segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Praça Taksim é nossa, gritaram os manifestantes a Erdogan. Movimento amplo, laico e repentino


A Praça Taksim é nossa, gritaram os manifestantes a Erdogan.

Por Clara Barata in Público
03/06/2013

Protestar por causa da destruição de um jardim em Istambul tornou-se a forma de dizer ao Governo que não pode continuar a mandar como se mais ninguém contasse. Istambul voltou ontem à rua

Alguém subiu ontem ao cimo do Centro Cultural Atatürk, na Praça Taksim, em Istambul, para lá colocar um poster a dizer "Não se rendam". A mensagem é essa: a vitória é nossa. Dos manifestantes, da sociedade civil turca que não partilha os valores mais tradicionalistas, religiosos e conservadores que o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, se tem esforçado para inculcar na Turquia, ao mesmo tempo que o país tem crescido economicamente e se torna uma potência regional impossível de ignorar.
"Erdogan quer atacar a nossa maneira de viver, não tolera as pessoas que gostam de arte, que vivem ao estilo ocidental. Destrói os edifícios históricos, os cinemas e os teatros para os substituir por horríveis centros comerciais construídos pelos seus amigos", vociferava Erkan, um pai de família de 55 anos, que foi para a rua manifestar-se no sábado à noite, com a sua mulher e os seus dois filhos adolescentes, quando o correspondente do Le Monde o encontrou, com uma cerveja na mão.
Mas a polícia continuou a usar gás lacrimogéneo ontem à tarde, para tentar controlar os manifestantes, em Istambul e Ancara, depois de ter usado e abusado dele durante a madrugada. "Fazem-no constantemente, a polícia não pára de empurrar os manifestantes, que não estão a ameaçá-la. Temos muita dificuldade em respirar", dizia à AFP ontem à noite (hora de Istambul, mais duas horas do que em Lisboa) Gözde Azdemir, uma secretária de 27 anos.
Na madrugada de sábado para domingo, os manifestantes tentaram ocupar os edifícios onde estão instalados os gabinetes de Erdogan nas duas cidades, lançaram pedras da calçada e partiram semáforos e montras de algumas lojas, destruíram carros e consumiram cerveja e bebidas alcoólicas livremente - como uma bofetada à nova lei que proíbe a venda de álcool durante a noite. Gritavam "Governo, demissão!" e "Istambul é nossa!", relata a AFP.
Erdogan reconheceu que a violência policial foi um erro, mas prometeu não recuar face ao motivo inicial dos protestos - que, de contestação contra a demolição de um jardim para reconstruir uma caserna militar otomana, com um centro comercial lá dentro, se transformou num movimento de oposição ao Governo e a tudo o que representa.
"O vosso problema é com a plantação de árvores? Não estamos a cortar árvores. O que se está a fazer é a arranjar a Praça Taksim, no âmbito do projecto de tornar toda a zona numa área para peões", afirmou Erdogan. "Estão a incendiar e a danificar as lojas. Isto é democracia?", exaltou-se, citado pela edição online do jornal turco Hürriyet.
"Dizem que Erdogan é um ditador. Se chamam a quem serve o público um ditador, não posso dizer mais nada", declarou o governante, que lidera os destinos do país desde 2002.
No entanto, disse que ainda não foi tomada uma decisão definitiva quanto à construção de um centro comercial. Mas, sem ceder um milímetro, prometeu construir uma mesquita na Praça Taksim, além de dizer que o Centro Cultural Atatürk devia ser demolido.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ahmet Davutoglu, decidiu intervir para apelar ao fim dos protestos contra o Governo, através de uma mensagem no Twitter: "A continuação das manifestações não trará nenhum benefício, antes vai arruinar a reputação do nosso país, que é admirado na região e no mundo."

Roubo das memórias

Mas Erdogan e o Governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), uma formação política de inspiração islâmica que pretende ser algo equivalente a um partido democrata-cristão europeu, não estão a enfrentar as questões no cerne da contestação. As manifestações são muito mais do que o protesto contra a destruição de um jardim, são um grito muito mais amplo.
Por um lado, contra a política conservadora e cada vez mais autoritária do Governo, que exclui o diálogo com quem pense de forma diferente. Mas também contra a política de promoção de grandes obras públicas, descaracterizadoras das cidades e do património, e a percepção de que o boom da construção civil está a beneficiar de corrupção.
"O AKP está a criar o cenário de fundo para os seus sucessos e ao fazê-lo rouba uma parte dos habitantes de Istambul da sua história e das suas recordações", escreve o especialista em Turquia do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble (França), no site Observatoire de La Vie Politique Turque.
Há uma série de projectos gigantes a acontecer ao mesmo tempo: o novo aeroporto, que será o maior do mundo; a construção de uma terceira ponte sobre o rio Bósforo, que começou há dias; o projecto de Kanal para tornar duas vezes mais largo o Bósforo; o muitíssimo criticado projecto de metro subterrâneo Marmarail, numa zona geologicamente frágil no que diz respeito a sismos, que vai ligar a parte europeia e a parte asiática da cidade; e uma mesquita gigantesca a edificar na colina de Çamlica.
Em resposta a esta fúria edificante têm surgido movimentos de cidadãos, alertas de arquitectos, arqueólogos, engenheiros e políticos. Mas desta vez o protesto ganhou um fôlego muito maior.

Movimento amplo, laico e repentino


Quem saiu à rua para contestar Erdogan e o Governo? Gente de todas as filiações políticas, dizem especialistas. "Estas manifestações não são obra de um punhado de militantes de uma organização, mas a expressão de uma frustração generalizada de pessoas de todas as tendências políticas", afirmou à AFP o politólogo Ilter Turan, da Universidade Bilgi de Istambul. "É um movimento popular sem precedentes, repentino, que resulta da frustração das franjas laicas da sociedade, que se sentem sem influência sobre a vida pública há dez anos", desde que o Governo do AKP está no poder, considerou Sinan Ulgen, da Fundação Carnegie Europe. Há crescimento económico, maior acesso à saúde e à educação, mas há uma crescente influência da religião na vida pública - quando a separação entre o Estado e a religião foi um dos fundamentos da criação da república turca.

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