domingo, 30 de junho de 2013

A confirmação da patética e medíocre inutilidade de Barroso expressa por críticas crescentes em França e na Alemanha.

Um homem só no topo da Europa


Por Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas / in Público

A um ano do fim do seu segundo mandato em Bruxelas, o presidente da Comissão Europeia tem sido visado com uma salva inédita de críticas, sobretudo de Paris e Berlim. Algumas são inerentes ao cargo, outras resultam da sua fragilidade
Não há memória de tamanha barragem de críticas contra um presidente da Comissão Europeia como a que foi desencadeada nas últimas semanas contra o actual titular do cargo, José Manuel Durão Barroso.
Os ataques têm sido particularmente virulentos a partir de França e Alemanha, os dois colossos determinantes de todos os sucessos e fracassos da União Europeia (UE) e sem os quais nada é possível.
Em Berlim, a impaciência contra Bruxelas é notória, sobretudo pelo que é visto como uma total incapacidade da Comissão para conceber e propor soluções para a crise económica e desemprego cada vez mais graves nos países periféricos.
Em Paris, a artilharia contra Barroso foi particularmente pesada nos últimos dias, com Arnaud Montebourg ministro da Recuperação Industrial, a acusá-lo de ser o "combustível" da extrema-direita, e Nicole Bricq, ministra do Comércio, a considerar que o presidente da Comissão "não fez nada neste mandato".
Enquanto o Governo alemão tem procurado, a pedido expresso de Barroso, acalmar o jogo com moles desmentidos públicos do que é dito em privado por vários altos responsáveis, François Hollande, Presidente francês, não levantou um dedo para calar os seus ministros. Pelo contrário: o Governo apoia "a substância" dos comentários de Montebourg, sublinhou esta semana a porta-voz do Governo, Najat Vallaud-Belkacem.
A fúria francesa foi desencadeada pelo termo "reaccionário" usado por Barroso para qualificar a exigência nacional de proteger a "excepção cultural" europeia do acordo de comércio livre com os Estados Unidos, para permitir a Paris continuar a subsidiar a produção musical e cinematográfica gaulesa.
Em Berlim, mesmo se o estado de espírito contra Barroso é menos bélico, a irritação não é menor. Subitamente, os alemães aperceberam-se de que estão a ser acusados de todos os males que afectam os Estados do Sul, e trataram de se distanciar do tipo de austeridade que está a ser imposta aos países sob programa de ajuda externa, como Portugal e Grécia.
Para os alemães, esta austeridade é uma responsabilidade da troika de credores europeus e do FMI encarregada de negociar e vigiar a execução dos programas de ajustamento económico e financeiro que constituem a contrapartida da ajuda.
Estas receitas, acusam altos responsáveis alemães, baseadas sobretudo em aumentos de impostos para baixar os défices orçamentais em vez de reformas estruturais para modernizar as economias, são totalmente erradas e contraproducentes.
Dentro da troika, Berlim visa particularmente a Comissão Europeia que é, de facto, a sua instituição-líder e aquela que deveria ter uma leitura mais política dos processos de ajustamento dos países ajudados.
O presidente da Comissão procura defender-se lembrando que são os Estados que tomam as decisões europeias, incluindo sobre os programas de ajuda. Formalmente é verdade, mas, na prática, nenhum ministro das Finanças leu alguma vez as centenas de páginas dos relatórios fornecidos todos os trimestres pela troika sobre a execução de cada um dos programas de ajuda: basta-lhes ler as conclusões para saberem se os países estão ou não no bom caminho e poderem libertar a parcela seguinte dos empréstimos (desbloqueados ao ritmo das necessidades nacionais de financiamento).
O que é inédito na actual vaga de críticas ao presidente da Comissão é a violência, a simultaneidade franco-alemã, mas, sobretudo, o facto de não se ter ouvido uma voz que seja em toda a Europa para o defender.
Comissão impopular

