manifestantes de Istambul não poderá deixar de ser levada em conta.



"Vamos continuar a luta. Gezi é em todo o lado, agora"


Por Paulo Moura, em Istambul ( in Público )
17/06/2013

Recep Erdogan mandou reprimir a manifestação contra o governo: "Era o meu dever como primeiro-ministro", disse. A polícia gaseou, pontapeou e prendeu quem apanhou pela frente
A violência espalhou-se ontem por toda a cidade de Istambul, em focos de confrontos entre polícias e manifestantes, ataques com canhões de água e muito, muito gás lacrimogéneo.
"Estou em Harbiye, e há grande número de feridos", disse ao PÚBLICO uma manifestante, por telefone. "O gás está por todo o lado, a polícia quer matar-nos". Outro manifestante ligou de Osmanbey, um bairro alguns quilómetros a norte da praça Taksim: "Estão a prender centenas de pessoas. Cidadãos comuns, jornalistas. Toda a gente que tem uma máscara de gás, dizem que é ilegal, e prendem".
Em Besiktas, nas margens do Bósforo, "eles correm atrás das pessoas e espancam-nas", disse uma estudante também por telefone. "Entram em todo o lado. Nos restaurantes e cafés, hotéis, até nas casas".
A rua Istiklal, a mais movimentada de Istambul, era agora dominada pela polícia. Certas partes da rua foram evacuadas, noutras, grupos de polícias atacavam e perseguiam grupos de manifestantes. Houve correrias, gritos, corpos caídos sob o efeito do gás, de balas de borracha ou bastonadas.
Muitas pessoas refugiaram-se em várias das "passagens" que abundam nesta zona de Istambul. Na de Hazzo Pulo, por exemplo, as esplanadas dos cafés estavam cheias de gente. As duas entradas para a "passagem" têm portões, que piquetes de activistas fechavam quando viam um grupo de polícias. "Eles também não querem entrar aqui, porque ficariam encurralados", explica Jefi, um engenheiro de 31 anos. O que os polícias fazem, em casos como este, é lançar gás lacrimogéneo para o interior do recinto. Quando isso acontece, é o pandemónio, uma autêntica câmara de gás.
"Vamos continuar a luta do parque Gezi. Gezi é em todo o lado, agora", disse Jefi. "[O primeiro-ministro] Erdogan está a ser cada vez mais arrogante, cada vez mais fascista. Ele pensa que resolveu o problema evacuando o parque, mas está enganado. Isto até foi bom para nós, e para a Turquia. Porque agora as pessoas perceberam que podem falar, e que isso é bom. E perceberam que se podem unir. Desde o momento em que se percebe que isso é possível, as coisas nunca mais serão iguais".
Todos terroristas

Após a evacuação do parque Gezi, que milhares de manifestantes ocuparam durante 18 dias, as unidades da polícia cercaram toda a área de Taksim. Enquanto o parque era limpo de tendas e bancas, contingentes policiais dispunham-se a toda a volta, nas ruas adjacentes e próximas, em todos os acessos.
Um dos ministros do Governo de Erdogan tinha dito que, após a intervenção da polícia, qualquer pessoa encontrada na zona de Taksim seria considerada terrorista. A polícia agiu em conformidade. Além de disparar água e gás sobre qualquer ajuntamento, andou de rua em rua, de porta em porta, a fustigar as pessoas. Muitas tinham vindo para aqui com o propósito de se manifestar. Outras simplesmente vivem cá, têm aqui os seus estabelecimentos comerciais, ou são turistas ou jornalistas.
A polícia não perde muito tempo a distinguir quem é quem. Agride primeiro e pergunta depois, ou não chega a perguntar (o repórter do PÚBLICO foi agredido a pontapé e bastonada, mesmo depois de ter repetidamente informado os polícias de que era jornalista).
Muitos temiam que o ataque ao parque Gezi se transformasse num massacre. Isso não aconteceu. A operação foi realizada com muita organização e disciplina, permitindo que todos os ocupantes saíssem do parque, sem serem atacados. Já a "limpeza" de ontem não observou os mesmos cuidados. Não foi uma batalha campal envolvendo toda a cidade, como certas mensagens nas redes sociais dão a entender. Na verdade, em muitos locais reinou a calma. E não fosse pela funesta e amarelada nuvem de gás que alastrou por todo o centro de Istambul, dir-se-ia que nada se passou.
Noutros locais, o que se passava era muito diferente. Em Kazliçesme, a uns dez quilómetros do centro da cidade, o primeiro-ministro discursava num comício para centenas de milhares de apoiantes. "Aqueles que querem saber o que se passa na Turquia devem olhar para Kazliçesme, em Istambul", disse. "Estas centenas de milhares de pessoas não são as que queimaram e destruiram. Estas centenas de milhares de pessoas não são traidores, como os que atiram cocktails Molotov contra a minha gente. Seja o que for que façamos, vamos manter-nos nos rigorosos limites da democracia e da lei", disse Erdogan. Acusou os media internacionais de quererem fabricar uma imagem falsa da Turquia como país violento e sem democracia. E depois lançou as ameaças: "Vamos identificar um a um aqueles que aterrorizaram as ruas das nossas cidades. Temos todas as gravações das câmaras de vigilância das cidades. Vamos investigar os media e as redes sociais, para descobrir quem instigou esta violência".
Mas a crise não está resolvida. Cinco centrais sindicais convocaram grandes manifestações para hoje, enquanto vários sindicatos apelavam a uma greve geral. As organizações de solidariedade do parque Gezi continuam a apelar para que todos se concentrem em Taksim. Em Ankara e noutras cidades turcas deverão realizar-se manifestações e greves. Tudo indica portanto que Gezi vai continuar ocupado, ainda que esteja vazio.



