segunda-feira, 17 de junho de 2013

Entrevista a Jacques Delors, o mais famoso presidente da Comissão Europeia.


"É preciso refazer a Grande Europa"


Por Teresa de Sousa in Público
16/06/2013

Entrevista a Jacques Delors, o mais famoso presidente da Comissão Europeia.

A consolidação orçamental só é possível se a Europa fizer a sua parte, que é a do crescimento. A União Europeia só pode funcionar se todos tiverem um lugar à mesa. E os europeus já não têm muito tempo para evitar o declínio. Jacques Delors, 88 anos, o mais famoso presidente da Comissão Europeia, insiste em que os líderes europeus ainda não conseguiram apagar o fogo. Apenas o afastaram.

Foi presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995. Tirou a Comunidade do marasmo dos anos 80 com o projecto de mercado único. Atravessou o choque da queda do Muro e da implosão da União Soviética. Alertou para alguns dos erros cometidos nas negociações de Maastricht que levaram à União Europeia e ao euro. Agora, alerta para que a Europa continua à beira do abismo. Com o mesmo vigor de sempre. Foi ele o primeiro a dizer, noutras circunstâncias, que Portugal era um "bom aluno". Hoje, diz que a Europa tem de fazer a sua parte para ajudar os países em dificuldades e não o tem feito. Também critica os governos que se endividaram sem cuidado. Esteve em Lisboa para fazer uma conferência na Gulbenkian. A sua mensagem principal: é preciso conciliar o rigor com o crescimento e a Europa pode fazê-lo. A segunda mensagem é a de que todos os países têm de contar na mesa do Conselho Europeu. Como no seu tempo.

Se conseguíssemos recuar no tempo cinco anos, era possível imaginar a dimensão desta crise europeia?
Nesta crise, há dois elementos. Por um lado, a crise financeira. Vivíamos num clima neoliberal, de total optimismo, e acreditávamos que tudo era possível com o dinheiro. E este estado de coisas teria necessariamente de terminar um dia. Por outro lado, a má governação do euro. A crise também era previsível, porque não tínhamos armas suficientes para resistir a esta tempestade. Estes dois elementos conjugaram-se. Uma crise financeira internacional e uma má governação do euro.

A crise é apenas o resultado da má governação do euro, ou tem, pelo contrário, razões mais profundas? É uma crise também do reequilíbrio das relações de força dentro da Europa?
Quando digo que é uma crise de governação da zona euro é porque, desde que criámos a moeda única, com esse famoso Pacto de Estabilidade e de Crescimento, aceitámos que, num determinado momento, a Alemanha e a França não cumprissem os critérios e, depois, deixámo-nos ir, enquanto os países se endividavam e alguns bancos faziam loucuras. Nunca vimos o Eurogrupo levantar um dedo para fazer alguma coisa capaz de travar este desenvolvimento negativo. É por isso que digo que os governos são igualmente responsáveis, na medida em que aproveitaram a estabilidade do euro e as baixas taxas de juros para fazer loucuras, tanto ao nível do Orçamento dos Estados como ao nível dos bancos. Há países que estão numa crise profunda essencialmente devido ao sobreendividamento - como é o caso de Portugal e da Grécia. Mas esta é uma crise também devida à loucura dos bancos, como é o caso da Irlanda e da Espanha.

A receita para vencer a crise, prescrita em Berlim, não tem dado grandes resultados. Os países do Sul mergulharam numa profunda recessão que agora atinge os países do Norte. O desemprego é demasiado alto.
Já lhe referi as razões que nos levaram a esta situação difícil. Em primeiro lugar, os excessos do liberalismo financeiro e os bancos; em segundo, a má governação da zona euro e, em terceiro, os países que se endividaram de forma pouco razoável. Mas quero acrescentar em relação a este terceiro elemento que, mesmo se a Europa fosse miraculosa, nada poderia impedir os povos de pagarem os erros dos seus governos. E pagamos também uma reacção que foi demasiado tardia, devido às hesitações da chanceler alemã, nomeadamente. Ela hesitou demasiado entre 2010 e 2011. Só a partir de finais de 2011 e 2012 percebeu que o incêndio ganhava terreno e que era preciso entrar numa fase que permitisse aos bombeiros agir. Para controlar o fogo, mas não mais do que isso.