Parte da explicação desta irritação está no código genético da instituição: por definição, a Comissão Europeia e o seu presidente raramente são populares nos Estados-membros. Esta animosidade tem a ver com o facto de ter sido concebida na fundação da UE para sobrepor um interesse europeu supostamente superior e de longo prazo aos interesses imediatos e eleitoralistas dos Estados, sempre na perspectiva da construção de uma União "cada vez mais estreita" entre os povos da Europa.
Por via desta missão particular, a Comissão é a única instituição comunitária com o poder de apresentar propostas legislativas viradas para o bem comum europeu. Cabe-lhe, igualmente, impor o cumprimento das decisões tomadas sobre as suas propostas pelo conselho de ministros dos 27 Estados, cada vez mais em "co-decisão" com o Parlamento Europeu.
Por estas razões, não é difícil de perceber que os Governos resistam a que lhes seja imposto do "exterior" o que devem fazer, desde a gestão dos orçamentos à redução das emissões de CO2 dos automóveis, mesmo que tenham sido eles a decidir as regras.
Com a crise do euro e o reforço feito à pressa de alguma coordenação das políticas económicas para evitar um endividamento excessivo dos Estados, os Governos aceitaram transferir mais competências para Bruxelas. Só que, quando a Comissão as exerce, vários, a começar pelos franceses, revoltam-se.
Bruxelas tem outro sério problema, que é a falta de legitimidade política: os membros da Comissão são nomeados pelos Governos (um por cada Estado), sendo o presidente vagamente confirmado por um voto no Parlamento Europeu.
Barroso tem um problema adicional próprio resultante de ter sido uma "criação" do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, com o apoio do italiano Silvio Berlusconi e do espanhol José Maria Aznar - a coligação "pró-invasão americana do Iraque" de 2003 - para travar a ascensão do candidato franco-alemão: o então primeiro-ministro belga Guy Verhofstadt, um "federalista" europeu convicto e parte do grupo dos opositores à guerra.
Para Blair, Barroso era o candidato ideal para fazer a "ponte" entre os dois grupos de países, por ter integrado parcialmente a coligação pró-guerra com a cimeira dos Açores, embora sem ter enviado tropas para o Iraque.
A versão oficial de que Barroso foi um "coelho" tirado do chapéu à última hora para desbloquear o impasse gerado pelo veto britânico a Verhofstadt é um mito há muito desmontado: a sua candidatura foi meticulosamente preparada pela "coligação pró-guerra" durante vários meses e com a sua participação directa.
Apesar de profundamente contrariados, o então Presidente francês, Jacques Chirac, e o chanceler alemão, Gerard Schröder, não ousaram agravar a crise europeia do momento com um veto ao português.
O problema é que, nove anos depois, e apesar das mudanças políticas em Paris e Berlim, Barroso nunca conseguiu cair nas boas graças dos seus líderes.
A sua confirmação para um segundo mandato em 2009 resultou apenas da falta de alternativas capazes de satisfazer 27 países, mas, também, da vontade de franceses e alemães de manterem em Bruxelas um presidente fraco para poderem gerir a Europa como muito bem entendessem. O que jamais se coibiram de fazer.
No início do segundo mandato, em 2010, Barroso foi confrontado com o problema adicional da nomeação de um novo presidente do Conselho Europeu - as cimeiras de chefes de Estado ou de Governo da UE -, cargo criado no Tratado de Lisboa, para, precisamente, fragilizar o presidente da Comissão. De chefe incontestado da "Europa", Barroso passou a ter de partilhar os holofotes com um concorrente directo, o ex-primeiro-ministro belga Herman Van Rompuy, cujo gabinete está instalado a 50 metros do seu, separado apenas por uma rua.
Barroso nunca se conformou com uma concorrência que, de facto, diminuiu o seu estatuto junto dos líderes da UE, onde é Van Rompuy que impera. Em Berlim, sobretudo, o presidente da Comissão é acusado de passar o essencial do seu tempo em lutas de poder com o belga, em vez de se ocupar a repor a economia europeia nos carris.
Curiosamente, Barroso teve a possibilidade, no fim do seu primeiro mandato, em 2009, de atravessar a rua para se tornar no primeiro presidente do Conselho Europeu, quando os Governos da UE estavam à procura de um nome. Os seus próximos aconselharam-no a fazê-lo, por conhecerem a sua aversão à tecnicidade extrema dos temas que a Comissão tem de enfrentar todos os dias, à gestão dos mais de 30 mil eurocratas e à arbitragem permanente das sensibilidades dos Estados.
Do que Barroso gosta mesmo, dizem os seus próximos, é das actividades de representação externa da UE: é nas grandes cimeiras internacionais, com Barack Obama ou Vladimir Putin, que ele "está no seu elemento", refere uma fonte europeia.

