domingo, 9 de junho de 2013

"Na Praça Taksim, há razoáveis e terroristas"


Quem os viu e quem os vê Recep Erdogan


Em 2002, quando chegou ao poder, o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan começou a reposicionar a Turquia e quis demonstrar que era possível ser islâmico, democrata e europeu. Era esse o propósito. Isso ainda não aconteceu e, neste momento, tudo está a andar para trás. O país está mais desenvolvido, é certo, e há uma crescente classe média. Mas há também uma cólera acumulada e uma vaga de ressentimento que agora enchem as ruas de Istambul. Com ferramentas que não tinham há dez anos, os turcos exigem hoje mais liberdade e rejeitam o autoritarismo do seu líder. Receiam também o que parece ser o seu plano pessoal — eternizar-se no poder, mudando o sistema político de parlamentarista para presidencialista. Ser eleito não significa não prestar contas. Erdogan ainda não percebeu isso.


"Na Praça Taksim, há razoáveis e terroristas"
Por Paulo Moura, Istambul in Público
09/06/2013

A multidão é cada vez maior na Praça Taksim, mas o primeiro-ministro não tenciona ceder. Um dirigente do partido governamental disse ao PÚBLICO que há na praça dois tipos de manifestantes: os cidadãos "responsáveis e os ilegais"

Os gritos ouvem-se de muito longe. As canções, as palavras de ordem, os foguetes na Praça Taksim fazem uma tal barulheira que quase se pode ouvir do outro lado de Istambul. Ao contrário de algumas previsões, o número de manifestantes contra o Governo no centro da maior cidade turca não está a diminuir. Por ser sábado, a multidão já enche completamente Taksim e o Parque Gezi a meio da tarde. A fúria parece crescer e o sentido de humor também. Taksim é uma festa e exulta como se tivesse adquirido vida própria e independência, e ninguém a pudesse deter.

Erol Adayilmaz, vice-presidente em Istambul do AKP, o partido do primeiro-ministro, Tayyip Erdogan, diz que passou pela praça de manhã. E distinguiu dois tipos de manifestantes. "Um grupo são as pessoas responsáveis, que se estão a manifestar pelos seus direitos democráticos, outro grupo são as organizações ilegais, terroristas", diz ao PÚBLICO. Não conseguiu perceber quem eram uns e outros, admite. "Mas a polícia sabe quem são. Essas organizações estão identificadas. A polícias conhece os seus membros um a um, sabe os seus nomes."

Antes de nos conceder a entrevista, Adayilmaz trocou umas palavras com o primeiro-ministro, quando ele chegou ao quartel-general do Partido da Justiça e Desenvolvimento. Talvez lhe tenha dito o que viu na praça, antes do início da reunião do conselho executivo do partido. O encontro estava há muito marcado, para Ancara, mas foi mudado para aqui por óbvias razões: o único tema da agenda é a situação na Praça Taksim.

No final da reunião, Erdogan dirá aos jornalistas que não vai haver eleições antecipadas, ao contrário do que rezam os rumores, e que o Governo está disposto a ouvir as queixas "razoáveis" dos cidadãos. Não explicou como se vai processar esse diálogo, nem com quem.

Quanto ao projecto de destruição do Parque Gezi, para construir no lugar o que é visto como um centro comercial, réplica de um famoso aquartelamento de artilharia do Império Otomano, não há mudança de planos. Ontem o mayor da cidade descreveu o projecto como um "centro de exposições" e não um centro comercial. É esse o motivo inicial de todos os protestos, mas o Governo não cede.

"É um bom projecto", diz Adayilmaz, enquanto decorre a reunião do primeiro-ministro numa sala ao lado. "A Praça Taksim tem problemas de tráfego. E precisa de ser melhorada. Quando em Istambul se diz "a praça", referimo-nos à Taksim. Mas diga-me: é uma praça digna? Istambul não merece um sítio melhor? Merece mais do que isto. Queremos que esta cidade seja uma das mais importantes do mundo, como Nova Iorque, Paris, Londres ou Tóquio. Por isso temos grandes projectos para Istambul."

A preocupação ecológica, para o vice-presidente, não é o verdadeiro motivo dos protestos. "Eu andei na escola junto à Praça Taksim. Sabe quantas vezes fui ao Parque Gezi? Nenhuma. Fui lá hoje de manhã pela primeira vez na vida. As árvores que vão ser derrubadas são 12. Sabe quantas árvores este Governo mandou plantar em dez anos? Um bilião." Mas o que leva tanta gente a manifestar-se no parque? Se não são as árvores, é o quê? "São muitas e diversas razões", diz Adayilmaz. "Questões ideológicas, de estilo de vida. Alguns sentem que não têm sido ouvidos." E vão sê-lo agora? "Claro, já estão a ser. Resolveremos o problema falando, como em qualquer país democrático. Já ouvimos elementos da Plataforma de Solidariedade de Taksim, embora eu ache que eles não são representativos."

O Governo vai ceder em alguma coisa, em consequência dos protestos? O vice-presidente tenta lembrar-se de alguma coisa em que possa haver uma cedência, mas não lhe ocorre nada. O que não significa que não tenha sido aprendida uma lição. Foi e é esta: "Temos de melhorar a comunicação."

Porque se verifica que os manifestantes não estão bem informados a respeito das decisões e leis contra as quais protestam. Não apenas ignoram as vantagens do megaprojecto para o Parque Gezi, mas também fizeram confusão quanto à nova lei do álcool. O diploma, já aprovado, determina a proibição de bebidas alcoólicas em lojas, a partir das 22h, regra que existe em muitos países ocidentais. Mas as pessoas pensam que não se pode vender álcool à noite em bares e restaurantes.