Há muitas coisas que ainda falta fazer?
Sim. Já que estamos em Portugal, um país que sofre muito, com o desemprego dos jovens que aumenta, as empresas que fecham as portas, o que é importante hoje é que os esforços que está a fazer possam ser apoiados por um esforço de apoio ao crescimento que venha da Europa. Para retomar a fórmula do nosso amigo, infelizmente já falecido, Tommaso Padoa-Schioppa [antigo ministro italiano e presidente do think tank Notre Europe-Instituto Jacques Delors entre 2006 e 2010], que tinha uma frase lapidar: aos Estados o rigor, para poderem corrigir os seus erros, mas à Europa o relançamento. O que falta hoje não é apenas uma mensagem de esperança, é colocar todos os meios da Europa ao serviço do estímulo das economias, e rapidamente, evitando esses processos administrativos lentos. Por exemplo, permitir a utilização mais rápida dos fundos de coesão. Já houve uma decisão sobre um "pacto para o crescimento e o emprego" de 120 mil milhões, e é preciso pô-lo em marcha. Isso inclui os empréstimos do Banco Europeu de Investimento (BEI), e espero que o programa de ajuda aos jovens seja aplicado rapidamente e com determinação. Tudo isto é muito duro, com famílias que se vêem obrigadas a apoiar os filhos, com a queda do consumo. É preciso que, face a tudo isto, a Europa faça um gesto poderoso e concreto. Se a Europa se empenhar no relançamento, será mais fácil alcançar o rigor [orçamental] de uma forma mais suportável pelos povos.

Quando o Presidente Hollande foi eleito, tentou colocar na estratégia europeia de combate à crise esta dimensão do crescimento. Mas constatamos que as suas tentativas não resultaram em nada.
Um governo nacional que está perante uma emergência, se tem uma boa administração, pode reagir rapidamente, ao passo que a má governação do euro e as regras administrativas [de Bruxelas] fazem com que tudo seja demasiado lento ao nível europeu. Não basta dizer belas palavras. Os povos sofrem demasiado e começam a inquietar-se, mesmos nas economias mais fortes. É preciso que vejam gestos da Europa, que tem de sacudir a letargia. Se há um tesouro de 120 mil milhões, é preciso parti-lo com um machado e abrir o cofre.

O Presidente Hollande e a chanceler Merkel firmaram recentemente um novo compromisso, para ajudar a ultrapassar as suas divergências. Como é que olha para isso, sabendo nós que a Europa não funciona sem um entendimento entre Paris e Berlim?
Deixe-me explicar-lhe a minha filosofia sobre a gestão da Europa: a aliança franco-alemã é necessária, mas não é suficiente.
Enquanto fui presidente da Comissão, posso dizer-lhe que Espanha ou Portugal eram países que pesavam nas decisões. É preciso que hoje todos os países voltem a ter uma palavra a dizer. É preciso que o primeiro-ministro português, quando deixa Bruxelas, possa dizer: não me limitei a submeter-me a um tratamento difícil, participei nas decisões graças à soberania partilhada. Não podemos dar a imagem de uma Europa como a que davam Sarkozy e Merkel. É preciso que todos participem nas decisões e preservem o orgulho de cada povo.

A sua filosofia pode ser perfeita, mas a realidade destes últimos tempos é completamente diferente.
Não é uma razão suficiente para que eu abandone as minhas ideias. Elas funcionaram.

Sei isso perfeitamente. Mas hoje nada se pode decidir na Europa contra a vontade da Alemanha. É esta a grande transformação europeia. Como encara este novo poder da Alemanha?
O facto de os países da zona euro estarem, na sua maioria, em dificuldades, ao mesmo tempo que a Alemanha se sai bastante bem, fez com que a relação de forças lhe fosse favorável. Mas é uma relação de forças provisória. Mesmo que as estruturas da economia alemã sejam satisfatórias, lembro-lhe que este ano vão ter um crescimento fraco, de 0,8%. Por isso, penso que chegou o momento de os outros países dizerem que querem uma soberania partilhada, que reconhecem as suas próprias dificuldades, mas não se limitam a cultivar um sentimento de culpabilização perante a Alemanha. Tanto mais que para se alcançar um crescimento sem inflação e sem endividamento os países deverão tomar caminhos diferentes, embora avancem todos na mesma direcção. As estruturas económicas não são as mesmas...