Profissão, repórter


Por Paulo Moura (em Istambul) / Público

Uma mul­ti­dão começara a subir a rua Tar­labasi, arra­s­tando fer­ros, grades, sinais de trân­sito, para erguer bar­ri­cadas. Seguiam em direcção à praça Tak­sim, emb­ora soubessem que toda a área estava cer­cada por mil­hares de polícias.
De repente, surgiu entre os pré­dios o vulto branco de um dos blinda­dos Toma, equipa­dos com can­hões de água. Atrás, uma fila de polí­cias, de capacetes e escu­dos. Soam as as primeiras explosões, as bom­bas de gás lac­rimogé­neo rodopiam no ar, rolam pelo pavimento.
A mul­ti­dão foge pela rua abaixo, em direcção a, percebe-se subita­mente, um outro con­tin­gente da polí­cia, que está à espera. Alguns man­i­fes­tantes ten­tam esconder-se, out­ros enveredam por ruas perpendiculares.
A minha opção é uma escadaria que sobe rumo à rua Istik­lal, a mais movi­men­tada de Istam­bul. O gás está por todo o lado, o que torna a res­pi­ração muito difí­cil. O meu ridículo equipa­mento — uma más­cara de cirur­gia e uns óculos de natação — de pouco ou nada servem. Com o esforço de subir a escadaria a cor­rer, a sen­sação é de des­maio iminente.
De repente explode uma granada de gás a uns 3 met­ros dos meus pés. Vejo o fumo a espalhar-se e tento fugir por uma viela estre­ita, mas é neste momento que percebo que a bomba foi lançada em minha honra. Vejo um grupo de polí­cias a cor­rer para mim. Apercebo-me ainda de que não está mais ninguém à volta.


Sinto uma pan­cada forte que me atira ao chão. Não percebo se é um encon­trão, um murro ou uma bas­ton­ada. A seguir, uma avalanche de vio­lên­cia. Grito “Press! Press!”, enquanto um instinto qual­quer me leva a encolher-me e a pro­te­ger a cabeça com as mãos.
Durante uns instantes quase perco os sen­ti­dos, mas logo depois apodera-se de mim uma aguda e estranha lucidez. Verifico que um primeiro polí­cia me arran­cou bru­tal­mente a más­cara e os óculos, cer­ta­mente para facil­i­tar a entrada do gás nos meus pul­mões. Sinto um segundo homem dar-me um pon­tapé, outro ferir-me um braço com uma bas­ton­ada, outro ainda desferir-me golpes nas per­nas e joelhos.
A cada um que veio bater-me gritei que era jor­nal­ista, em vão. Pelo menos dois dos agres­sores não estavam far­da­dos. Usavam jeans e sap­atil­has, t-shirt branca. E escu­dos e bastões, para luta corpo-a-corpo. Na ver­dade, dadas as circunstân­cias, duvido que alguém lhes dê luta, o que torna a sua mis­são bem mais simples.
De súbito alguém grita: “Repórter?” E estende-me a mão. Ajuda-me a lev­an­tar e leva-me até à entrada do hotel Már­mara, onde out­ros jor­nal­is­tas se refu­gia­ram. Não sei quem é este homem, a quem os polí­cias obe­de­ce­ram, quando os man­dou afas­tar. Antoine, o fotó­grafo francês que estava comigo, espera-me. Viu tudo da janela do hotel, e registou.
Uma equipa que está a fazer um doc­u­men­tário sobre a can­di­datura de Istam­bul aos Jogos Olímpi­cos de 2020 tam­bém apan­hou o momento.
Nas ima­gens pode ver-se como lutei destemi­da­mente con­tra as forças da repressão (exac­ta­mente como fazem os cidadãos tur­cos quando são apan­hados assim nas mal­has da autoridade).
Em jeito de con­clusão, direi que estes polí­cias tiveram muita sorte. Se eu não estivesse um pouco ator­doado pelo gás, tê-los-ia cor­rido todos à chapada.