Percebe-se que o assunto da comunicação tem sido muito discutido no partido. "Devíamos ter construído um modelo do projecto arquitectónico em 3D e tê-lo colocado em exposição no meio da praça", cogita o vice-presidente. Perante a sugestão de colocar lá o modelo agora, não contém uma gargalhada, imaginando o que aconteceria à maquete.
A solução portanto nunca é alterar os projectos, mas explicá-los melhor. Comunicação é a chave.

Comunicação ou propaganda? "Não, propaganda não."
Uma boa comunicação, que satisfizesse as pessoas, não se faria melhor incentivando uma imprensa livre, onde os grandes projectos pudessem ser discutidos?

"Na Turquia há imprensa livre."
Então por que motivo, nos primeiros dias dos protestos, com milhares de pessoas na praça e a polícia a carregar sobre elas, não houve uma linha nem uma imagem nos media turcos? Já é lendário o documentário sobre pinguins que a CNN turca emitiu enquanto decorria a carga policial.

"Posso dizer-lhe que a imprensa é bastante livre, comparada com há dez anos."
Foi primeira página nos jornais de todo o mundo, excepto na Turquia.

"Admito que a cobertura mediática nos dois primeiros dias não foi muito boa. Mas dois autocarros da televisão foram incendiados pelos manifestantes."
Para Erol Adayilmaz, a violência e vandalismo que ocorreu em toda a área de Taksim retira legitimidade aos protestos. Estabelecimentos comerciais foram destruídos, autocarros incendiados, erguidas barricadas nos acessos à praça. Isso não é maneira de fazer reivindicações, argumenta. "Numa democracia, o lugar correcto para a oposição lutar pelas suas ideias são as eleições."

Não ?? correcto as pessoas manifestarem-se?
"Sim, se o fizerem pacificamente."

Mas a manifestação era pacífica, até a polícia ter carregado.
"O primeiro-ministro já admitiu que foi feito um uso excessivo da força por parte da polícia. Houve um erro, um grande erro."

Mas a polícia não obedece a ordens do Ministério do Interior?
"Abaixo do ministro há os governadores e abaixo deles o chefe da polícia de Istambul. Já começou um inquérito."

Não se sabe quem deu a ordem de atacar e quem não deu a ordem de parar?
"Não sei. Tudo o que dissesse agora seria pura especulação."

Mas é certo que foi a polícia que iniciou a violência.
"E que me diz das organizações ilegais que incendiaram carros? Você sabe incendiar um carro? Exige uma técnica, não é qualquer pessoa que o pode fazer."

Mas isso aconteceu antes da acção da polícia?
"Que eu saiba não."

Então podemos responsabilizar a polícia pela violência que se sucedeu.
"Não me parece justo responsabilizar a polícia a 100% por acontecimentos que levaram à morte de pessoas."

Tem alguma prova de que a manifestação não foi pacífica antes da carga policial?
"Que eu saiba não. Mas as organizações ilegais que estavam lá são violentas."

Há provas de que tenham cometido alguma violência?
"Pessoalmente, não sei."

Podemos condenar alguém por aquilo que achamos que potencialmente poderá fazer?
"Tire as conclusões que quiser."

Como vai resolver o problema das pessoas que se recusam a abandonar a Taksim?
Aos poucos, as pessoas irão desistindo, diz o número dois do partido em Istambul. "Não vão querer misturar-se com as organizações ilegais e irão para casa. Vai ver que num dia ou dois as pessoas sinceras vão abandonar a praça."
Uma das organizações ilegais a que Adayilmaz se refere poderá ser o Dev-Sol, Partido Revolucionário de Libertação do Povo, um grupo de acção directa armada e ideologia marxista-leninista. Yasar Çelik foi membro do Dev-Sol. Foi preso em 1993, levado de prisão em prisão, torturado, durante 11 anos.
Está sentado a beber cerveja num bar da Rua Istiklal, perto da Taksim. Vem aqui todas as noites, mas não se aproxima da manifestação. "Eu sou conhecido da polícia e não quero que identifiquem o movimento a que pertenci com estes protestos", explica. "Se estivesse lá e a polícia atacasse, eu teria de lutar, e seria preso de novo. É melhor ficar aqui."
O Dev-Sol e outros movimentos ilegais não tiveram nenhum papel na organização das manifestações de Taksim, diz Çelik. "As pessoas vão para lá espontaneamente, individualmente. Ninguém organizou aquilo."
Nos anos 70 e 80, nenhum jovem se atreveria a ir para a rua protestar contra o Governo. "Seriam imediatamente presos e torturados." Mas hoje a juventude que enche a Taksim e o Parque Gezi pertence a uma geração que não conheceu a verdadeira ditadura. "Os que têm agora 25 anos tinham 15 quando Erdogan subiu ao poder. Nunca conheceram outro Governo. Nem lhes passa pela cabeça que possam ser presos, algemados e torturados numa esquadra de polícia. Por isso não têm medo. Isso é muito perigoso, não para eles, mas para o Governo de Erdogan."
Inicialmente, o primeiro-ministro reagiu brutalmente, como se faria nos tempos da ditadura. "Depois percebeu que não o pode fazer, por causa das redes sociais e das críticas do estrangeiro. Por isso voltou atrás. Agora está a fingir que respeita as pessoas. Mas se pudesse esmagava a população pela força da polícia, sem dó nem piedade."

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