A Alemanha compreende isso? Até agora o menu não tem variado muito.
Está a compreender cada vez mais. Há eleições em Setembro, o que não facilita as coisas. Mas, se quiser, digo-lhe que não desespero. Quando estava na Comissão, todos os países contavam.

Isso era noutro tempo...
Mas é preciso voltar a ser assim. Se não pode ser refeito por um velho de 88 anos, pode ser refeito com outros, mais jovens, que pensam como eu.

Hollande conseguiu obter uma espécie de compromisso com Merkel: austeridade, mas também crescimento....
É uma abertura, mas ainda não podemos dizer mais do que isso. O documento é ainda muito vago, mas tem alguma abertura. Os outros países-membros da zona euro devem apropriar-se deste texto, apoiando-se nos seus pontos fortes, para conseguir um reequilíbrio entre o apoio ao crescimento a curto e médio prazo, a consolidação das finanças públicas e a harmonização progressiva dos sistemas fiscais no interior da UEM.

É o governo económico da zona euro que Hollande defende e que a chanceler começa a aceitar um pouco?
Sim, mas essa é justamente a parte mais vaga do texto.

Alguns analistas dizem que o acordo é, sobretudo, para garantir que a França fará as suas reformas estruturais.
Não. Não podemos dizer isso. O debate entre franceses e alemães sempre foi difícil, mas agora é ainda mais por causa da forte superioridade da economia alemã sobre a economia francesa. Por isso, com Sarkozy ou com Hollande, seria sempre extremamente difícil. Mas eles estão na boa direcção. Vou defender na Fundação Gulbenkian [esta entrevista antecedeu a conferência de Delors a 5 de Junho] que se faça uma cooperação reforçada na UEM, de forma a dotá-la de uma capacidade de decisão rápida, com um presidente do Eurogrupo, com um orçamento próprio da zona euro, que será, para usar um termo que conhece, um superfundo de coesão e, em terceiro lugar, um instrumento de estabilização do ciclo económico. O superfundo estaria lá para permitir a países como Portugal, Grécia, Espanha e outros o restabelecimento de uma estrutura [económica] que seja válida para o futuro - com uma base industrial e uma base de investigação científica que sejam suficientes. É preciso pôr em prática aquilo que eu já fiz no meu tempo, quando Portugal aderiu, com uma adopção do Pedip-Programa de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa: é este espírito de coesão que é preciso aplicar com meios específicos na zona euro.

E crê que a Alemanha está preparada para aceitar essas propostas?
Se é verdade que o fogo se afastou um pouco, nós continuamos à beira do precipício.

Já disse isso há uns dois anos.
É verdade. Em Agosto de 2011. Porque não se fazia nada, e mesmo os bombeiros não tinham água. Creio que isso abalou um pouco os responsáveis, porque não era meu hábito falar de forma tão forte. Já foram feitas algumas coisas, mas ainda não o suficiente.

Disse que a economia alemã é muito forte, talvez porque se adaptou melhor à globalização, ao contrário da França e dos países do Sul. É esta a razão de fundo?
Sim. Nós, que não somos alemães, não podemos desejar que a Alemanha vá mal para conseguirmos a convergência. A Alemanha fez um esforço notável nestes últimos dez anos. Mas beneficiou também da zona euro e do alargamento, porque pôde subcontratar nos países de Leste - República Checa, Hungria, Bulgária, Polónia - e está agora bem. Mas os outros países deixaram-se ir e não fizeram esse esforço.