Protesters help a woman suffering from the effects of teargas during clashes with Turkish riot police in Istanbul Photograph: Filip Singer/EPA



Turkey unrest: violent clashes in Istanbul as Erdoğan holds rally


Police use teargas against protesters trying to enter Taksim Square as prime minister talks of foreign conspiracy

Constanze Letsch and Ian Traynor in Istanbul
guardian.co.uk, Sunday 16 June 2013 18.30 BST / http://www.guardian.co.uk/world/2013/jun/16/turkey-unrest-clashes-istanbul-erdogan

Istanbul came to a standstill on Sunday as an army of riot police and gendarmerie cordoned off streets and use teargas on protesters in the centre of the city while the prime minister, Recep Tayyip Erdogan, staged a rally before hundreds of thousands of supporters at the waterfront.
Some 24 hours after using brute force to clear the focal point of the demonstrations against the government and bulldozing Gezi Park in Taksim Square, where a varied crew of protest groups had been camped out since the beginning of the month, Erdogan ditched all efforts at conciliation at a rally of his Justice and Development party (AKP).
"Taksim is not Turkey," Erdogan declared, in a reference to the city centre square ringed off by riot police on Sunday evening as thousands of demonstrators sought to converge there.
Protest organisers had called for a million-strong demonstration at Taksim Square, but the entire area was cordoned off, making access impossible. Stretches of the motorways encircling Istanbul were also closed by police to try to prevent protesters getting to the city centre.
The opposite conditions applied to government supporters making their way en masse to hear the prime minister. The Istanbul municipality and the AKP laid on buses and other transport to help boost the numbers attending.
Erdogan inveighed against the international media, blaming the BBC and CNN for distorting the drama of the past three weeks in what he repeatedly alleged was an international plot to divide and diminish Turkey.
"You will make your voice heard so anyone conspiring against Turkey will shiver," he told the crowd. "Turkey is not a country that international media can play games on."
He added that the Turkish nation "is not the one banging pots at nights", in reference to what has become a soundtrack to the protests: middle-aged people coming on to their apartment balconies nightly to hammer on kitchen utensils.
The same din was heard across several central Istanbul neighbourhoods on Sunday evening.
While Erdogan addressed the massive crowds in bright sunshine, much of the city was sullen and tense. In several districts middle-aged women kept up a steady racket by beating pots and pans from their balconies as riot police lounged around, sitting on pavement verges.
The police raids, which started on Saturday afternoon and quickly cleared and occupied Gezi Park, included acts of startling brutality that outraged normally apolitical Istanbul citizens, as well as human rights monitors.
Teargas was fired into impromptu medical clinics housed in tents. A luxury hotel on Taksim Square being used as an emergency refuge for victims and for the wounded was repeatedly invaded by the police and teargas fired into the enclosed spaces.
"It was horrible in there," said Mehmet Polat, 32. "They shot teargas inside the hotel several times, the gas rose up to the sixth floor of the hotel, everything was filled with white smoke."
Another young man next to him nodded. "People were shoving each other, panicking, but the police kept attacking us." Both were not giving up. "Our demands are very clear," Polat said. "And until they are met, we are not going anywhere."
But on Sunday Turkey's minister for European affairs, Egemen Bagis, said any civilians entering Taksim Square would be viewed as terrorists.
Gezi Park was completely cleared of the gaudy paraphernalia of pluralist protest that had been its hallmark.
Stands, tents and banners were all gone. The central park fountain, decorated with flags of a wide array of political factions on Saturday morning, was adorned with one single Turkish flag the following morning.
Istanbul's governor, Huseyin Avni Mutlu, said no one would be allowed to return to the park to protest.
Erdogan's confrontational style, his divisive rhetoric and the extreme force used by the police on victims including young children, with one pregnant woman losing her baby on Saturday evening, have tarnished his credentials internationally as a reformist Muslim leader.
But the strong-arm tactics do not appear to have closed down the protests and have sown dismay among many non-political Turks.
One policeman guarding the entrance to Gezi Park said he was not happy with the way things were going: "The government is working against the people, and they are using the police to do it. They are handling it very badly. I hate doing this."
At a mobile clinic on the square, one medic said: "They promised us that they would not attack our field hospital, but they did anyway, firing six rounds of teargas directly into our tent.
"This is against all human rights agreements. A serious crime. Not even in war should medical facilities be attacked. But we will remain here and continue our work."
The Turkish health ministry has been issuing threats in recent days, warning that all health professionals treating protesters during the Gezi Park protests would be prosecuted.
Amnesty International said about 100 people had been detained and were being held incommunicado.
"The authorities are denying due process to those they have detained. The police must release them immediately or disclose their location and allow access to family members and lawyers," said Andrew Gardner, Turkey researcher at Amnesty International.

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