Quis fazer como Delors

Por que é que Barroso não mudou de cargo? Segundo um responsável europeu que acompanhou todo o processo, porque quis, acima de tudo, seguir as pisadas de Jacques Delors, o seu mítico antecessor com quem, paradoxalmente, odeia ser comparado. Tendo Delors sido o único presidente da Comissão a exercer dois mandatos (e meio), Barroso quis ficar na história pelas mesmas razões.
O problema é que, na comparação inevitável com Delors, Barroso perde em toda a linha.
Tal como o actual presidente, Delors também foi uma segunda escolha dos Estados e, quando foi nomeado, não beneficiava de uma estima particular em Paris e Berlim. O ex-ministro francês das Finanças conseguiu, no entanto, conquistar rapidamente a confiança do então Presidente francês François Mitterrand, e do chanceler alemão, Helmut Kohl, não pelos seus olhos, mas pela sua visão da Europa, pelas suas ideias sobre o que fazer e como - do mercado interno à moeda única - e pela sua extraordinária capacidade de compreensão e de resolução das dificuldades dos Estados.
A grande força de Delors assentava, igualmente, no facto de conhecer a fundo todas as áreas de intervenção da Comissão e de se ter apoiado na grande qualidade dos funcionários da instituição, incentivando em permanência o debate e a criatividade internas e procurando regularmente nos serviços os eurocratas mais capazes de executar as suas ideias, sem se ofuscar com as hierarquias.
A "Comissão Barroso" é precisamente o oposto, assentando numa gestão presidencialista e totalmente hierarquizada, em que o debate real e sobretudo contraditório é quase inexistente e a iniciativa fortemente desencorajada. Com a agravante de que, nove anos depois da chegada de Barroso a Bruxelas, ninguém é capaz de lhe identificar uma visão clara para a Europa.

"Camaleão"

O rótulo de "camaleão" que lhe foi colado à pele no Parlamento Europeu logo nos primeiros meses, em 2004, devido à sua extraordinária capacidade de mudar de posição e de discurso em função do interlocutor, mantém-se actual em 2013.
Delors deve igualmente grande parte do seu sucesso à verdadeira equipa de choque de colaboradores de cinco estrelas de que se rodeou. Ao invés, a equipa de Barroso - salvaguardando algumas excepções - é motivo de consternação e até galhofa em Bruxelas, Paris e Berlim.
Por causa da sua aversão aos detalhes técnicos, é acusado em Lisboa, Atenas e Dublin de evitar interferir nos programas de ajuda, deixando os técnicos da Comissão das troikas em roda livre e sem o enquadramento político necessário para evitar as receitas que estão a asfixiar algumas destas económicas. A mesma crítica é ouvida em Berlim.
Como não dispõe de uma "opinião pública" própria a que se possa dirigir, Barroso dificilmente se pode defender dos ataques. Para isso precisa de passar pela intermediação do corpo de jornalistas - o maior do mundo - acreditado em Bruxelas. Mas Barroso, que vive mal com a crítica, tem uma má relação com parte da imprensa, o que reforça o seu isolamento.
O resultado é que, em grande parte devido à sua fragilidade, o presidente da Comissão se tornou no bode expiatório perfeito para todas as dificuldades e frustrações dos Estados.
O pior é que neste processo de atribuição de culpas, por muito violento que seja, a procissão ainda vai no adro: na contagem decrescente para as eleições europeias de Maio de 2014, Barroso vai ser sempre, e cada vez mais, a vítima ideal para todos os extremistas, populistas e eurocépticos que, ninguém duvida, vão saber explorar o descontentamento popular que alastra por toda a Europa ao sabor da crise económica e do desemprego.
A um ano de terminar o mandato, do alto da sua torre de vidro em forma de estrela, Durão Barroso é, e será, cada vez mais um homem só.

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