Pensávamos que estávamos todos protegidos pelo euro...
Foi um euro forte e taxas de juro baixas que criaram as bolhas financeiras em Espanha, na Irlanda e, um pouco, aqui. O que vos diferencia dos outros é que, mesmo com o sofrimento, as pessoas querem sair desta situação e há um elevado espírito cívico. As medidas da troika estão a ser aplicadas, mas talvez com algum excesso de zelo, porque não há o equilíbrio entre a economia e a moeda. Mas Portugal, e desculpe-me dizer isto, é um bom aluno. Só que o bom aluno precisa não apenas que o incêndio se afaste, mas que lhe dêem forças para se reconstruir no sentido de uma economia sustentável nos próximos dez anos. É este o papel da Europa.

O problema é que aqui, como na Grécia ou Espanha, há um terrível custo social. Como vivemos em democracia, até para os bons alunos há limites. As democracias não suportam tudo.
Tem razão em dizer que a situação actual representa um risco para a democracia. Há movimentos antieuropeus e populistas, mas há também movimentos de pessoas que já não aguentam mais. É preciso ter tudo isto em conta e os dirigentes europeus devem ter atenção a que esses países não atravessem a linha vermelha.

E acredita que eles compreendem isso?
Até agora não têm compreendido muito bem.

E a França?
A França compreende melhor os problemas da Grécia, de Portugal ou da Espanha. Diria que 80% da classe política francesa compreende perfeitamente o que se está a passar, porque se sente mais próxima desses países do Sul. Mas é preciso encontrar as boas soluções e é preciso também convencer a Alemanha, a Áustria, a Finlândia, a Holanda.

Como explica as dificuldades económicas da França? Há uns dez anos, a economia francesa ainda era muito competitiva. O que aconteceu?
No último relatório que fiz quando presidia a uma instância de reflexão francesa, em 2004, a minha primeira constatação foi a de que a competitividade da economia era insuficiente. E isso não se devia apenas ao seu outro mal, que é o défice do sector público. Essa falta de competitividade já era o problema número 1 da França. A questão do défice acabará por ser resolvida e os franceses vão compreendê-la. Mas a competitividade não é a mesma coisa: a questão é saber se o ADN dos franceses consegue adaptar-se a este novo mundo de competição que é hoje o nosso. Desde o início dos anos 2000 que algumas pessoas têm chamado a atenção para a questão da competitividade. Trata-se de um factor complexo. Depende das infra-estruturas, do sistema de educação, das capacidades de inovação e de I&D, mas também do ADN dos chefes das empresas e da sua capacidade para imaginar as novas circunstâncias. Este é, praticamente, o mal francês, na minha opinião. Era este mal que teria sido necessário atacar imediatamente nos últimos dez anos.

Com reformas?
Dou-lhe um exemplo. Falamos muito, em França, do desemprego dos jovens, que é importante, mas que não tem a ver com a situação trágica de Portugal. Sabe qual é o número de estudantes que abandonam o ensino secundário sem diploma? Cento e trinta mil. A Comissão [Europeia] nem se dá conta disto e só fala dos seus gadgets habituais para reduzir o desemprego. Mas este é um ponto essencial. Quando eles saem da escola sem diploma, perdem a confiança em si próprios, interrogam-se sobre aquilo que vão fazer. Fizemos um estudo sobre estes jovens e tivemos dificuldade até em os encontrar. Desapareceram na natureza. Mas é esta a causa essencial do desemprego jovem...

São marginalizados.
É isso. Na universidade, 20 mil jovens abandonam os estudos ao fim do primeiro ano. Talvez por falta de motivação ou de orientação. São elementos que jogam para a competitividade. É por isso, aliás, que sempre pensei que a competitividade alemã era forte, não apenas por causa do ADN, como ironizei há pouco, mas também pelo sistema de aprendizagem, chamado "de alternância". A alternância é um meio para os jovens encontrarem o seu caminho e acumularem estudos teóricos e práticos....

Acredita que os alemães resolveram esse problema melhor do que os outros?
Sim e há já bastante tempo. Desde que a RFA reencontrou a sua liberdade, é um sistema que tem funcionado bem. Houve um momento em que esse sistema foi criticado, dizendo-se que não gerava conhecimento e que era preciso construir uma escola de grande velocidade, um TGV educativo. Mas a verdade é que o sistema continua a funcionar na Alemanha e é também uma das razões para o bom clima social nas empresas. Porque o engenheiro e o operário seguiram os mesmos estudos. É fácil criticar a Alemanha, mas é preciso também compreender as razões do seu poder económico.

