A insustentável manutençãode Maria Luís Albuquerque.
Por Eduardo Oliveira Silva
publicado em 21 Jun 2013 in (jornal) i online
Mesmo não tendo recomendado swaps ruinosos na Refer, a
secretária de Estado não podia desconhecê-los
A razão política manda dizer que a secretária de Estado do
Tesouro deveria ter sido dispensada pelo ministro das Finanças, pelo
primeiro-ministro, ou então ter chegado por si própria à conclusão de que não
tem condições objectivas para se manter no governo. É certo que pôs
o lugar à disposição e foi confirmada, mas disso a
demitir-se vai uma distância abissal.
Houve secretários de Estado que foram fulminados por ter
subscrito swaps ditos tóxicos. Houve gestores e directores que levaram pela
mesma medida, mas há outros que se mantêm em funções por resistência passiva ou
contemporização do governo, que aparenta ter dois pesos e duas medidas.
Maria Luís Albuquerque era uma das responsáveis financeiras
da Refer, empresa que subscreveu um tipo de swaps em geral apresentados como
não tóxicos, seja lá isso o que for. A história recente retém até que tem sido
a secretária de Estado a liderar a operação de negociação com a banca para
minorar as perdas do Estado alguns milhões. Diz-se ainda que foi por sua
iniciativa que houve um inquérito aos swaps.
Muito bem, mas não chega. Pelo seu perfil técnico e pelas
funções na Refer, a governante Maria Luís Albuquerque não podia deixar de
conhecer a existência de contratos tóxicos. Todavia, em dois anos não fez nada,
até ao momento, além de pedir um inquérito tardio. Pecou em parte por omissão e
ter posto o lugar à disposição não a redime. As operações constavam dos
balanços das empresas e havia que analisá-los com rigor, sobretudo por quem
tivesse obrigação de estar atento à situação. Essa circunstância específica da
secretária de Estado fragiliza-a a ela e ao governo no seu todo.
A questão dos swaps vai durar. Em cada conta do Estado, em
cada Orçamento, em cada debate parlamentar sobre economia, ela virá ao de cima
gerando confusão, desconfiança e tensão política. Nessas circunstâncias melhor
seria retirar também este elemento do elenco governativo, até para que o
assunto possa ser discutido e tratado de uma forma mais serena, contribuindo
assim para o efectivo esclarecimento dos martirizados contribuintes.
Nos últimos dias multiplicam-se notícias de negociações
favoráveis ao Estado que minimizariam os prejuízos causados pelos swaps. A seu
tempo se verá se é assim ou se é apenas a conjuntura favorável do momento que
cria essa ilusão. Imagine-se que dentro de dois anos os juros sobem para
valores de 2007. Bastaria isso para alterar todas as premissas de análise do
assunto.
Outra coisa a esclarecer é a relação entre a contratação do
JP Morgan para assessorar a privatização dos CTT e o acordo a que se chegou com
esse banco precisamente sobre esses produtos financeiros a que as empresas do
Estado iam recorrendo para acudir a dificuldades de tesouraria. Aguardemos, mas
com poucas expectativas, que
se esclareça cabalmente como foi possível passar de uma
situação para outra em tempo recorde. Ele há cada uma?
As PPP são o "conto moral" onde se revela a imoralidade da nossa cultura política
As PPP não foram invenções dos banqueiros e dos construtores civis, foram criação de políticos desejosos de "mostrar obra"
Sempre que se corta um subsídio, se corta uma pensão
ou mesmo se se cortam as unhas, não falta quem grite, indignado: "Só não cortam
nas PPP!" "Cortar nas PPP" tornou-se na poção mágica dos entendidos que estão
sempre contra os "cortes cegos" mas são incapazes de sugerir "cortes racionais".
A não ser, claro, o corte nas PPP. Os números, de resto, parecem vir em seu
auxílio. Ainda esta semana foi conhecida versão preliminar do relatório da
comissão parlamentar de inquérito às PPP e nele escrevia-se que só das parcerias
rodoviárias e ferroviárias ainda haverá a pagar mais 11,7 mil milhões de euros.
Um escândalo, gritam os profissionais da indignação. Um escândalo, confirmo eu,
mas um escândalo que é sobretudo consequência da cultura política dominante no
país. A cultura do passado e a cultura de hoje.
Há dois motivos principais para termos uma factura tão elevada a pagar. Ambos
chocantes. Por um lado, boa parte dos contratos das PPP foram não apenas mal
negociados, foram criminosamente negociados. Mas, por outro lado, esses
contratos foram feitos porque era enorme a pressão política e eleitoral para
"fazer obra". Excepto uma ou outra situação pontual em que a obra talvez não
tenha sido feita e que são referidas no relatório, estamos a pagar as PPP porque
houve governos que quiseram construir - e construíram - estradas e linhas
férreas sem terem dinheiro para as pagar. Ou seja, se uma parte da factura
deriva de maus contratos que beneficiaram de forma indecorosa empresas de
construção, grupos bancários e alguns escritórios de advogados, o grosso da
factura vem de se ter espalhado betão pelo país todo, mesmo onde tal era mais um
luxo do que uma necessidade. Recapitulemos o essencial do processo e os seus protagonistas. Primeiro que tudo, tivemos a Ponte Vasco da Gama. Ao princípio o modelo imaginado para a financiar parecia uma boa ideia: entregava-se a concessão a uma empresa privada, esta cobrava as portagens na nova ponte e, na velhinha 25 de Abril, e os utilizadores acabariam por pagar a grandiosa obra. Este esquema começou a ruir no dia do "buzinão": os utilizadores, afinal, não queriam pagar a nova ponte. Em boa parte porque esta não os servia devidamente, já que em vez de ligar o Barreiro a Chelas, servindo zonas muito povoadas, ligava os Olivais à zona ainda quase rural de Alcochete. A partir desse momento passaram a ser os impostos a compensar as portagens que, por terem sido quase congeladas, deixaram de ser suficientes para pagar a nova ponte. Já vamos em nove renegociações e o que podia ter sido um bom negócio para o Estado tornou-se num negócio chorudo para a concessionária.