Fez o seu trabalho antes dos outros.
Fiz uma lei em 1971 sobre a formação ao longo da vida de maneira a que as pessoas que saíam da escola sem nada de concreto pudessem recuperar depressa a sua formação, actualizar os seus conhecimentos, procurar um novo trabalho. Hoje as despesas de formação contínua representam 1,6% do PIB em França, embora nem sempre seja bem utilizado.

Costuma dizer-se que a França não gosta de reformas, só gosta de revoluções...
Não... Há um relatório da Comissão que diz que é preciso fazer reformas. O Conselho Europeu diz que é preciso fazer reformas. Os governos dizem que é óbvio que é preciso fazer reformas. Mas quais reformas? Que reformas concretas? As reformas devem ser adaptadas ao temperamento e à história de cada povo. Isso ninguém diz. A Comissão acaba de apresentar um relatório sobre a França que mistura coisas boas com, por exemplo, a mudança do sistema dos notários. Quem é que acredita que seja essa a dimensão do problema? Não é preciso que os altos funcionários venham dar lições aos governos demasiadas vezes.

Hoje a Comissão está muito longe de ter a influência política que tinha no seu tempo. Hollande respondeu com enorme dureza a essas sugestões.
Foi a reacção do "galo"... Ele tem razão quando se trata dos notários, mas não tem quando a Comissão diz que é preciso um plano de consolidação orçamental prolongado. Isso é normal. Mas, quando a Comissão se ocupa dos regimes de pensões, faz mal. Os países não têm a mesma situação demográfica, nem o mesmo sistema de pensões. Mesmo que a Comissão, nomeadamente por causa de Sarkozy e de Merkel, ou com um novo presidente permanente do Conselho Europeu, tenha perdido parte da sua influência, é também preciso que os funcionários da Comissão sejam razoáveis, quando analisam a situação de cada país, que não sejam demasiado tecnocratas, nem demasiado pretensiosos e que se limitem a ir ao essencial, reconhecendo as especificidades de cada país.

Mas o que vemos também com o decorrer desta crise é que o poder de decisão mudou de lugar: de Bruxelas para os governos, e sobretudo para alguns. Isso quer dizer que o velho método comunitário deixou de funcionar e que o poder está todo no Conselho Europeu?
Não é exactamente assim. A Comissão só tem o poder de iniciativa, que deve utilizar bem. Mas nunca foi a Comissão a decidir. Simplesmente, quando a Comissão funcionava muito bem, tínhamos a sensação de que era ela que decidia, porque os governos adoptavam as suas propostas.

Seja como for, a Comissão tem hoje muito menos influência sobre o que se passa, é menos respeitada, consegue fazer menos. E isso não deixa de ser um problema.
Deixo-a com a responsabilidade da sua constatação.

O presidente da Comissão é português, mas podemos criticá-lo.
Como antigo presidente da Comissão, não critico as pessoas. Não é esse o meu papel. O meu dever é defender a Comissão enquanto instituição. No nosso think tank Notre Europe, brilhantemente representado aqui [o actual presidente é António Vitorino], não falamos dos homens. Falamos das instituições. Somos fanáticos defensores do bom funcionamento das instituições e fazemos propostas que podem reforçar o direito de iniciativa da Comissão, se ela quiser prestar-lhes atenção.

Escreveu um artigo com o antigo chanceler Gerhard Schröder sobre o crescimento e o emprego que saiu no Wall Street Journal. Isso quer dizer que há outras formas de dirigir a Europa? Mesmo na Alemanha?
Desde a preparação da criação do euro, em 1997, quando os líderes europeus da altura deixaram cair a parte económica, avisei que, ao lado do Pacto de Estabilidade, seria preciso um pacto de coordenação das políticas económicas. Nem sequer lhe chamei "governo económico", para não assustar ninguém. Ninguém escutou, fizeram o lado monetário. Por outras palavras, a UEM marchava apenas com uma perna, a monetária. E isso nunca foi rectificado. Nos bons anos, funcionou. Vimos a zona euro criar 15 milhões de empregos entre 2001 e 2008. Agora o sistema deixou de funcionar. Se tivesse funcionado, tínhamos dito em tempo útil aos gregos, aos portugueses, aos espanhóis, aos irlandeses: atenção que as coisas não estão a correr bem. E até existem instrumentos para o fazer. Mas o Eurogrupo deixou criar as bolhas: imobiliária em Espanha, bancária na Irlanda... E havia também o presidente do Banco Central Europeu que poderia ter prestado alguma atenção. Mas não, toda a gente reagiu de forma mole. Ora, a zona euro não pode viver com uma governação mole.
Fui educado por vários patrões, na minha vida profissional. Quando tinha de redigir relatórios, houve um patrão formidável que me disse o seguinte: "Sr. Delors, é preciso ser inventor de simplicidade." A democracia é a pedagogia e a simplicidade. Quando não se compreende nada de um sistema e, além disso, se sofre, as pessoas enervam-se e vêm para a rua.

É o que se passa hoje na Europa, cada vez mais. Como é que vê as decisões do BCE e do seu presidente, que toda a gente diz que evitaram o desastre?
No quadro do tratado, tal como existe, e levando em conta o olhar potencialmente acusador dos alemães, o BCE de Mario Draghi fez um trabalho formidável. Afastou o incêndio e a especulação nos mercados. E nem sequer foi um trabalho excessivo, porque não se tratou de uma política que gerasse inflação. Desencorajou a especulação e deu também alguma esperança aos povos, de tal modo que, por exemplo, Portugal pôde fazer uma emissão de obrigações bem sucedida. Tudo isto é devido a este papel pertinente do BCE.

No futuro vai ser preciso mudar os estatutos do BCE?
Não, não. No dia em que o BCE fosse apenas um executante das políticas [dos governos], acabava a moeda forte. Acabava o rigor e a sabedoria. É preciso mantê-lo como está, porque também pode agir com talento e com souplesse. Draghi deu provas de um enorme talento.

A Europa está concentrada na sua crise interna, enquanto, lá fora, o mundo está a mudar a uma grande velocidade. Isso quer dizer que não olha com a devida atenção para esse mundo para tentar, pelo menos, adaptar-se a ele? Arrisca-se a perder a sua influência?
Vivemos numa grande mutação, uma das mais importantes que a história do mundo conheceu. Com milhões e milhões de pessoas que querem comer, querem tratar-se, querem produzir, querem ir à escola ou à universidade. E povos que querem ter também uma palavra a dizer. A prova é o papel muito importante que estão a desempenhar na OMC. Diante disto, podemos ter uma atitude de receio, que determinará o declínio. Ou, então, podemos adoptar uma atitude de consciência, olhando para as nossas próprias fraquezas, abrindo-nos a esse mundo e, dessa forma, poderemos pensar numa renovação da Europa. A construção europeia é uma aventura fantástica do século XX e do início do século XXI. Mas ela apenas faz sentido se, depois de ter sabido responder ao mundo de 1950, souber agora adaptar-se ao mundo de hoje. Precisa de ser capaz de encarar com muita determinação a concorrência dos outros, mas precisa também de se manter aberta aos outros e não pretender que só a Europa tem valores universais. Vaclav Havel disse-o melhor do que eu: podemos não conseguir erguer-nos como uma potência, mas podemos erguer-nos como uma referência. A visão do mundo é o que mais falta nos nossos dirigentes. Eles sabem tudo isto. Se lhes falar do Brasil, eles respondem: mas, meu caro, eu sei tudo isso. Só que não tiram as consequências. Se continuarmos assim, não evitaremos o declínio e o declínio não será agradável para as futuras gerações. Alertei há já bastante tempo para o facto de as gerações adultas estarem a fazer as suas vidas sem se ocuparem dos jovens. Hoje temos o resultado.