Mas o pior veio a seguir. Guterres, que disse em campanha ter uma paixão pela educação e não pelo betão, não resistiu à tentação de continuar a construir auto-estradas. Apesar de serem anos de vacas gordas, faltou-lhe o dinheiro, mas não a imaginação. Graças a João Cravinho, inventou as Scut: o Estado não gastava nada a construir, os utilizadores não pagavam portagens, a factura ficava para os contribuintes do futuro. Foi assim que começou a engordar a factura das PPP. De um lado, políticos que queriam mostrar obra e um eleitorado que só media o progresso em quilómetros de alcatrão; do outro, construtoras e banqueiros em busca de negócios com pouco risco e muito lucro; como bónus, uma fartura de estaleiros capazes de absorverem muita mão-de-obra e de iludirem o desemprego. Parecia que ganhavam todos, mas perdia quem um dia teria de pagar a factura: nós.
Muito cedo houve quem alertasse para a perversidade deste esquema, que até foi tema de campanhas eleitorais. As auto-estradas trariam o progresso ao "interior esquecido e despovoado" e não haveria problema com o que se teria de pagar no futuro, pois o "progresso" induzido pelo betão geraria as receitas necessárias. Nada disto aconteceu, mas mesmo maiorias eleitas para inverter esta loucura não o fizeram, como sucedeu com os governos do PSD e CDS de 2002 a 2005. Ninguém queria dizer às populações que não lhes daria aquilo com que elas sonhavam desde os tempos de Fontes Pereira de Melo: uma via rápida à porta de cada aldeia.
As PPP tornaram-se assim num expoente do "viver acima das nossas possibilidades": como não tínhamos dinheiro para tanto betão, nem nos podíamos endividar mais, arranjava-se quem se endividasse por nós com a promessa de que pagaríamos lá mais para diante. Se a primeira responsabilidade é dos políticos que promoveram esta loucura, a verdade nua e crua é que o eleitorado não só aplaudiu a "obra feita" como reivindicou mais e mais. É por isso que as PPP também são culpa do nosso atraso cultural e do prestígio eterno do "fontismo" como sinónimo de progresso. Poucos remaram contra esta maré - o Tribunal de Contas, alguns políticos, alguns colunistas, quase todos descartados como "velhos do Restelo", inimigos do interior ou insensíveis sociais.
Os últimos anos, os anos do socratismo, foram especialmente delirantes. Primeiro porque era cada vez mais evidente que o desvario de multiplicar quilómetros de auto-estrada era apenas isso mesmo: um desvario. Se ao princípio ainda se podiam encontrar fluxos de trânsito para justificar uma via rápida, conforme Portugal se ia transformando no país europeu com o maior número de quilómetros de auto-estrada por habitante, menos tráfego tinham as novas vias. E mais surreais eram os contratos de concessão.
Aquilo que de início era sobretudo uma má ideia, que atirava para as gerações futuras o custo de infra-estruturas que até eram necessárias, tornou-se numa fraude e num negócio escandaloso em torno de obras desnecessárias. No relatório da comissão de inquérito podem encontrar-se abundantes exemplos dessa gestão danosa da coisa pública. Começava-se por justificar a obra com base em "estudos" que previam fantasiosos fluxos de tráfego - isso aconteceu tanto em muitas nas novas estradas como num dos mais ruinosos negócios de todos os tempos, o do Metro ao Sul do Tejo, onde o preço por passageiro e por quilómetro transportado suportado pelos nossos impostos é 9,3 vezes superior ao registado no Metro de Lisboa. Depois faziam-se contratos que garantiam aos novos concessionários taxas de rentabilidade do capital que nem uma Dona Branca seria capaz de prometer. Por fim enchiam-se os acordos de cláusulas, minuciosamente desenhadas por exércitos de advogados, que colocavam todo o risco do lado dos contribuintes e garantiam aos investidores uma vida santa, com boas receitas e sem riscos. Tudo isto garantido pelo erário público, pois até quando a Estradas de Portugal chegou ao limite da sua capacidade para assumir encargos, logo lhe chegou a necessária "Carta de Conforto" assinada por Mário Lino e Teixeira dos Santos.
A quantidade de abusos cometidos ao longo deste processo é tal que só espero - mas com pouca esperança - que algo de substantivo venha a ser apurado pelo Ministério Público, para onde seguirá o relatório da comissão parlamentar. Mas, infelizmente, isso não nos alivia a factura a pagar. É possível renegociar muitos destes contratos, baixar as chorudas margens de rentabilidade e partilhar de forma mais equilibrada os riscos, e isso até já tem vindo a ser feito com resultados impressivos. Mas nunca se farão desaparecer da paisagem as auto-estradas vazias, os viadutos redundantes, os túneis quilométricos e tudo o mais que um país a achar que era rico mandou construir sem ter dinheiro para pagar a pronto. Pagou a crédito, e são esses créditos, que escaparam por manhas estatísticas aos limites comunitários do défice e da dívida, que agora nos atormentam sob a forma de PPP.
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