Politicamente é terrível.
Politicamente terrível e financeiramente insustentável. Resistir ao declínio é também pensar nas gerações futuras. É por isso que os membros do Conselho adoptaram recentemente uma grande iniciativa concreta para ajudar os jovens que saem da escola, oferecendo-lhes uma formação, um estágio ou um primeiro emprego. Precisamos de uma grande iniciativa da qual ainda nos lembremos daqui a dez anos. Não se trata de 100 mil jovens. É preciso cobrir 600 mil jovens na Europa. Seremos capazes não apenas de encontrar o dinheiro, mas de pôr em prática dispositivos que não se arrastem durante quatro ou cinco anos?
Se a Europa conseguir levantar-se, depois desta crise, e olhar para lá das suas fronteiras, será possível, nas novas condições de competitividade, preservar o essencial do modelo social europeu?

É perfeitamente possível. O modelo social europeu não é a contrapartida que vamos conceder às mudanças mundiais e aos novos países que emergem. Simplesmente, o que precisamos de entender é que temos de ser mais produtivos do que os outros, que devemos ser mais inventivos do que os outros, e que devemos, nos nossos sistemas de Segurança Social, lutar contra todos os excessos e todos os desperdícios. E é preciso também perceber que tem de se dar mais aos que têm menos, aos excluídos, do que àqueles que estão bem instalados na sociedade. As reformas da Segurança Social têm de ser feitas de acordo com este objectivo. Temos um sistema de Segurança Social que toda a gente inveja. É por isso que os nossos adversários tentam destrui-lo.
Se preservarmos os valores fundamentais dos nossos sistemas, se encontrarmos um bom compromisso entre o poder público e os mercados, se conservarmos os nossos valores criativos e intelectuais sem entregar a cultura apenas ao mercado, se mantivermos as nossas especificidades, porque a Europa é rica na sua diversidade, temos 20 anos para resolver esta questão com resolução e firmeza. Se não o fizermos, é possível que, daqui a 20 anos, ainda exista uma organização europeia fraca - uma loose confederation, como dizem os ingleses -, podemos continuar a celebrar a Europa, mas será a Europa do desemprego, dos museus, da nostalgia...

É esse o risco?
Exacto. E esse risco é para todo o navio europeu. Se os que são mais fortes pensam que se livrarão deste destino, enganam-se.

A Alemanha vê-se num mundo em que ainda pode ser altamente competitiva e, por vezes, tem a tentação de impor a sua vontade.
Depois da queda do Muro, a Alemanha não podia resistir ao facto de voltar a estar no centro do mundo, com uma economia poderosa, inovadora, competitiva, com uma capital que se tornou uma das mais importantes da Europa. Mas os alemães devem conhecer os seus limites. A Alemanha faz cerca de 60% do seu comércio com os outros países europeus. Mesmo de um ponto de vista meramente pragmático, tem de saber que não poderá ir demasiado longe, da mesma maneira que outros governos europeus deviam ter sabido que iam demasiado longe com os seus défices. E esta é uma questão não apenas das instituições, mas também das pessoas. Quais são as pessoas que são capazes de, ao mesmo tempo, amar e admirar os alemães e de lhes dizer a determinada altura: "Caros amigos, isso já não é possível!"?

Quando hoje olhamos para a paisagem política europeia, vemos regressarem clivagens entre o Norte e o Sul, com preconceitos que pensávamos definitivamente enterrados, com alusões à chanceler alemã que acreditávamos ultrapassadas, com o olhar dos países do Norte sobre os "incapazes" do Sul. Isto vai deixar feridas profundas. Como é que se recupera o espírito europeu depois disto?
É preciso que haja dois ou três líderes que agarrem na sua bengala de peregrinos e tentem retomar o velho e bom espírito. Vão fazê-lo? Talvez não. A Europa atravessa, sem dúvida, a crise mais grave que conheceu, desde a guerra 1939-45. Mas pode sair dela. Não é apenas uma questão de instituições. Não é só uma questão de Portugal pôr ordem nas suas contas, é uma questão de visão geral. Quando vemos, por exemplo, que a França decidiu, e bem, intervir no Mali para evitar que o país caísse na mão de terroristas, viu a reacção dos outros.

Que foi ignorar os esforços franceses....
Sim. Quando Hollande chegou ao Conselho Europeu, houve dois ou três que lhe deram umas palmadinhas nas costas... A Europa não tem política externa....

Mas isso também é dramático.
Mas é mais difícil de fazer do que uma política económica e social comum. O que está aqui também em causa é que a crise do euro ocultou a Grande Europa. Devemos prestar atenção aos outros países que não estão no euro e dizer-lhes que a Europa a 27 e, amanhã, a 28, tem um sentido. É um conjunto único de países que decidiram partilhar a sua soberania, que preservam a paz entre eles, cujos povos circulam livremente, com um mercado que os une e que ainda deve ser aprofundado, e é uma realidade que está aberta ao exterior, aos seus vizinhos, a África, que ajuda os países em desenvolvimento, que ajuda todos os que sofrem guerras e tiranias. É um motivo de orgulho, esta Grande Europa. Mas deixou de se falar dela. É preciso dar-lhe o lugar que ela merece. É uma questão de saúde moral e política.

Mas é também uma questão de liderança e de visão.
Com certeza.

Trabalhou com François Mitterrand e Helmut Kohl. Era diferente.
Sim. Mas as cartas franco-alemãs da altura [gargalhada] era preciso também emendá-las um pouco. Ou até esquecê-las. É o papel da Comissão.

Li algures que convidou o Reino Unido a sair da União Europeia. Mas essa Grande Europa de que fala, sem o Reino Unido, é uma coisa bastante diferente.
O que eu disse foi outra coisa. O que disse aos ingleses foi que, se quiserem sair da Europa, insisto, se quiserem, eles... Não os convidei a sair. Desejo que fiquem. Mas se quiserem sair, nesse caso, penso que a União Europeia deve fazer com eles um acordo no plano cultural, económico, comercial, de modo a mantê-los na grande família europeia. Disse isso também por outra razão. Quando discutimos as perspectivas financeiras plurianuais, os países que não queriam ir mais longe tiveram o apoio da Grã-Bretanha. Tenho uma fórmula que espero que não ache demasiado vulgar: o Reino Unido tem um grande travão e a União Europeia um pequeno motor. Não quero que o Reino Unido seja o travão que impeça a Europa de avançar.

Quando se olha para Portugal de Berlim ou de Bruxelas ou Paris, toda a gente insiste em dizer que estamos a fazer tudo bastante bem. É de novo a história do "bom aluno". Nós, em contrapartida, não vemos nada de bom, nem sequer alguma esperança.
Pelo menos aquilo que eu ouço dizer é que são bons alunos. Acrescento que os portugueses são muito trabalhadores...

Mas pouco produtivos.
Sim, mas são duros na queda, o que é uma condição fundamental. O que lhes falta é que a Europa lhes diga: vocês estão a fazer este esforço, mas nós vamos ajudá-los a preparar o crescimento de amanhã. É isso que não acontece. E, por isso, este equilíbrio entre crescimento e rigor é fundamental nesta fase. Se se visse que a Europa tem programas para os jovens, programas para a renovação de alguns sectores, começaríamos a ver pequenas manchas de luz e as pessoas retomavam a coragem. O problema é que isso não está a ser feito. A Europa não acompanha de maneira estimulante e solidária os esforços dos países em dificuldades.

O que diria hoje aos jovens europeus sobre a importância da Europa nas suas vidas e no seu futuro?
Diria que, se a Europa seguir o caminho do declínio, talvez uma minoria consiga ir para a Austrália ou para o Brasil, mas os outros terão a experiência desse declínio nas suas condições de vida, que recuarão ou estagnarão. Com menos oportunidades para a investigação e o conhecimento, sofrerão as consequências.

Dir-lhes-ia que a Europa ainda é a solução?
Isso mesmo. É ainda a solução. Mas, para isso, há que andar depressa. Nos próximos dez anos será preciso o golpe de rins necessário.

Vemos o populismo, o nacionalismo, a regressar...
Por toda a parte. Aos que dizem que a solução está em cada país, sinceramente não vejo isso possível para os países europeus.

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